21/06/2007
Bismillah, em nome de Deus Islã e democracia --será que esses dois termos são compatíveis? Os palestinos bem que tentaram, mas deu no que deu. Os dois principais pólos políticos locais, o secular Fatah, do presidente Mahmoud Abbas, e o religioso Hamas estão praticamente em guerra civil. A situação parece encaminhar-se para o surgimento, não de dois, mas de três Estados na região: além de Israel, um "Hamastão" em Gaza e o "Fatahstão" na Cisjordânia. A disputa fratricida só não é pior porque, em mais uma ironia da história, Israel fica no meio do caminho entre os dois territórios palestinos, atuando, mesmo que não o quisesse, como uma força de interposição.
Também no Líbano, o Estado árabe que mais se parece com uma democracia, as coisas vão mal. Na semana passada, mais um deputado anti-sírio foi assassinado, elevando as tensões e o temor de ressurgimento da guerra civil, que, entre 1975 e 1990, fraturou o país. Democracia aqui, é claro, é só um modo de falar. Em nenhuma outra parte do mundo julgaríamos democrático o Estado que dividisse sua população segundo características étnicas e reservasse para cada uma delas o seu quinhão "natural" de poder. Pois é isso o que faz a Constituição libanesa, ao determinar que o presidente do país seja necessariamente um cristão, o premiê, um muçulmano sunita, e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita. E isso apesar de os xiitas já constituírem a maioria dos habitantes. (Vale lembrar, "en passant", que a África do Sul tentou fazer algo parecido nos tempos do apartheid e obteve, muito justamente, diga-se, o opróbrio da comunidade internacional, reforçado por sanções econômicas que ajudaram a acelerar o fim do odioso regime de segregação racial).
A outra "democracia" regional é o Iraque, cuja situação já analisei na coluna da semana passada, onde, aliás, prometi este comentário sobre islamismo e democracia.
Não obstante, é forçoso reconhecer que é apenas nos territórios palestinos, no Líbano e no Iraque que a população têm tido a oportunidade de manifestar-se livremente nas urnas e os votos são contados de maneira minimamente séria, o que é condição necessária embora não suficiente para o estabelecimento de uma democracia.
A título de comparação, vale a pena dar uma olhadinha na vizinhança, onde prosperam democracias acintosamente fajutas. Na Síria, o presidente Bashar al Assad acaba de passar por um referendo no qual foi reeleito para um mandato de sete anos, com o apoio de incríveis 97,2% de seus concidadãos. Compareceram às urnas, nada menos do que 95,86% dos eleitores, apesar do boicote da oposição, que não pôde apresentar candidatos.
No Egito, o eterno presidente Hosni Mubarak obteve em 2005 seu quinto mandato consecutivo, com 88,6% dos votos. Ele está ficando mais modesto. Em 1999, ele obtivera 93,8%.
Saddam Hussein também era um sujeito popular nos tempos em que era ditador. Em 1995 ele fora aprovado por 99,96% dos iraquianos e, em 2002, conseguiu atingir a notável marca dos 100%.
O recorde absoluto, contudo, não pertence a Saddam. A crer num relato de Robert Fisk, do jornal britânico "The Independent", no longínquo ano de 1954, o ministro sírio do Interior, Mohamed Zaim, anunciou que o presidente Adib Shishakli tinha conquistado a Presidência com 104% dos votos. É claro que não colou. Os árabes sempre foram grandes matemáticos. A coisa foi tão grotesca que Shishakli mandou Zaim para o olho da rua, admitindo que o índice que obtivera havia sido de meros 99,9%.
Será que é só dar aos árabes a oportunidade de escolher livremente seus dirigentes que eles logo arrumarão um jeito de meter-se em guerra civil? A experiência indica que sim, mas não creio que o problema esteja na livre escolha, que apenas dá materialidade a divisões e dificuldades anteriores.
Por questões de espaço, limito-me a mencionar o problema das interferências externas e da religião. Palestinos libaneses e iraquianos, muito embora tenham podido votar livremente, não são bem senhores de seus destinos. Eles vivem sob ocupação militar estrangeira. No caso dos palestinos e dos iraquianos, ela é direta, exercida por israelenses e norte-americanos, respectivamente. No Líbano a situação é um pouco mais complicada. Embora a Síria tenha retirado suas tropas do país há um ano, o território libanês segue servindo de tabuleiro para a movimentação de milícias com agenda própria e fortemente vinculadas a interesses estrangeiros. O caso mais notável é o do Hizbollah, a força xiita que recebe apoio de Damasco e Teerã e é mais poderosa e bem-armada do que o próprio Exército Nacional Libanês. Se exercer a democracia já não é fácil mesmo para países "normais", muito pior --para não dizer impossível-- é tentá-lo sob os canhões de potências tidas como inimigas por parte da população.
Outro fator que pesa sobremaneira no Oriente Médio é a religião. Ali, para gáudio dos teólogos, as pessoas levam os mandamentos divinos a sério e chegam a explodir-se convictas de que, ao fazê-lo, carimbam seus passaportes para o paraíso. Não estou aqui afirmando que o islamismo é uma religião pior ou mais violenta do que o cristianismo, o judaísmo ou o hinduísmo. Embora eu não exclua pequenas diferenças, acho que, no final das contas, todas se equivalem na intolerância. Elas partem da crença de que Deus revelou a Verdade Imutável nos textos sagrados. Partindo desse pressuposto, não é preciso PhD em lógica para concluir que, se judeus estão certos, cristãos, muçulmanos e hindus estão irremediavelmente errados; se é o Alcorão que traz a palavra autêntica, então são todos os demais estão inapelavelmente condenados. Aceita essa forma de raciocinar, admitem-se, em nome de Deus, suicídios, assassinatos, torturas e todo o elenco de barbáries que o ser humano é capaz de perpetrar. Foi esse tipo de lógica que levou a Igreja Católica a torturar e assar "hereges" para "salvar-lhes a alma imortal". O cinismo não poderia ser maior: "eu o estou matando porque o amo".
A diferença entre o Ocidente cristão e o Oriente Médio islâmico é que nós, ainda que sem admiti-lo abertamente, paramos de ler a Bíblia e passamos, sem razões teológicas consistentes, a ignorar diversas de suas passagens --felizmente, eu acrescentaria. Já os muçulmanos, eles seguem lendo seus escritos "sagrados" e deduzindo o que deles há para deduzir: os infiéis estão condenados e é lícito matar em nome de Deus.
Eu receio que a única forma de conciliar democracia, tolerância e religião é fazendo com que as pessoas deixem de levar a religião a sério, ainda que fingindo manter-se fiéis a suas crenças. É isso o que, felizmente, aconteceu no Ocidente ao longo dos últimos três ou quatro séculos. Queira Deus que outros povos nos imitem.
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Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u305875.shtml