Será carne de urubu?por
Carlos Alonso Barbosa de Oliveira Na China, um camelô anuncia: “Lolex! Lolex!”, três relógios por 10 dólares
Carlos Alonso Barbosa de Oliveira é professor do Instituto de Economia da Unicamp. Ele viajou à China em dezembro e, a seguir, fala de sua experiência:brasileira, cujo marido foi transferido para a China. Ela, sem filhos e sem trabalho, sentia-se sozinha e resolveu comprar um cachorrinho. Na loja de animais, por meio de sinais indicou um cãozinho ao vendedor, que prontamente sumiu para os fundos do estabelecimento. Diante da demora, ela foi atrás e viu, horrorizada, que o chinês já estava tirando o couro do pobre cão, preparando-o para que ela fizesse um belo guisado para o jantar.
Viajamos com o apoio da reitoria da Unicamp e a convite da Southwestern University of Finance and Economics, da cidade de Chengdu, para estabelecer convênio de cooperação entre as duas universidades. Fomos recebidos com extrema cortesia. Todas as noites havia verdadeiros banquetes no jantar, servidos em mesas redondas, com centro giratório. Escolhe-se o prato, gira-se a plataforma central para alcançá-lo. Os pratos tinham plaquinhas, em inglês, mas muitas vezes comíamos sem saber o que era. Um colega serviu-se de black chicken e ouviu:
– Deve ser carne de urubu ou graúna!
A carne era preta, e ainda não sabemos do que se tratava.
Além da cordialidade, uma surpresa. Tínhamos sido advertidos que, para fazer um convênio, levaríamos no mínimo uns dois anos, mas logo no segundo dia o diretor da universidade apresentou a minuta do convênio, em inglês, pronta para ser analisada e eventualmente ser assinada pelo reitor da Unicamp.
No convívio com professores chineses, notamos a franqueza e a livre troca de idéias mesmo quando as questões levantadas referiam-se a períodos conturbados do país. E se eram claras as divergências quanto a certos temas do passado, sobre a China atual as idéias parecem convergir. São unânimes o otimismo e o orgulho com o progresso do país.
A universidade será transferida para um novo local e o atual campus, com edifícios modernos e jardins bem cuidados, receberá alunos estrangeiros em cursos de língua e cultura chinesa. O governo já patrocina o ensino do mandarim e tornou intensivo o ensino do inglês nas escolas. Andando por cidades como Xangai, Pequim e Chengdu, nota-se como o inglês já está difundido. Diversas vezes fomos parados por grupos de estudantes que queriam saber que língua falávamos, como víamos a China e como era o Brasil – excluindo-se o futebol, não sabem nada sobre nosso país. Não que falassem bem o inglês. A pronúncia é horrível, algumas palavras, impronunciáveis. Diziam:
– Lonaldinho, Lonaldinho!
Em compensação, pediam que falássemos português: acham engraçadíssimo. E nós logo descobrimos outra utilidade da última flor do Lácio. Nos lugares turísticos, há enxames de camelôs, de uma insistência ímpar: “Lolex! Lolex!”, um oferecia três relógios por 10 dólares. Quando nos abordavam, disparávamos a falar português e o camelô ficava literalmente estatelado e perplexo com os sons que ouvia. Paralisado, nos deixava seguir. No comércio, nomes de grifes internacionais são adaptados à pronúncia possível para um chinês. Armani é “Anmani”, Hugo Boss, “Ubinoboss”, Givenchy torna-se “Givh Shyh”, e assim por diante.
Para os brasileiros, mais chocante do que comer cachorro guisado seria observar a maneira como os chineses administram a economia. E para os economistas que acreditam na existência de leis econômicas de mesmo padrão que as leis da natureza, seria como se os chineses quisessem abolir a lei da gravidade.
Nas grandes cidades da China, a cada quadra chama a atenção uma agência de banco. São sempre agências de quatro grandes bancos estatais e, pior, os clientes preferenciais são empresas estatais ou entidades da administração pública. Um brasileiro bem posicionado, vivendo na China, pontifica:
– Os chineses não têm a menor noção de critérios sadios de gestão bancária. Um banco brasileiro em vias de abrir filial aqui promoveu curso de gestão e eles, disciplinados, anotavam religiosamente as aulas dadas por especialistas brasileiros. Anotavam, mas provavelmente continuariam com suas práticas irresponsáveis que levam o país a crescer a mais de 10% ao ano.
Em tempos de PAC no Brasil, é interessante notar que a forte presença dos bancos estatais permite ao governo chinês controlar o crédito e, conseqüentemente, comandar o nível geral de investimentos. O governo também direciona os empréstimos entre os diferentes setores da economia. Mas essas práticas não são invenções chinesas: a “socialização algo ampla dos investimentos”, ou seja, o controle social do investimento, é projeto explícito da filosofia social de Keynes.
É certo que, após 1978, a China realizou suas reformas de mercado, abandonando a economia de comando. E hoje, tal como fizeram antes Japão e Coréia, combina a livre concorrência entre produtores com ativos controles estatais.
Há outras combinações. Em uma empresa que visitamos, joint venture entre uma prefeitura chinesa e uma multinacional americana, os encargos sobre a folha de pagamento são: 20% de previdência, 8% de FGTS. Epa, FGTS? Sim o município copiou o sistema brasileiro para criar fundo de financiamento habitacional.
Por falar em habitação, não vimos favelas. Chama a atenção a frenética atividade da construção civil, gigantescos conjuntos habitacionais por toda parte e grandes obras de infra-estrutura urbana. Pequim tem cinco anéis viários e, ao longe, vimos estádios gigantescos, já prontos para as Olimpíadas de 2008.
É certo que o governo controla o processo migratório rural-urbano. A proliferação de empresas de propriedade coletiva em municípios e aldeias leva a indústria ao campo, e a família camponesa pode combinar atividades agrícolas com emprego industrial. Um engenheiro chinês que foi criado no Brasil e está de volta ao país natal, nos conta uma história. Na mais remota e pobre aldeia, havia uma construção de porte, bem cuidada, destacada entre as pequenas casas camponesas. Desconfiado, pensou: “Aí deve viver o chefete político local”. Foi conferir. Era uma escola.
Em nossa viagem, vimos um caso que talvez ilustre o futuro das relações econômicas entre o Brasil e a China. Uma indústria chinesa de cerâmica, produzindo e exportando artigos de qualidade, viu-se em dificuldades depois que o governo local proibiu-a de seguir esburacando o solo em busca da argila, devido aos danos ambientais. Consultou um engenheiro, no Brasil, sobre a viabilidade de importar a matéria-prima e, assim, abriu-se mais um mercado externo para o nosso País.
Por sua vez, o governo chinês patrocina a criação de gigantescas holdings, com progressiva autonomia financeira, capazes de arcar com os altos custos da pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Seguem as lições do general coreano Park Hee: “Concorrência internacional é briga de cachorro grande, pequinês não tem vez”. Enquanto eles avançam em setores de tecnologia cada vez mais sofisticada, o Brasil, que parece viver um novo ciclo da cana-de-açúcar, poderá contar com a promissora demanda de barro da China.
http://www.cartacapital.com.br/edicoes/2007/02/430/sera-carne-de-urubu