Uma definição simples e direta do que seria uma comunidade científica seria aquela que a considera uma “associação de pessoas vinculadas pela comunicação de informações” (cf. Kneller, 1980) Apesar de se tratar de uma definição correta ela é demasiadamente ampla, pois todas as comunidades se vinculam de uma forma ou de outra para a comunicação de informações. Poderíamos acrescentar, portanto, que nas comunidades científicas não é qualquer informação que é comunicada, mas somente a informação “cientificamente relevante”. Várias questões surgem daí, por exemplo: o que será considerado informação cientificamente relevante? Ou ainda: como se faz para ingressar e contribuir com o diálogo científico? E, finalmente: o que está em jogo na comunicação científica?
O mesmo autor citado mais acima, George Kneller, nos apresentará algumas idéias interessantes para tentarmos chegar a algumas respostas. Em primeiro lugar, ele apoiará sua definição de comunidade científica nas tradições de pesquisa existentes em todas as ciências. Essas tradições de pesquisa são responsáveis por grande parte das investigações originais sobre um determinado tema, bem como pelo lançamento de novas linhas de pesquisa. O autor as definirá como “colégios invisíveis”. Em suas palavras:
“Um colégio invisível é um grupo ou escola de cerca de dez a uma centena de cientistas trabalhando numa tradição de pesquisa. Os seus membros mantém-se em contato assíduo, usualmente verbal, e evitam os canais mais lentos de comunicação formal. O grupo pode ser um de muitos que aplicam um programa abrangente de pesquisa a diferentes classes de fenômenos e problemas, como na ciência normal kuhniana. Ou pode ser uma das várias tradições que competem dentro de uma especialidade, como no caso dos grupos de Bohr, Rutherford e Fermi na física nuclear. Ou poderá ser deliberadamente revolucionário, lançando uma nova tradição de pesquisa contra uma já estabelecida.” (Kneller, 1980: 183)
Como se pode perceber os “colégios invisíveis” na verdade são chamados assim porque o diálogo ocorrido entre pesquisadores e pesquisadoras das mais diversas “escolas” não é visto acontecendo. Seu caráter marcadamente verbal tende a ser momentâneo e acaba sendo capturado apenas em citações, referências bibliográficas e notas de rodapé dos trabalhos, monografias e artigos científicos, lugares onde também se vê com freqüência a competição entre pontos de vista acerca de uma determinada interpretação científica. A “informação cientificamente relevante” acaba sendo justamente aquela que é trocada entre pesquisadores de uma ou mais tradições de pesquisa que visam nesta “troca” reforçar ou derrubar uma interpretação acerca de um fenômeno. São nesses “colégios invisíveis”, portanto, que se dá a “seleção natural das teorias” (cf. Freire-Maia, 1991): a mais forte sobreviverá.
Porém, a metáfora de que comunidades científicas seriam “colégios invisíveis” pode acabar nos levando a pensar no debate dos cientistas como um debate entre fantasmas e não uma atividade feita por pessoas de carne e osso. Afinal, a ciência é uma atividade humana e como tal é necessariamente organizada por regras e valores. Tratar as comunidades científicas como “colégios invisíveis” pouco nos esclarece sobre como ingressar neles, para isso, vale a pena ler o que os “sociólogos da ciência” tem a dizer. Segundo W. O. Hagstrom:
“A socialização dos cientistas tende a produzir pessoas aderindo de tal forma aos valores centrais da ciência que, sem pensar, os aceitam. A investigação como atividade acaba por se tornar ‘natural’ para os cientistas: parece-lhes evidente as pessoas excitarem-se com descobertas, interessarem-se intensamente pelo funcionamento em pormenor da natureza e lançarem-se na construção de teorias que não tem qualquer aplicação na vida quotidiana. Desenvolvem uma hierarquia de motivações em que a curiosidade em relação à natureza e um interesse em a compreender surgem como um componente intrínseco, importante da personalidade humana.
Essas adesões são o resultado de um longo processo de aprendizagem, que se prolonga pela vida adulta, em que o estudante é efetivamente isolado de outros interesses intelectuais ou vocacionais, ficando extremamente dependente dos seus professores. O professor não só controla a sorte do seu estudante, determinando se lhe será permitido ou não entrar numa profissão científica e, no caso afirmativo, para que tipo de instituição, mas até o conceito que o estudante faz dele mesmo depende da reação do professor; a apreciação do professor tende a ser tomada pelo estudante como uma indicação daquilo que ele é.” (1974: 81-82)
E, mais adiante, Hagstrom completa:
“Os efeitos da socialização científica são reforçados por um sistema de recrutamento altamente seletivo. Da fração da população que entra no ensino superior, só a uma fração dos que estão interessados é permitido inscrever-se e seguir um curso superior complementar. A competição tende a ser muito dura nesses cursos, e só os estudantes com mais motivações e mais competentes conseguem alcançar o doutoramento. Entre os que obtém doutoramento em ciência, só a uma fração é permitido entrar em carreiras de investigação pura; os restantes tornam-se professores secundários, administradores, e cientistas das ciências aplicadas. Os cientistas puros formam pois um grupo de elite altamente selecionado e altamente socializado.” (idem: 83-84)
O que Hagstrom nos aponta é para a autonomia relativa da ciência (e dos cientistas) frente à sociedade na qual a mesma se realiza. Dito de outro modo, as comunidades científicas possuem uma independência limitada diante das condições econômicas, sociais e políticas que a tornam viável. Este é também um fator de hierarquização das próprias ciências no interior de uma sociedade.
