Escreveu Milan Kundera, em "A Arte do Romance":
O romancista não é porta-voz de ninguém, (....) nem mesmo de suas próprias idéias. Quando Tolstoi esboçou a primeira versão de Ana Karenina, Ana era uma mulher muito antipática e seu fim trágico era senão justificado e merecido. A versão definitiva do romance é bem diferente, mas não creio que Tolstoi tenha mudado nesse meio tempo suas idéias morais, diria antes que, enquanto escrevia, ele escutava uma outra voz que não aquela da sua convicção moral pessoal. Ele escutava aquilo que eu gostaria de chamar a sabedoria do romance. Todos os verdadeiros romancistas estão à escuta dessa sabedoria suprapessoal, o que explica que os grandes romances são sempre um pouco mais inteligentes que seus autores. Os romancistas que são mais inteligentes que suas obras deveriam mudar de profissão. (...) O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: "As coisas são mais complicadas do que você pensa.
Um romance é sobre pessoas, não sobre teorias, idéias ou ideologias. Essas pessoas, claro, têm teorias, idéias e ideologias. Mas não o romance. O romance deve estar acima dessas banalidades. O romance deve ser mais inteligente que as teses de seus personagens e de seu autor.
Algumas pessoas, ocasionalmente, tentam falar da "filosofia de Tchecov", "filosofia de Kafka", etc, mas esses autores são grandes justamente porque não é possível extrair uma filosofia coerente de seus romances. Um bom romance não se presta à filosofia. Se o romancista for bom, nunca saberemos exatamente onde ele está, quais são suas simpatias, qual sua filosofia.
Tanto o comunista quando o liberal serão representados em suas melhores (ou piores) cores, como pessoais reais, que lutam pelo que acham certo com todas suas armas, ou, quem sabe, como calhordas que se aproveitam de uma ideologia pra sobreviver. Mas, de qualquer modo, isso é com os personagens. O autor não se coloca.
Como diz Kundera, o espírito do romance é a complexidade. O objetivo do romance talvez seja mostrar justamente ao leitor liberal que os comunistas não são tão ruins assim ou mostrar aos leitores comunistas que os liberais não são todos burgueses nojentos. O objetivo do romance talvez seja justamente fazer o leitor levar a mão ao queixo e soltar um longo "hmmmm..."
No momento em que o autor chega ao romance imbuído de uma idéia, querendo provar uma tese, esse espírito da complexidade está morto. Não há complexidade alguma em um romance cujo objetivo é mostrar como são nojentos esses burgueses que exploram os proletários. Só há certezas a serem transmitidas.
Como pode ser complexo um romance cujo objetivo é mostrar a leviandade daquelas mulheres imorais que traem seus maridos e acabam se jogando embaixo de trens? Não há dúvida que é isso que Tolstoi tinha em mente. Ele era mais moralista que Dostoievski, aquele velho aristocrata safado. Mas seu romance foi melhor que ele. Seu romance teve mais amor por Ana do que ele teria.
Fonte:
http://www.sobresites.com/alexcastro/artigos/dostoievski.htm