Folha de São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007
O instinto da féO biólogo Richard Dawkins volta a atacar as crenças em "A Ilusão de Deus" e compara a religiosidade na Europa e nos EUA
Armando Franca - 10.mai.2000/France PressePeregrinos caminham, de joelhos, no santuário de Fátima, em Portugal CLIVE COOKSON
Richard Dawkins parece um típico professor em sua antiga bicicleta com cestinha de vime, numa ruela que sai da Oxford High Street. Ele encosta a bicicleta no prédio decrépito do século 17 que abriga o restaurante Chiang Mai Kitchen e me encontra lá dentro para almoçar.
Dawkins, o atual (e primeiro) professor da cátedra Charles Simonyi de Compreensão Pública da Ciência, em Oxford, pode ser um ateu militante e a grande celebridade da biociência no Reino Unido, mas, após 36 anos no corpo docente da universidade, sua maneira de conversar é inconfundivelmente civilizada e acadêmica. Não há nada da arrogância estridente ou irritação que os críticos às vezes detectam nas participações de Dawkins na TV e em alguns de seus livros.
Ele também não demonstra falsa modéstia. Nós nos encontramos pouco antes da publicação de "The God Delusion" [A Ilusão de Deus, ed. Houghton Mifflin, 416 págs., US$ 27, R$ 58], seu ataque a todas as formas de religião, brilhantemente argumentado. Afirma que ficou contente ao encontrar o livro em segundo lugar na lista dos mais vendidos no Reino Unido. O reconhecimento e a influência são importantes para Dawkins: ele deixa clara sua reprovação a artigos anônimos nos jornais.
Prazer de escrever
A comida dificilmente nos distrai de assuntos de maior peso. Apesar de Dawkins ter escolhido o restaurante porque "adora comida tailandesa", ele pouco se interessa pelo menu e rapidamente aceita minha sugestão de uma massa e dois pratos de arroz com lagostins, carne e pato. Enquanto esperamos pela refeição, Dawkins me conta o quanto gosta de escrever. "A Ilusão de Deus" lhe deu muito menos trabalho que o anterior, "The Ancestor's Tale" [A História do Ancestral], ele diz.
Essa foi uma grande obra de biologia evolucionista que ele levou cinco anos para escrever, com um assistente de pesquisa em tempo integral, no qual remonta a ancestralidade da vida do homem moderno aos primeiros micróbios, 4 bilhões de anos atrás. Dawkins extrai grande prazer das etapas finais da escrita. "Gosto das fases de acabamento, de refinamento, mais que da tela em branco no início", diz. "Faço muitos cortes e edições -é gratificante encontrar algo que eu possa cortar sem perder a cadência do trecho."
Ele não é o tipo de autor que manda o original para um grande número de amigos e colegas lerem antes de apresentá-lo à sua editora. "Escrever por comitê geralmente torna o livro chato", ele diz. "Mas acho que uma ou duas almas muito compatíveis podem ser críticos extremamente úteis, um segundo olhar." A principal auxiliar na escrita de Dawkins é sua mulher, a atriz Lalla Ward, "que lê o livro inteiro em voz alta para mim em diferentes estágios do desenvolvimento. Escutar minhas próprias palavras com outra voz é muito revelador. Se ela tiver dificuldade para encontrar a ênfase certa, sei que preciso modificar alguma coisa".
Quando três tigelas fumegantes aparecem à nossa frente, com ervas e especiarias perfumadas, pergunto a Dawkins que tipo de resposta ele espera de "A Ilusão de Deus" e seu prelúdio televisivo, o documentário em duas partes feito por ele, "Root of All Evil?" [A Raiz de Todo o Mal?], que causou furor depois de sua transmissão pelo Channel 4. "Não quero apenas incomodar as pessoas -quero mudar suas mentes", ele diz.
Em seus momentos mais otimistas, Dawkins imagina que "os leitores que começarem o livro religiosos serão ateus quando o terminarem". Em tom mais realista, admite: "Não vou mudar as mentes de muitos carolas empedernidos". Ele acredita que exista "um campo intermediário de pessoas de mentalidade aberta que se declaram vagamente da Igreja Anglicana, mas que não pensaram realmente a fundo", pessoas que ele espera convencer a "libertar-se totalmente do vício da religião".
Um mundo sem deuses
No mínimo, ele espera transformar os agnósticos em completos ateus. Embora Dawkins acredite que o mundo seria um lugar melhor e mais pacífico sem deuses, tenho a impressão de que seu ataque é mais motivado pela repulsa intelectual diante das irracionalidades da religião. Mas Dawkins não assumiu uma tarefa que, como biólogo evolucionista, ele deveria admitir que é impossível? A superstição e a crença na magia e na religião dominaram todas as culturas humanas conhecidas, como ele sabe muito bem.
Embora isso não queira dizer que deva existir alguma forma de Deus (ou deuses), implica que a evolução nos dotou de um instinto religioso extremamente forte -que as campanhas racionais provavelmente não conseguirão extinguir. Quando digo isso a Dawkins, ele retruca que estou sendo derrotista (apesar de eu não ter dito diretamente, ele supõe que eu também seja ateu).
"A religião foi erradicada em mim e em muitos de meus amigos", ele diz, transferindo fartas colheradas de comida tailandesa para seu prato. "Existe uma forte correlação entre religião e educação: quanto mais educadas, menos religiosas são as pessoas." Por que então os EUA são tão mais religiosos que as sociedades européias, com um nível semelhante de educação e riqueza? Dawkins não alega compreender o "nível realmente extraordinário de religiosidade dos EUA", mas oferece algumas explicações especulativas.