Olhando para nossa sociedade brasileira somos obrigados a concordar que atualmente as Ciências Exatas (ou da Natureza) são mais valorizadas e prestigiadas do que as Ciências Sociais. Um olhar mais atento sobre a vida nas respectivas comunidades a que se referem estas modalidades do pensamento científico chamaria nossa atenção para o valor que os cientistas atribuem às publicações em artigos e livros e à luta pela prioridade das “descobertas”. Tudo isso nos faz pensar até que ponto o que está em jogo na comunicação científica é apenas o interesse pelo “funcionamento em pormenor da natureza”. Se a ciência é uma atividade humana e se os cientistas são membros de comunidades científicas tanto quanto de sociedades particulares, sejam elas capitalistas ou socialistas, democráticas ou ditatoriais, teocráticas ou leigas, então só podemos concordar que as pessoas que fazem ciência regem-se tanto pelos valores de suas tradições de pesquisa quanto pelos valores, crenças e motivações de sua sociedade.
A constatação deste fato gera cenários interessantes de diálogo e competição sobre o conhecimento cientificamente válido (pensemos, por exemplo, na disputa entre Peter Duesberg e Robert Gallo quanto ao descobrimento do HIV). No fundo trata-se de um campo de competição pelo monopólio da competência científica, ou ao menos é o que nos sugere o sociólogo Pierre Bourdieu em seu texto: “O campo científico” (s/d). Para Bourdieu os campos se apresentam como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas características dependem do arranjo destas posições nestes espaços para serem analisadas. Cada uma das posições também pode ser analisada independentemente das qualidades de seus ocupantes. E finalmente, devemos ter em mente que existem leis gerais que se aplicam aos campos, por mais diferentes que eles sejam entre si.
Esta definição de “campo” soa um pouco difícil, é verdade, mas estou certo de que ao entendermos seu significado perceberemos o quanto ela é útil para descrevermos e analisarmos o “campo científico” engendrado nas e entre as comunidades científicas. Por isso vamos aplicar a “teoria dos campos” de Bourdieu ao campo de futebol.
Neste caso, vemos dois times, com seus respectivos jogadores, um juiz, a bola e as torcidas. Cada um ocupa uma posição no espaço do gramado e cada posição desempenha funções que podem ser percebidas independente de qual jogador a esta ocupando, por exemplo, a posição de atacante, de zagueiro, de goleiro e etc. É evidente que o desempenho do jogador em cada uma dessas posições determinará grande parte de seu prestígio e reconhecimento. Não é difícil para quem entende de futebol lembrar de grandes goleadores, goleiros, laterais, cobradores de falta, e por aí vai. Agora, o que é mais importante é que cada um deve desempenhar sua função a partir de determinadas regras. Estas regras não são visíveis. Elas estão dentro da cabeça de cada um dos participantes e mesmo das torcidas que só podem se emocionar com o jogo porque sabem o que significa uma bola dentro das armações retangulares em cada extremidade do gramado. É seguindo as regras, ou até dobrando-as, que se consegue provar a qualidade ou competência do jogador, isto quer dizer que é reconhecendo a estruturação prévia das posições, funções e regulamentos do jogo que se pode desenvolver e conquistar as habilidades necessárias para superar os demais jogadores. Não é raro, porém, que se quebre as regras ou se jogue deslealmente.
Vamos voltar agora às comunidades científicas e colocar no lugar dos jogadores de futebol os pesquisadores das mais diversas ciências. Cada um ocupa uma posição específica no campo científico. Cada posição é mais ou menos valorizada em função das regras estabelecidas, porém os cientistas têm o poder de investir sua posição de autoridade ou a menos lutam para conquistar este poder. Assim como no jogo de futebol, faz-se necessário que os jogadores concordem com as regras, promovendo uma certa cooperação. É esta cooperação que viabiliza a competição. Por isso podemos dizer, que as comunidades científicas, como os times de futebol, são comunidades de cooperação competitiva. (cf. Merton, 1974: 46) Tanto num caso como no outro, os cientistas e os jogadores estão expostos a valores contraditórios, quais sejam, superar a competência dos adversários que jogam o mesmo jogo que eles. Para isso devem contar com colaboração dos próprios adversários que por sua vez se esforçam na mesma direção. É isto que torna o jogo viável e o conhecimento científico dinâmico. Trocam-se informações como trocam-se passes. É impossível propor uma jogada sem a aceitação de cada um dos parceiros concorrentes.
Vemos assim, como, em cada comunidade científica, não se produz nada sem supor uma forma específica de interesse por parte dos cientistas-jogadores e que este interesse será considerado legítimo ou não em função do conhecimento da posição ocupada pelo cientista nas hierarquias instituídas (as universidades federais X faculdades particulares, no caso do Brasil, ou os laboratórios americanos X europeus, etc.). Nas palavras de Bourdieu: “O que é percebido como importante e interessante é o que tem chances de ser reconhecido como importante e interessante pelos outros; portanto, aquilo que tem a possibilidade de fazer aparecer aquele que o produz como importante e interessante aos olhos dos outros.” (s/d: 125)
Poderíamos levar a comparação entre o campo científico e os campos de futebol mais adiante e perceber que enquanto uns visam acumular “capital científico” ou autoridade, outros visam acumular “capital esportivo” ou troféus. Em suma, todos visam obter alguma forma de reconhecimento, para, através deste reconhecimento, impor sua maneira de jogar. Cada um tem os “títulos” que merece...
http://www.ucb.br/prg/comsocial/cceh/textos_comunidade.htmInteressante a abordagem sociológica, e a comparação com o futebol.