Problemas sem passaporteAdriano Moreira - Professor universitárioFonte:
DNDurante o exercício de secretário- -geral da ONU, Kofi Annan teve de pronunciar um número apreciável de discursos, como se passa com qualquer responsável por cargos de gestão política. Quando se pretende fazer uma relação entre essa pesada quantidade de documentos e aqueles que representam uma síntese qualitativa das prestações, talvez seja consensual destacar dois: o primeiro, intitulado We, the Peoples, expressão com que abre o texto da Carta da ONU, e que foi destinado à reunião dos responsáveis mundiais que se chamou Cimeira do Milénio, e teve lugar no ano 2000; o segundo, intitulado In Large Freedom, elaborou uma perspectiva ambiciosa de de-senvolvimento, segurança e direitos humanos. Tem-nos parecido que o traço mais significativo da gestão, que agora findou, foi o esforço desenvolvido no sentido de que o secretário- -geral seja o centro de referência dos interesses comuns da Humanidade, o que dificilmente é reconhecível no Conselho de Segurança, onde o veto tem, por definição e exercício, o objectivo de salvaguardar os interesses dos Estados titulares.
Progressivamente, a intervenção do secretário-geral foi tornando claros os princípios- -guia da sua concepção de responsabilidade e objectivos do cargo, tornando-se sobretudo presente a referência e uso das simples palavras iniciais da proclamação dos pais fundadores da ONU: We, the Peoples. Sem grande alarde, a prática desenvolvida foi no sentido de autonomizar as sociedades civis, que cada Estado membro governa, para apelar à comunicação, solidariedade e acção dos povos, ultrapassando o tecido das discriminações inerentes aos soberanismos.
O fenómeno das redes, efeito dos avanços científicos e tecnológicos, nem sempre intencionalmente provocados, e nem sempre positivos, tende para enfraquecer o sistema de apartheid das soberanias, obrigadas a uma redefinição de capacidades e objectivos; mas o apelo à mobilização articulada e solidária das sociedades civis parece ultrapassar a passividade, ou a dependência das reacções eventuais dos governos, para estruturar vozes próprias com audiência nas Nações Unidas.
Não foram muitas, e não foram sempre positivas, as ocasiões em que tais mobilizações ganharam eficácia e resultados, mas parece evidente que se desenvolveu uma opinião pública mundial, que tal opinião tem peso no processo decisório dos poderes políticos, que iniciativas inovadoras, como o reforço dos mecanismos de defesa dos direitos humanos, a estruturação de uma justiça transnacional, o direito e dever de ingerência em caso de agressão intolerável às populações e aos seus direitos e dignidade humana, tudo encontrou apoio naquela esperançosa invocação: We, the Peoples. O caso de Timor foi certamente um dos resultados paradigmáticos desta perspectiva, quando a opinião pública mundial conseguiu, com a intermediação dos meios de comunicação social responsáveis e informados, que a ofensa a um povo fosse considerada como ofensa à sociedade civil mundial.
Usando a sua criatividade, o secretário- -geral criou uma expressão, que merece fazer carreira, para designar os eventos que se transformam em causas, chamando-lhes problemas sem passaporte. A mensagem mais importante que a fórmula transmite é precisamente a da ultrapassagem do modelo dos soberanismos arquipelágicos, de facto a ignorância das fronteiras, e a pressão sobre poderes políticos para que remodelem a própria definição, assumindo as soberanias como cooperativas e funcionais.
Os objectivos do Desenvolvimento do Milénio, a responsabilidade transnacional pelos direitos humanos, o combate à pobreza pelo desenvolvimento humano sustentado, a defesa da paz indivisa, tudo se baseia, e espera-se que não utopicamente, na sociedade civil mundializada, na responsabilidade partilhada, na convicção da necessidade de conseguir identificar, e dinamizar, os esforços ao alcance do Estado, e o que os Estados têm de fazer em parceria, aceitando as lideranças transnacionais.
Enfrentando, todavia, a enorme dificuldade de conseguir estabelecer um ambiente internacional que aceite e apoie a urgência de definir e empossar órgãos vinculados apenas aos interesses comuns da Humanidade, controláveis sem pressões hegemónicas, com autoridade mobilizadora das capacidades disponíveis. Finalmente aceitando que ou o globalismo inspira uma nova governança que o regule, ou o efeito demolidor das antigas estruturas e conceitos acentuará a anarquia em que a comunidade mundial se encontra. Falta também que, no depauperado panorama do presente, reapareçam as lideranças confiáveis.