Ejilosberto Prudente das Dores Costa Figueiredo Prudente da Silva Júnior estava prestes a sair. Os ouvidos atentos de Dandrufo acompanhavam os estalos e rangidos do girar da chave no interior da fechadura enquanto o humano trancava a porta frontal da residência. Era difícil disfarçar, mas, orgulhoso, Dandrufo simulava uma certa apatia quanto às atividades rituais de seu patrão.
Deitado sobre a grama, seus olhos acompanhavam discretamente aquele percurso que conduzia Ejilosberto da porta do número 1562 da Rua dos Emburiaguás à Pé até o fusca 76 que o levava a algum lugar misterioso além do horizonte, e muito além dos limites daquilo tudo a que Dandrufo já se permitira explorar.
Não era um cão aventureiro, pois tudo o que precisava para atender suas humildes aspirações de satisfação canina pessoal estava por ali. A yorkshire ninfomaníaca da vizinha do lado, Hipoteneusa Guimarães Bastos da Babilônia de Oliveira Silva Aguiar não se importava com a sua falta de pedigree, muito pelo contrário, Gutisprincess sempre nutrira fantasias eróticas com vira-latas como ele, o que fazia dela sempre submissa às suas necessidades masculinas periódicas.
A vida não era ruim: quatorze horas diárias de sono, cafuné, comida, água, estraçalhar pequenos animais, o que mais poderia querer? Pelo menos isso é o que ele sentia até um evento singular mudar para sempre a história da sua vida. Semanas antes - embora a falta de percepção do tempo imposta pela natureza à rudimentar psique canina lhe impedisse de ter qualquer noção temporal sobre aquele evento que, se não arranhara sua memória como arranharia à de um humano experimentando semelhante situação, ao menos raspara a superfície da fina película de seus sentimentos - foi apresentado ao gatilho daquilo que pela primeira vez despertara em seu ser aquilo que um ser humano chamaria de cobiça ou de ambição. Infelizmente eu não me lembro o que era, mas tinha alguma coisa a ver com uma barra de cereais.
Seus sentidos aguardavam ansiosos por um momento àquele semelhante. Pálidos vestígios daquelas sensações eram experimentados como se trazidos pelo que poderia ser uma memória. Aquele suave sabor adocicado como jamais lhe houveram experimentado, aquela crocância substituída pouco a pouco pelo trespassar macio de suas presas pelo interior levemente úmido daquele maravilhoso objeto, o odor primaveril que tomava posse de seu olfato superior conduzindo-o catarticamente por aquelas vastas porções de mundo a que suas pernas nunca lhe transportaram. Esse mesmo olfato era quem acusava agora aquela presença mágica. Havia uma barra de cereais em cima da mesa.
Dandrufo entrou pela sua portinhola, pegou a barra, rasgou a embalagem e comeu. Depois foi dormir.