Lembranças de meus pais não tenho nenhuma. O mais que consigo me esforçar é de um quintal onde vivia correndo à toa pelo puro prazer do exercício físico. De resto estou sempre acompanhado desta mulher – a “velha”, é como ouço a chamar.
Durante a noite nos entocávamos em qualquer lugar para dormir. Podia ser uma construção abandonada, um barraco vazio, a copa de uma árvore, a marquise de um prédio, qualquer lugar servia, desde que não fosse demasiado afastado do centro da cidade. Fugíamos sempre da polícia, o que não era difícil; eles não tinham interesse nos moradores de rua.
Quando raiava o dia começava nossa faina. Tínhamos que encontrar um bom local no qual pudéssemos nos instalar e pedir esmolas. Eu era particularmente bom nisso. Fazia uma carinha de coitado e pronto: deitavam uma moeda ou um real. Duro mesmo era encontrar bom lugar. Os faróis já estavam marcados e os seus donos usavam de violência na disputa pelo local. As praças eram muito vigiadas pelos gambés. Se não encontrávamos um bom ponto só restava andar e abordar os passantes em movimento – uma desvantagem. A velha não gostava disso não, pois a cordinha que me amarrava ficava a vista e o pessoal podia lá ter suas idéias. O ideal mesmo era um ponto parado onde sentávamos e a cordinha ficava escondida.
Nunca tentei fugir, mas a velha era desconfiada: vivia reapertando os nós que nos prendia. Não sei dizer se gostava dela ou mesmo se gostava da vida que levávamos. Fato era que não conhecia ninguém e a velha quando percebia que eu confraternizava com algum outro rapazola puxava a cordinha e me arrastava consigo.
Um dia choveu muito e não conseguimos abrigo. Como já era tarde da noite e a escuridão muito profunda a velha não se decidia onde ficar. Ela evitava chuva. Acho que por causa da idade. Mas naquele dia não deu: a chuva nos atingiu em cheio. Abeiramo-nos de uma árvore na esperança de sua copa nos proteger. Como a proteção foi pouca acabamos nos molhando.
De manhã a velha gemia e tossia, não queria se levantar. Onde estávamos a polícia fazia ronda logo cedo. Fiquei assustado. Comecei a puxá-la, mas ela era muito maior do que eu. Fiz inúmeras tentativas de levá-la, todas infrutíferas. Não tive opção, precisava me libertar. Procurei o canivete que sabia haver no bolso da calça dela. Com ele cortei a corda e fui embora.
Eu era um garoto muito franzino. O mundo que me cerca é grande, grandes são as pessoas. Um garoto não pode viver desacompanhado nesse mundo. As pessoas vêm e vão. Estão sempre em movimento, indo para algum lugar. As pessoas conversam em rodas de amigos, curtem um papo, uma cerveja. Elas têm em quem se ancorar, têm seu porto seguro. Um garoto como eu era precisava também de alguém em quem confiar. Andei a esmo aquele dia de liberdade. Tirei férias; corri pelo parque, trepei nas arvores, conversei com outros garotos.
Então, veio a noite. Nada é mais assustador que a noite, cheia de covas escuras e vultos escondidos. Havia um grupo de andantes dormindo na praça, entre eles uma velha. Aconcheguei-me perto dela. A princípio ela me rejeitou afastando-se. Depois eu tirei um maço de notas e coloquei na sua mão. Ela deu um sorriso desdentado e deixou-se cingir pela corda que eu trazia