Conversa Esdrúxula
- Pois é, n’é? Esta coisa tola de vida após a morte... Não ‘tá vendo que isso não existe?
- Você é ateu?
- Não, não é bem isso... Eu até acredito que exista um Ser Superior, que cuida de todos nós... Mas esta baboseira de continuar vivo em outra dimensão... só mesmo uma pessoa muito inculta e limitada intelectualmente pode aceitar algo do gênero... Eu me formei em Medicina. Sou douto em assuntos de neurologia. Compreende que me é muito difícil aceitar a existência da alma, se já dissequei cérebros de cadáveres na academia, aos montes, e procedi a cirurgias em outros tantos maquinários encefácilos vivos?... Nunca vi nada que pudesse se assemelhar ao que se diz ser a alma ou o espírito...
- Mas como poderia ver ou tocar, se não se trata de algo material?...
O neurocirurgião não conseguiu conter um breve riso escarninho e, em seguida, disse:
- Bem... você tem o direito de acreditar... Quimeras, amigo, que já chamaram de metafísica e de teologia, mas que compreendo apenas como resquícios de tempos primitivos da cultura humana, pré-científicos. Não creio que precisemos cogitar, como hipótese de trabalho, da existência de um “fantasma na máquina” (*), para entender a fisiologia do cérebro e de outras partes do organismo humano...
- Mas a Medicina e a Biologia estão longe de explicar a décima parte dos intrincados mecanismos que subjazem à vida.
- Porque o tema é complexo, e demanda muito mais estudos e pesquisas...
- Na nossa escola de pensamento, somos levados a entender que nem mesmo a embriologia e os mecanismos evolutivos se explicariam sem a condução de um princípio inteligente, uma matriz espiritual que seja independente da matéria.
O médico fez um ar de enfado, coçou a testa, respirou fundo, e respondeu, em tom polido que mal lhe disfarçava a arrogância de grande profissional:
- Não gostaria de continuar nessa discussão. Percebo que o caro amigo tem convicções bem firmes e que possui avantajada cultura esotérica, mas não sou dado a essas superstições e misticismos pseudocientíficos, se me permite falar assim mais secamente. Portanto, pedir-lhe-ia me liberasse da conversação por hoje, e que tornássemos ao assunto em ocasião mais oportuna...
- Tudo bem, como queira. Jamais teria intenção de amofiná-lo. Pode voltar aqui, sempre que desejar e/ou receber autorização...
O neurocientista ilustre, um dos maiores nomes de sua classe, franziu o cenho e tornou a falar, com ar intrigado, após alguns longos segundos de visível esforço de reflexão:
- Pois é... prezado camarada. Já é esta a quarta semana sucessiva que venho aqui... e não entendi exatamente o que se passa. Sou trazido para cá, por gente educada e afável, mas não me explicaram o que realmente está acontecendo... Apresentam um discurso bizarro, de que estariam a mando de minha querida e saudosa mãe... Só que minha genitora está morta há muitos anos... E me conduzem a falar com você, nesta sala, na penumbra, em meio a grande movimentação silenciosa, de gente concentrada e, ao que me parece, em prece...
- Sim... é verdade...
- Poderia me falar mais claramente sobre o que ocorre por aqui e qual o propósito de minhas sucessivas visitas ao caro amigo?
- Não se recorda você de onde se encontra ou do que lhe aconteceu para estar por lá?
- Sei apenas que estou internado em instituição hospitalar, desde que me isolei para a extração de partes enfermiças do meu corpo... - e continuou, fazendo ar de confidência muito íntima - um câncer que me devastava os intestinos; de lá para cá, me venho sentindo bem melhor... só que...
- Só que?
- Não sei se estou exagerando ou fantasiando demais em minhas especulações...
- Pode falar à vontade...
- É que julgo haver sido transferido a outra unidade hospitalar, e suspeito não se tratar do meu querido Rio Grande do Sul. Vejo por aqui muita gente de cor negra e parda, e que faz uso, ao que percebo, do sotaque do Nordeste brasileiro... Destinaram-me uma freira de origem germânica e pronúncia sulista do idioma - novamente se inclinou, reduzindo o volume da voz, como a dizer algo inconfessável -, porque creio terem se apercebido de que não me sinto muito à vontade com essa gente mestiça; mas...
- Pode continuar...
- Não me permitem falar com nenhum ente querido...
- Estranho, não?
- Sim, deveras.
- O que você acha que pode ser?
