O texto que segue não fala por mim.

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Lagosta suada Que fazer com Sarkozy? Eu não sei. A França também não. Nas últimas semanas, Paris despertou com polêmica feia sobre os hábitos desportivos do presidente. Sarkozy, ou "Speedy Sarko" (para os íntimos), gosta de correr. Diariamente. As imagens são conhecidas: Sarkozy acelera pela cidade e chega ao Eliseu de camisola suada. O horror, o horror.
E a França está horrorizada. Nas televisões e nos jornais, colunistas vários perguntam se o jogging é coisa decente. Não é, dizem, não é. O jogging é uma prática tipicamente capitalista, importada dos Estados Unidos e contrária à existência de qualquer pessoa civilizada. Alain Finkielkraut, filósofo e sedentário (uma redundância, eu sei), vai mais longe e aconselha Sarkozy a caminhar, de preferência lendo Rimbaud. E o sociólogo Patrick Mignon vai ainda mais longe: só regimes totalitários elegem o corpo como princípio e fim de todas as demandas. O culto do corpo é o culto da força e da vontade.
Eu sei que os meus leitores vão abandonar este artigo com a próxima frase. Mas, por uma vez sem exemplo, eu estou com a França pensante, e não com "Speedy Sarko". E não apenas por experiência pessoal - sim, fiz jogging uma vez na vida, a convite de amigos; no final, cortei relações com eles; até hoje. Mas eu estou com a França pensante porque o jogging, que eu abandonei à primeira, ainda não me abandonou a mim. Moro junto à praia e todos os dias, quando o sol se põe, hordas de alucinados invadem o calçadão para esticarem o corpo durante três ou quatro quilômetros de sofrimento e inutilidade. Observo tudo, de preferência sentado. O problema não é apenas estético. O problema é sobretudo ético: o jogging é uma declaração de guerra à decadência do corpo, mesmo sabendo que o corpo, no final, vai ganhar. Ou, se preferirem, perder.
Mas o caso ganha contornos particularmente deprimentes em França. Bem sei que Paris deu ao mundo o paradigma da revolução totalitária. Mas Paris deu também o "flâneur", o ocioso caminhante, de Baudelaire a Serge Gainsbourg. Foi Baudelaire, aliás, quem melhor resumiu o espírito da "flânerie", em peça clássica sobre o "dandy". Para Baudelaire, o "dandy" não se define apenas por uma preocupação excessiva com o vestuário. Para o "dandy", vestuário não é mais do que a expressão simbólica da sua mente aristocrática.
Porque o "dandy" é um aristocrata espiritual. Ele é a última expressão de heroísmo romântico numa era massificada. Como um astro que foi perdendo algum do seu brilho vital, conservando ainda um calor de fim de tarde.
E se os outros não perdem tempo em suas vidas mecânicas e utilitárias, o "dandy" perde todo o tempo do mundo. Como Beau Brummel, a quem devemos a invenção tão simples da calça e do casaco, e que demorava três horas matinais só para apertar o laço.
E se os outros correm para cumprir um dever, seja profissional ou sanitário, o "dandy" caminha. De preferência, levando uma lagosta pela trela, como Gérard de Nerval pelas ruas de Paris.
As ruas de Paris? Nem mais. A "flânerie" é uma forma respeitosa de respeitar uma cidade. E Paris é uma cidade que merece ser respeitada. Correr como um demente pelas mais perfeitas avenidas que existem, pingando suor e desinteresse pelas calçadas, é como jantar com uma bela mulher sem tirar os olhos do prato. É triste. É insultuoso. É, numa palavra, a barbárie.
Exatamente como as corridas de Sarkozy. Quem corre não perde tempo; quem não perde tempo, não contempla. E um político incapaz de olhar a Cidade, e aqueles que a habitam, será também incapaz de a entender e governar.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult2707u310314.shtml