Gostaria de dividir com vocês um dos textos que li no vestibular que fiz para esse ano:
OBS: o título do texto, O QUE SE ENTENDE POR ARTE, eu retirei de uma página à parte na net, que coincidentemente pertence também a uma prova (UNISC).
Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende por arte, é provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes clássicos da Renascença, um Leonardo da Vinci, um Rafael, um Michelangelo: arte lembra-lhe
objetos consagrados pelo tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de precisar: o sentimento do belo.
Essa resposta fere, sem dúvida, alguns aspectos importantes da obra de arte. A objectualidade: um quadro, por exemplo, é um ser material. E o efeito psicológico: uma obra é percebida, sentida e apreciada pelo receptor, seja ele visitante de um museu ou espectador de um filme.
Mas, é necessário convir, o nosso interrogado é sempre um homem do seu tempo, alguém que nasceu e cresceu entre os mil e um engenhos da civilização industrial, e que tende a ver em todas as coisas possibilidades de consumo e fruição. Ter ou desejar ter uma gravura, um disco ou um livro finamente ilustrado é o seu modo habitual de relacionar-se com o que todos chamam de arte. Tal comportamento, embora se julgue mais requintado que o prazer útil de usar um bonito liquidificador, afinal também está preso nas engrenagens dessa máquina em moto contínuo que é o consumo, no caso o mercado crescente de bens simbólicos.
Constatar, porém, o
uso social da pintura e da música, ou a sua função de mercadoria, não deve impedir-nos de ver antropologicamente a questão maior da natureza e das funções da arte. É preciso refletir sobre este dado incontrolável:
a arte tem representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. [...]
[...]
A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se
transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se artística. Para Platão exerce a arte tanto o músico encordoando a sua lira quanto o político manejando os cordéis do poder ou, no topo da escala dos valores, o filósofo que desmascara a retórica sutil do sofista e purga os conceitos e toda ganga de opinião e erro para atingir a contemplação das Idéias.
A arte é uma produção: logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do
não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos.
Techné chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas dos nossos dias.
A palavra latina
ars, matriz do português
arte, está na raiz do verbo
articular, que denota a ação de fazer junturas entre as partes de um todo. Porque eram operações estruturantes, podiam receber o mesmo nome de arte não só as atividades que visavam a comover a alma (a música, a poesia, o teatro), quanto os ofícios de artesanato, a cerâmica, a tecelagem e a ourivesaria, que aliavam o útil ao belo. Aliás, a distinção entre as primeiras e os últimos, que se impôs durante o Império Roman o, tinha um claro sentido econômico-social. As
artes liberales eram exercidas por homens livres; já os ofícios,
artes serviles, relegavam-se a gente de condição humilde. E os termos
artista e
artífice (de
artiflex: o que faz a arte) mantêm hoje a milenar oposição de classe entre o trabalho intelectual e o trabalho manual.
O pensamento moderno recusa, não raro, o critério hierárquico dessa lassificação. O exercício intenso da criação demonstra, ao contrário, que existe uma atração fecunda entre a capacidade de formar e a perícia artesanal. No pintor trabalham em conjunto a mão, o olho e o cérebro. No mais humilde dos trabalhadores manuais, adverte Gramsci, há uma vida intelectual, às vezes atenta e aguda, dobrando e plasmando a matéria em busca de novas formas, ainda que, no jogo social, o artífice não receba o grau de reconhecimento prestado ao artista.
Platão viu luminosamente a conexão que existe entre as práticas ou técnicas e
a metamorfose da realidade:
“Sabes que o conceito de criação (
poiesis) é muito amplo, já que seguramente tudo aquilo que é causa de que algo (seja o que for) passe do não ser ao ser é
criação, de sorte que todas as atividades que entram na esfera de todas as artes são criações; e os artesãos destas são criadores ou poetas (
poietés)” (O Banquete).
O conceito de arte como produção de um ser novo, que se acrescenta aos fenômenos da natureza, conheceu alguns momentos fortes na cultura ocidental. E tomou feições radicais na poética do Barroco, quando se deu ênfase à
artificialidade da arte, ou seja, à distinção nítida entre o que é
dado por Deus aos homens e o que estes forjam com o seu talento. No século XX, as correntes estéticas que se seguiram ao Impressionismo levaram ao extremo a convicção de que um objeto artístico obedece a princípios estruturais que lhe dão o estatuto de
ser construído, e não de
ser dado, “natural”. Matisse, abordado por uma dama a propósito de um quadro seu com o comentário “Mas eu nunca vi uma mulher como essa!”, replicou, cortante: “Madame, isto não é uma mulher, é uma tela”.
BOSI, Alfredo.
Reflexões sobre a arte. 7. ed. São Paulo: Ática, 2004. p. 7-14. (Série Fundamentos).