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Tomemos nosso primeiro problema, o sentido da visão. Uma máquina que enxerga precisa resolver um problema denominado óptica invertida. A óptica comum é o ramo da física que permite prever como um objeto com determinada forma, material e iluminação projeta o mosaico de cores que denominamos imagem retiniana. A óptica é uma matéria bem compreendida, empregada em desenho, fotografia, engenharia de televisão e, mais recentemente computação gráfica e realidade virtual. Mas o cérebro precisa resolver o problema oposto. O input é a imagem retiniana, e o output é uma especificação dos objetos que há no mundo e do que eles são feitos – ou seja, o que sabemos que estamos vendo. E aí está o xis do problema. A óptica invertida é o que os engenheiros chamam de “um problema mal proposto”. Ele absolutamente não tem solução. Assim como é fácil multiplicar alguns números e enunciar o produto, mas é impossível tomar um produto e indicar os números que foram multiplicados para obtê-lo, a óptica é fácil, mas a óptica invertida é impossível. Entretanto, nosso cérebro a pratica toda vez que abrimos a geladeira e pegamos uma jarra. Como pode ser isso?A resposta é que nosso cérebro fornece as informações que estão faltando. Informações sobre o mundo no qual evoluímos e o modo como ele reflete a luz. Se o cérebro visual “supõe” que está vivendo em determinado tipo de mundo – um mundo iluminado por igual, composto principalmente de partes rígidas com superfícies regulares uniformemente coloridas –, ele pode fazer boas suposições quanto ao que está lá fora. Como vimos anteriormente, é impossível distinguir carvão de neve examinando o brilho de suas projeções retinianas. Mas digamos que exista um módulo para perceber as propriedades das superfícies e que embutido nele haja a seguinte suposição: “O mundo é iluminado de modo regular e uniforme”. O módulo pode resolver o problema do carvão ou da neve em três etapas: subtraindo qualquer gradiente de brilho de um extremo da cena ao outro extremo; estimando o nível médio de brilho da cena inteira; calculando a tonalidade de cinza de cada retalho subtraindo seu brilho médio. Grandes desvios positivos em relação à média são vistos como coisas brancas; grandes desvios negativos, como coisas pretas. Se a iluminação for regular e uniforme, essas percepções registrarão com precisão as superfícies do mundo. Uma vez que o planeta terra tem, mais ou menos, correspondido à hipótese da iluminação uniforme desde tempos imemoriais, a seleção natural teria procedido acertadamente incorporando essa hipótese.O módulo de percepção de superfícies resolve um problema insolúvel, mas isso teve seu preço. O cérebro abriu mão de toda pretensão de ser um solucionador geral de problemas. Ele foi equipado com um dispositivo que percebe a natureza das superfícies em condições de visibilidade típicas da Terra por ser especializada nesse problema local. Mude-se minimamente o problema, e o cérebro não mais o resolve. Digamos que vamos colocar uma pessoa em um mundo que não é banhado pela luz solar, e sim iluminado por uma colcha de retalhos de luz engenhosamente dispostos. Se o módulo de percepção de superfícies supõe que a iluminação é regular, deve ser seduzido a ter alucinações com objetos que não se encontram ali. Isso poderia acontecer de verdade? Acontece todo dia. Chamamos essas alucinações de projeções de slides, filmes de cinema e televisão. Quando vemos televisão, fitamos uma lâmina de vidro bruxuleante, mas nosso módulo de percepção de superfícies diz ao resto do cérebro que estamos vendo pessoas e lugares reais. O módulo foi desmascarado, ele não apreende a natureza das coisas, fia-se numa tela ilusionista. Essa tela ilusionista está tão incorporada à operação de nosso cérebro visual que não somos capazes de pagar as informações nele escritas. Nem mesmo no mais inveterado tele maníaco o sistema visual um dia “aprende” que a televisão é uma vidraça de pontos fosfóricos brilhantes, e a pessoa nunca perde a ilusão de que existe um mundo por trás da vidraça.
Algumas pessoas que nele habitam também o são...
Desculpem-me a longa citação.[...]Steven Pinker, Como a mente funciona