Há meses acompanho com atenção as reportagens e matérias que pipocam por todos os meios de comunicação sobre a tal realidade virtual, mais recentemente associada ao programa Second Life; o conceito já é familiar, embora dessa vez o nome seja tão pretensioso e emblemático que não resisti à curiosidade e quis sentir na pele por que já somam quase dois milhões de adeptos só aqui no Brasil.
Para começar, é preciso baixar um software que, depois de instalado, nos leva à etapa seguinte: constituir as características do seu avatar, denominação dos personagens que encarnamos no programa. Visto que não me foi dado o direito de escolher como vim a esse mundo, pensei que seria uma oportunidade no mínimo interessante poder criar na íntegra meu representante no plano virtual. Primeira decepção. A escolha do meu nome precisava ser feita a partir de uma lista contendo algumas poucas opções. Dentre as possibilidades, acabei optando por me chamar Hugo Paderborn. O nome é esquisito, eu sei, e não foi escolhido com base em nenhuma referência afetiva, histórica ou literária, mas essa sina também acomete a tantos na vida real, nada com que não se acostume.
Avatar batizado, é chegada a vez de confeccionar os atributos de sua aparência; as possibilidades de escolha são amplas: do nariz aos sapatos. O programa – aqui em casa pelo menos – rodava muito lento, e a vaidade cedeu lugar à impaciência, o que deixou meu avatar com um visual bem chocho. Para incrementar seu personagem, existem butiques com modelos personalizados, mas, isso não é grátis, exige um cartão de crédito, e o desembolso de dinheiro de verdade. Linden Dollar é a moeda comum que torna fluida essa fronteira entre o real e o virtual. Como não pretendia empenhar recursos nessa experiência, minhas possibilidades de estilo ficaram bastante limitadas. No meio do processo, por conta do antigo hábito, acabei esquecendo de me criar de bigode, e daria tanto trabalho consertar que preferi ficar de barba mesmo.
Meu avatar estava pronto para ganhar o mundo virtual, e eu, ansioso para conhecê-lo. Era chegado o momento de me lançar às novas e convidativas experiência, e decidi por um lugar cujo nome soou familiar, a Ilha Brasil. Imaginei que encontraria representados nossos pontos turísticos mais conhecidos: uma fauna multicolorida, exótica e abundante, avatares vestidos com trajes tipicamente nacionais. Nova decepção. Algumas poucas avenidas vazias, muitas lojas, e a brasilidade representada apenas por uma pedra que, pelo que me pareceu, pretendia ser o Pão de Açúcar.
Marinheiro de primeira viagem, paguei o primeiro mico achando que todos falavam comigo. Sentia-me bastante popular e bem recebido, quando percebi que é preciso ler a quem se dirige cada comentário quando se está num ambiente com outras pessoas. Lição aprendida segui para o “point“ da ilha, onde alguns tomavam sol recostados em pufes, olhando para o nada no meio de uma quadra polivalente. Não me perguntem por que motivo, também não entendi. A maioria das conversas a que tive acesso diziam respeito a ganhar e acumular os tais lidens. Trabalha-se por créditos a serem gastos com roupas, carros, casas e o que mais conseguirem inventar.
Os empregos não são nada edificantes. Um deles oferecia trinta e cinco lindens para quem se dispusesse a ficar sentado num determinado bar, acho que era para aparentar popularidade. Outro trabalho muito comum é servir de homem-sanduíche, aqueles outdoors humanos, normalmente divulgando serviços dos designers de roupas e de outros apetrechos. Aliás, tem muita gente ganhando dinheiro muito real produzindo bens de consumo para os usuários do programa.
Aos poucos, aqui e ali, começaram a surgir as propriedades particulares, onde não é permitido transitar. Enquanto caminhava, o cenário ia se formando a minha frente, lento, incompleto, quadrado e feio. Perambulava pelas avenidas sem destino, entrava nas lojas onde as paredes invisíveis me detinham, as casas não tinham teto, e ninguém falou comigo. Talvez porque minha roupa era simples demais, tipo padrão, e isso me denunciava para os mais experientes como um novato cheio de perguntas, um excluído das tribos que ali coexistem.