Uma delas é que os EUA são uma sociedade de imigrantes que foram afastados de suas origens -e que acabaram por recorrer às igrejas para preencher o vazio. Nenhum de nós se convence muito.
A idéia seguinte é que a separação constitucional entre Igreja e Estado favoreceu a religião americana. "Na Europa Ocidental, a religião estabelecida é música de fundo e não é levada a sério", ele diz. "Nos Estados Unidos a religião tornou-se iniciativa privada, com todos os benefícios da publicidade e do marketing pesado." Achamos que pode haver certa razão nisso, mas então Dawkins pergunta: "Que tal uma teoria de "massa crítica'?".
Ele sugere que os EUA têm uma massa crítica de pessoas religiosas que se incentivam mutuamente a proclamar sua fé, enquanto "na Europa as pessoas que são religiosas tentam escondê-lo em ambientes sociais. Em um jantar elegante em Londres ou Oxford as pessoas não confessariam [ser religiosas], mas um jantar elegante em Dallas ou San Antonio poderia começar com uma oração de graças".
Nossa discussão deixa sem solução o mistério dos EUA. Depois de pedirmos chá verde, sugiro que uma civilização ultra-avançada poderia ter progredido em um longo período de evolução darwiniana a um nível tecnológico que superasse a compreensão humana. Como uma inteligência capaz de criar novos universos, por exemplo, diferiria de Deus? Dawkins concorda que, na prática, uma inteligência tão avançada poderia ser indistinguível de uma deidade. Mas o ponto-chave seria a maneira como ela teria surgido em etapas evolucionárias.
Dawkins não deseja abordar a questão existencial definitiva -por que as coisas existem-, mas comenta que é de uma "ordem de magnitude mais difícil compreender por que uma inteligência criadora complexa simplesmente teria surgido do que compreender por que ocorreu um "big bang'".
Projetos futuros
Agora terminamos o chá, chega a conta e Dawkins diz que precisa sair logo para outro encontro. Então me volto para seu futuro. "A Ilusão de Deus" é "provavelmente o apogeu" de sua guerra contra a religião, ele diz, mas continuará em campanha contra idéias irracionais. Um veículo será outro programa em dois capítulos para o Channel 4, provisoriamente intitulado "The Rational Inquirer" [O Investigador Racional], que examinará a telepatia e outros fenômenos paranormais. Ele também irá trabalhar numa antologia para a Oxford University Press, "que eu gostaria que fosse uma vitrina dos mais belos textos de cientistas sobre um tema científico".
Mas Dawkins diz que ainda não decidiu sobre outro projeto realmente ambicioso na escala de suas obras sobre biologia evolucionista e religião. Uma preocupação é a rápida aproximação de sua aposentadoria acadêmica. Dawkins parece um saudável cinqüentão, mas na verdade tem 65 anos, dois a menos que a idade em que Oxford faz seus professores abandonarem as cátedras.
Dawkins não é contrário à aposentadoria acadêmica compulsória. "Se eu tivesse 20 anos e procurasse um emprego acadêmico, ficaria um pouco chateado se os professores pudessem continuar para sempre", diz. "Eu pensaria que a melhor solução seria a aposentadoria compulsória, seguida de um convite voluntário para voltar." "Todos conhecemos pessoas nas universidades que são maravilhosamente valiosas aos 70, acrescenta, apreciando o assunto. "Toda universidade deveria ter um fundo para trazer de volta pessoas desse tipo. Na verdade seria uma ótima idéia para um mecenas bilionário criar um fundo para velhinhos brilhantes."
Best-seller científico
Atualmente, um professor aposentado pode receber o título de professor emérito e um escritório, mas pouco ou nenhum pagamento. Por um momento, imagino um Dawkins mais velho e empobrecido. Então, recordo que os rendimentos de 30 anos de best-sellers científicos devem lhe proporcionar uma aposentadoria bastante confortável -afinal, seu elegante paletó grafite e sua bela camisa estão muitos graus acima de uma típica vestimenta acadêmica.
Durante nosso encontro, Dawkins foi cortês e eficiente, cônscio de que no tempo disponível eu provavelmente só conseguiria abordar uma fração dos assuntos que eu queria discutir. Quando ele não tinha uma opinião meritória, como sobre o financiamento público da ciência, o dizia. Ele é uma companhia interessante, mas permanece ligeiramente reservado, e não acho que nos encontraremos novamente para um "tête-à-tête". Quando Dawkins sai pedalando, minha tristeza nostálgica é apenas em parte devida à luz do outono.
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Este texto saiu no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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www.amazon.comNovo livro sai no Brasil em setembro DA REDAÇÃO
D esde 1976, com o lançamento de "O Gene Egoísta" (no Brasil, Itatiaia), Richard Dawkins tornou-se famoso por seu trabalho de difusão da ciência para o grande público. O professor de Oxford lançou no fim do ano passado "The God Delusion" [A Ilusão de Deus], que sai no Brasil em setembro, pela Cia. das Letras.
Seu combate às teorias criacionistas, desde "O Relojoeiro Cego" (Companhia das Letras), vem se intensificando sob o pano de fundo, sobretudo nos EUA, da coexistência de criacionismo e evolucionismo nas salas de aula das escolas.
E então? Quem não gostaria de ter um "velhinho" brilhante desses como professor?