- Não faço a mínima idéia, mormente no que respeita a esta história estrambótica de “enviados” de minha falecida mãe. Por isso, pensando cá com meus botões... cheguei a formular outra teoria, que explique o que se dá comigo.
- Pois não...
- Trocaram-me a ficha hospitalar com o prontuário de outro paciente, de modo que fui conduzido ao Nordeste indevidamente, em lugar de outra pessoa...
- Mas, pelo que me disse, na semana transata, eles o têm chamado pelo nome certo...
- Você tem razão... Creio que esteja tão confuso com a situação nova, que não me tenha dado conta de quão tola era essa especulação...
- Hum!... E quanto à sua voz?
- Como assim?
- Disse-me também, nas suas últimas vindas, que sempre se sentia tonto, estranho e, principalmente, com a voz alterada, toda vez que vinha falar comigo...
- Sim, é verdade...
- Ainda sente isso?
- Muito.
- Inclusive o timbre da voz?...
- Céus!...
- O quê?...
- Está pior ainda...
- Como assim?
- Deus... devo estar surtado...
- Descreva-me o que sente...
- Alguma coisa... muito grave... deve estar acontecendo... Minha voz... minha voz... não está só diferente... parece-me... uma voz... de MULHER!!!
- É... e você nota, também no seu modo de falar, o mesmo sotaque nordestino que lhe causou estranheza no pessoal que o assiste agora?...
- Céus! Tem razão!
- Abra os olhos para sua nova realidade, Dr. Carlos de Gusmão (*2). Você está, de fato, em outra instituição hospitalar, mas na dimensão extrafísica de vida... Seu veículo de carne não suportou a operação médica a que foi submetido; contudo, seu espírito eterno está aqui, vivo, como sempre, como nunca!... E a voz que percebe estranha, em sua fala, é da generosa médium que lhe cede o corpo, para que se manifeste em diálogo comigo, já que não sou dotado de apropriada psicovidência para vê-lo e ouvi-lo, nesta interação afetuosa e esclarecedora... Você realmente está no Nordeste do Brasil, mas não fisicamente, e sim em espírito, para onde foi deslocado a pedido de sua mãe Josefa, ligada, de muitos decênios, à nossa Instituição, em sua contraparte astral, e que reencarnou no Rio Grande do Sul para por lá recebê-lo no corpo, conforme programática cármica de ambos.
O médico-cirurgião começou a urrar de agonia, através da disciplinada médium, que lhe abafava os gritos: o choque lhe era por demais intenso. Desmaiou logo em seguida, em vertigem de desespero, imediatamente conduzido, em maca de nosso domínio de vida, para o quarto de hospital, onde repousava de sua crise de desencarne e adaptação à nova faixa de existência.
A médium se reaprumou na cadeira, após alguns minutos de retomada plena do aparelho cerebral.
- Ele está bem, amiga? - perguntou o esclarecedor.
- Está sim: foi carregado, deitado numa maca, ao quarto da organização hospitalar que o alberga. O impacto terapêutico da descoberta de seu novo estado de vida não poderia ser mais procrastinado. Agiu bem, amigo, em impeli-lo nesta direção.
A reunião mediúnica estava perto do fim. Um dos presentes proferiu sentida prece final, dirigida à Mãe Santíssima da humanidade, como sói acontecer em grupos espíritas ligados ao Instituto Voltaire, e o encontro de estudo e tratamento espiritual foi encerrado. Quinze espíritos infelizes, dominados pela idéia de materialismo e ateísmo, haviam sido atendidos por diversos médiuns componentes do grupo, direta ou indiretamente, através da incorporação completa ou pelas vias inspirativas do pensamento. Saímos confortados e intrigados com a cena curiosa, meditando em como são complexos os meandros do raciocínio humano, a ponto de permitirem se neguem realidades, por si sós já demasiado óbvias e auto-evidentes, e sobre como a criatura costuma se maltratar com a dúvida sistemática, a respeito da continuidade do que é - espírito imortal -, e que, portanto, não pode deixar de ser, nunca...
(Capítulo 17 de “O Instituto Voltaire”)
Benjamin Teixeira pelo espírito Gustavo Henrique. - 29/06/2007
Revisão de Delano Mothé
(*1) Conceito utilizado por teóricos, nos meios acadêmicos, que especulam haver uma matriz diretiva dos processos orgânicos, de um domínio imaterial de existência.
(*2) Pseudônimo.
(Notas do Médium)