Este texto foi publicado no Caderno mais!, da Folha de São Paulo, em 15 de agosto de 2004, por ocasião do Congresso Internacional do Medo, realizado pela Aliança Francesa em setembro do mesmo ano. O mais! daquele domingo perguntou a pessoas das mais variadas áreas do conhecimento o que lhes causava medo.
Escolhi para compartilhar com vocês o texto da Mary Del Priore, deusa do panteão rizkiano de historiadoras góstósas, porque ele refletiu uma coisa que me incomoda deveras e, sei lá, achei que podia lhes servir de alguma coisa.
Meu maior temor é essa coisa chamada "destino": coisa tantas vezes vivida como uma cadeia inflexível e inexorável de acontecimentos, coisa capaz de nos empurrar para a mais absoluta impotência e fragilidade. Destino é tudo o que nos escapa, que nos é exterior e que nos atinge no mais íntimo de nós mesmos. Na Antigüidade, os gregos designavam como "ananké" a esse fenômeno capaz de constranger o indivíduo sem dó nem piedade, dobrando-o malgrado sua própria vontade e impedindo-o de desmontar todas as iniciativas que pudessem interceptar malefícios.
Hoje, mesmo que personagens de tempos em que a presença constante da ciência e da técnica pareçam garantir que somos os “senhores da natureza” ou ainda acreditando que, graças a agendas políticas, podemos determinar a liberdade e a igualdade como um objetivo a ser partilhado por todos os homens, a figura mítica do destino continua a nos atemorizar.
Pensemos, por exemplo, na força do inconsciente, força capaz de insinuar o passado no presente, capaz de nos fazer reviver e repetir compulsoriamente determinadas situações, aprisionando-nos num insuportável constrangimento psíquico. Freud não falava no “retorno do mesmo”? Uma má infância não é, muitas vezes, sinônimo de um mau destino? Ou pensamos ainda no código genético, programa que, à nossa revelia, nos liga a nossos antepassados, inscrevendo e escrevendo em nossos genes a história médica de uma família; já não se fala em indivíduos “genopositivos”? Ter o mesmo sangue não significa poder ter os mesmos males?
Tudo bem que a racionalidade nos ajuda a lutar contra o consentimento resignado diante do destino, mas, a constatação da desigualdade fundamental dos homens, na vida como na morte, não nos leva a pensar na força do acaso? Infelizmente, mais ligada à idéia de tragédia de que à de felicidade, a palavra dá medo. Ao mesmo tempo herança e destinação, passado e futuro, ela orienta a vida de muita gente. O sentimento de não ser ator de sua própria história, de ser arrastado sem saber, de ser submetido ao arbítrio, à contingência e ao acidental, me traz profundo desconforto e – por que não – temor…