Toda ideologia é um sistema de idéias, de símbolos, de critérios, de atitudes que têm uma coerência entre si, de tal modo que se distingue e mesmo se opõe a outro sistema de idéias, etc. Toda ideologia serve para acolher, selecionar e controlar a informação. Embora a ideologia participe de toda a cultura humana, nem por isso se confunde com esta.
A cultura é mais ampla que a ideologia, porque inclui idéias, símbolos, atitudes não coerentes, não lógicas entre si (como os sonhos, a poesia, os gestos espontâneos), além de objetos, de costumes e mesmo de crítica à ideologia, de atitudes éticas. Cultura é cuidado ou cultivo da vida em todas as suas formas, sejam humanas, espirituais ou naturais.
As ideologias podem ser mais ou menos consolidadas, na medida em que expressam idéias, símbolos, critérios, atitudes de indivíduos ou de grupos sociais. Geralmente, as ideologias articulam idéias de grupos e mesmo de classes sociais. Nestes casos, o controle das informações é mais evidente do que o acolhimento e a seleção. O controle expressa o poder de dividir, de separar o que está dentro e o que está fora da ideologia e portanto do grupo que a defende. As ideologias grupais estabelecem e matêm alguma forma de dominação entre dirigentes e dirigidos, funcionando como cimento social dos grupos.
Quando a ideologia expressa e articula idéias e atitudes de um indivíduo sem contar com o apoio do grupo do qual participa, ela geralmente é vista como desvio ideológico, opinião pessoal, perturbação, erro, etc. Os bloqueios à criatividade são em geral ideológicos. Um indivíduo se sente inibido ou emocionalmente bloqueado na medida em que não compreende e portanto teme a ideologia do grupo que o cerca. Compreensão é o início da libertação social, da criatividade individual, da qual depende a criatividade coletiva. A opinião pessoal e o gesto espontâneo são aspectos que confirmam e dão continuidade à compreensão libertadora.
A ética é a noção de limite do poder (controle da informação) existente nas ideologias. A atitude ética se distancia do poder sobre os outros (e sobre a natureza) e evita ser objeto de qualquer ideologia. A ética pressupõe liberdade psicológica e desenvolvimento do potencial humano, ou seja, do potencial intuitivo, perceptivo, intelectual e emocional do indivíduo. Ao justificar sua atitude ética, no entanto, o indivíduo compõe necessariamente uma ideologia sobre a ética. E novamente corre o risco de ficar prisioneiro das limitações ideológicas e de usar seu discurso como poder sobre outrem.
Portanto, as atitudes éticas dependem de uma constante crítica das ideologias, inclusive e principalmente das ideologias sobre ética. Esta perde seu sentido humano ao ser aprisionada em discursos desvinculados de práticas correspondentes.
A crítica das ideologias, que possibilita a ética, depende de uma compreensão do funcionamento e do sentido das ideologias. É preciso saber a quem elas beneficiam e a quem elas bloqueiam, em cada circunstância. É preciso desvendar a lógica do poder, a forma pela qual os poderosos utilizam as informações para manter-se como dirigentes de grupos.
Como conseqüência desta reflexão, conclui-se que a ética é uma atitude sempre transitória, que requer do indivíduo uma liberdade e um desenvolvimento de seu potencial humano maiores, mais profundos do que as atitudes não-éticas ou contrárias à etica. Agir eticamente é arriscar-se a ser humano em um grau mais elevado, a partir do qual é possível perceber as limitações ideológicas e comportamentais dos grupos.
A noção de ética, na antigüidade, distinguia-se da de moral, enquanto que na modernidade estas duas noções tendem a se confundir. Em parte esta confusão ocorre devido ao uso que dela faz a mídia, tratando os termos como sinônimos. E em parte pode-se compreender a aproximação destas noções como decorrência de transformações da vida moderna.
Na antigüidade, ética referia-se ao caráter verdadeiramente público; referia-se às normas válidas para todos; um homem de caráter, com princípios éticos, tinha a confiança de todos. Ética é então honestidade, transparência, respeito ao bem-público. Com a emergência da filosofia, a ética passa a ser objeto de reflexão a partir de diferentes pontos de vista (ideologias). Por isso o dicionário Aurélio, por exemplo, define ética como "estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem ou do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto". A complicação da linguagem pode dar a falsa impressão de que somente os filósofos estão autorizados a falar de ética.
Já a noção de moral estava, na antigüidade, associada aos costumes das famílias, das tribos, dos clãs. Moral é o conjunto de regras de conduta consideradas válidas para um grupo. É a ideologia dominante de um grupo. A reflexão sobre as diferenças das regras morais entre si gerou a necessidade de crítica e autocrítica dos discursos sobre o que é certo e o que é errado dentro de cada conjunto de regras. O intercâmbio comercial e cultural dos povos fez com que esta reflexão se estendesse como forma de busca de entendimento entre diferentes culturas.
Na modernidade, fala-se de moral racional, na medida em que à razão humana é dado o direito de distinguir o que permanece válido e o que está ultrapassado. A moral já não é deduzida de um livro sagrado ou de algum ritual, mas submetida à crítica racional. Mas também a moral que se pretende racional pode fechar-se como ideologia e tornar-se dominante, impondo-se a diferentes culturas por meio de força, de persuasão e de leis.
A busca de uma excelência moral equivale à busca da ética, na medida em que a crítica racional incluir uma crítica de seus próprios limites ideológicos. A noção de poder estendeu-se do Estado para a sociedade e portanto a noção de ética também se ampliou -- como espaço de reflexão que delimita o uso do poder entre os indivíduos, e que requer destes um desenvolvimento equilibrado de suas potencialidades humanas.
O desenvolvimento do potencial humano vai além da melhoria da personalidade, da sociabilidade. Requer autocompreensão, autopercebimento. A observação isenta de nossas atitudes, de nossos gestos, de nossos pensamentos e emoções em cada circunstância, com o intuito de aprender sem acumular, sem condenar e sem justificar, com o propósito de conhecer em profundidade o que e quem somos é o passo inicial para desencadearmos um longo processo, que se estende por toda a vida.
Este processo de observação e aprendizagem pode ocorrer a qualquer momento. Não requer esforço, conhecimento técnico, isolamento social, ritual ou qualquer equipamento além de nossos próprios recursos naturais, intuitivos, perceptivos, emocionais e intelectuais.
Em momentos dramáticos a vida impõe a opção por valores morais, que podem ser individualistas, antropocêntricos e instrumentalistas, de acordo com as ideologias dominantes. Ou libertários, solidários, altruístas, ecológicos, de acordo com as ideologias atualmente dominadas. A criatividade e a ética podem abrir caminho entre as ideologias, renová-las por dentro, ampliando seus horizontes.
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