Os trajes de certos avatares com quem cruzei intimidavam o contato, mais pareciam super-heróis. Vez ou outra, esbarramos naqueles que se empolgam com o figurino, e chega a ser engraçado analisar até que ponto pode ir a imaginação das pessoas e seu comprometimento, digamos, estético. Escolhem representações bastante complexas e exóticas de si próprias. Tentei puxar conversa, não obtive muito sucesso. Parece que o grande assunto do Second Life é mesmo como ganhar lindens para incrementar cada vez mais o próprio visual.
Existem marcas, e empresas que já compraram seus quinhões em terras virtuais. O programa começa a virar palco para reuniões profissionais, onde executivos engravatados espalhados em cidades distantes podem, por exemplo, agendar um almoço; em situações como essa valem as mesmas regras do mundo real; decide-se aonde ir e quem vai pagar a conta.
Sem dinheiro, trabalho, amigos ou casa comecei a me sentir profundamente infeliz. Encontrei meu refúgio numa espécie de praia, uma paisagem que deveria ser bela e tranqüila, e perambulei por lá por alguns minutos, observando o mar. Essa experiência só agravou minha sensação de solidão, inclusive por pensar que, para muitos usuários, esse programa, não muito diferente de um joguinho de computador, represente a possibilidade de se reinventar. Ilusoriamente, torna-se acessível ser bonito, bem vestido ou andar de carrão.
No mais, o programa incentiva o consumo, o culto narcísico à auto-imagem e à conversa fiada. A proposta de segunda vida não me convenceu, é tediosa e vazia. O intuito dos responsáveis por essa fabulosa invenção pode até ser o de criar mais um ambiente de interação, mas o conceito implícito é apenas um: a questionável possibilidade de controlar todos os aspectos relacionados a sua existência. Não chega a surpreender que a noção de felicidade esteja profundamente relacionada ao consumo, afinal, por trás dessa realidade fantástica estão pessoas que vivem no mundo real, e, em última análise, são elas as responsáveis por tudo que pude presenciar na minha tela.
Poderia daí partir para constatações apocalípticas sobre a época atual e a percepção, míope, que temos sobre o sentido da vida. No entanto, prefiro acreditar que os avatares são bonecos, Second Life, apenas um jogo, e que por trás de cada um dos computadores existem pessoas que têm plena consciência disso. Infelizmente tudo leva a crer que estou errado, e que o sucesso desse programa se relaciona com tempos muito estranhos.
A consciência do que é real em pouco tempo pode se tornar relativa, em todos os aspectos, dos mais banais aos mais significativos. Viveremos para testemunhar uma provável substituição de valores, se é que isso já não está acontecendo. Um pouco antes de me desconectar do programa, resolvi dar um vôo panorâmico, ainda em busca de alguma poesia naquele cenário.
A realidade virtual nos propicia a sensação de que, dentro de seus domínios, quase tudo é possível e permitido, inclusive voar. Imbuído desse espírito, sobrevoei ruas, notei que os avatares se tornavam cada vez mais diminutos, pouco nítidos, semelhantes, uma guinada e estava sobre o mar. Voando cada vez mais rápido, fui deixando a ilha para trás, a espera do que me impediria de chegar até o sol. De forma abrupta meu vôo foi interrompido, o cenário congelou. Fiquei flutuando sobre o nada, sem saber como voltar, como se a minha trajetória nunca tivesse sido prevista pelos programadores. Acima do horizonte, que de perto parecia um desenho de criança, e perdido, a sensação poderia ser a de um pesadelo. Felizmente havia um menu, hora de desconectar.
Bruno Medina é músico da banda Los Hermanos e escritor nas horas vagas. Nascido no Rio de Janeiro, formou-se em comunicação pela PUC-RJ, mas a música nunca permitiu que chegasse ao mercado publicitário. Começou a tocar piano e escrever histórias ainda criança, sendo que as duas aptidões o acompanham desde então.
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