PUREZA
Fábio está deitado na cama como sempre, cheio de langor e sono e tempo livre. Não se sente mais aquele menino, nem quer; aquele garoto magricela e branquelo, isolado e tímido é agora um homem: ambos fracassados.
Dim-dom, a campainha toca. Molemente Fábio estira o corpo numa nobre tentativa de despertar o cérebro. De fato, não pediu comida. Deixou de pagar alguma conta? Força, lembre-se. Contas pagas, fome saciada. Alguma visita? Não pode ser. Quem se lembraria dele a esta altura. Mamãe? Esta o proscrevera – filho maldito. Papai? Só se sair do túmulo arrastando o cadáver. Definitivamente não podia ser ninguém. Ao que se lembrava mulher alguma o procurava há muito – elas não o achavam lá grande coisa e ele resolvera assumir o despeito camuflando-o de orgulho – dispensou-as. O vizinho reclamando? Do quê? A televisão está baixa, o som desligado. O quarto cheira razoavelmente – há três dias tivera uma crise de ânimo, passageira, onde aproveitou para faxinar o local. Não é ninguém. Para todos os efeitos a campainha nem tocara; algum resíduo de tempos pré-históricos. Isso! Vamos deixar assim. A campainha não tocou, não é ninguém, nada foi ouvido. Pode continuar a fazer o que estava fazendo, Fábio, pode continuar dormindo, não é ninguém.
Dim-dom. Não pode ser. O som feérico é da cigarra elétrica. Será uma fada na porta a anunciar: Fábio, pode continuar seu sono, que esta que aqui está na verdade não está. É seu sonho. É um jeito dele lhe avisar que você sonha, afinal, todo mundo sonha, até você Fábio, até você.
Dim-dom. Não era sonho, não era imaginação e pelo jeito a campainha prosseguirá tocando e far-se-á insuportável. Por isso, num esforço supremo de concentração, Fábio se levanta da cama e de cuecas mesmo vai à porta do apartamento atender.
Uma moça esquálida e macilenta sorri amarelo, literalmente amarelo (por causa dos dentes). Sorrir é forma de expressão. A moça arreganha os lábios – é toda sua capacidade de sorriso. Ele a repara dos pés à cabeça. Bela fada! Além da sua aparência seu vestido não ajuda, coisa rota, amarfanhada. Estão subindo indigentes no edifício?
-O que você quer? – pergunta Fábio.
A moça responde numa voz mínima.
-Você não se lembra de mim?
Não, Fábio não se lembrava. Já vira gente fodida; ele próprio considerava-se, aliás, bem fodido, mas essa moça ganhava folgado o troféu “os mais fodidos, primeiro prêmio”. Como era muita fodição para um dia, para acabar logo com aquilo, ele foi fechando a porta, dando as costas. Já divisava sua cama, seu reino, quando a moça, a fadinha, interpôs o braço e disse:
-Sou eu, a Débora – a voz muito sumida.
Isso não a ajudou em nada. Quem diabos era Débora? Voltando-se para observar mais detidamente não encontrou sinal que a associasse alguma Débora das suas lembranças.
-Não tenho dinheiro. Não vou dar esmolas. Vá embora.
-Eu sou a Débora, Fábio.
Ela sabia seu nome. Grande coisa.
-Me deixe entrar – ela implorava.
Por que ele a deixaria entrar? Acaso seu apartamento virara abrigo? Ela que fosse mendigar em outro lugar, longe dali.
E pela segunda vez ele foi fechando a porta, com redobrado vigor para ela não poder segurá-la, a imaginação na cama. Não houve resistência. Só que a porta ficara entreaberta; mal se instalara e já tinha que se levantar novamente. “Saco! Débora vá embora, você não é a fada encantada disfarçada em bruxa”. Abriu a gaveta do criado mudo, achou uma nota de dez. Era muito, mas pelo seu antigo sossego tudo era válido, até preciosos dez reais.
Esticou o dinheiro, ia dizer “tome, vá andando”, quando tropicou no corpo dela caído no chão. A porta não se fechou porque o corpo dela jacente obstava-a.
-Pare de fingir. Vou lhe dar dinheiro. Tome – disse tocando-lhe o braço. Foi quando notou que estava quente. Apalpando a testa e as faces sentiu o calor que emanava da pele: queimava em febre. Uma bolsa puída pendia da mão pequena. Abriu-a, buscando um documento. Um velho RG mostrava a foto de uma adolescente bonita e revelava um nome: Débora dos Santos Vieira.
“Débora... Débora... Deus do céu, será possível esta carcaça inerme e estropiada ser a Débora do ginásio? Não, não será. Ou será?” Na dúvida , Fábio vai à estante procurar o álbum de fotos do colégio. “Deus do céu, é ela”. Pelo menos as fotos do RG e do álbum combinam.
-Débora, acorda. Acorda!
Mas ela babava pelo canto da boca. Não tinha cara de quem ia se levantar para ir à cama. Fábio teve de a carregar até lá, o que, entretanto, não exigiu tanto esforço; a mulher, de tão magra, pesava feito pluma.
E se ela morresse ali, na sua cama? “Saco!” Ele não queria dormir numa cama que abrigara um morto. Sentiu arrepios.
-Débora, acorda porra!
Se palavrão recuperasse moribundo o negócio era encher os hospitais com o pessoal dos botequins. Fábio não se dava conta.
-Caralho, Débora, não vá morrer na minha cama.
Sem saber o que fazer Fábio zanza pelo apartamento incapaz de se decidir. A moça então balbucia:
-Fábio. – Este corre à cama encostando o ouvido na boca dela.
-Fala Débora.
-Por favor, me dê um remédio para febre.
-Qual?
-O que tiver.
-Não vai fazer mal?
-Não posso ficar pior.
Fábio sai gritando “porra, porra”, procurando desembestado uma aspirina, um comprimido qualquer. Volta um minuto depois com um copo d’água numa mão e o remédio na outra.
-Você vai melhorar? – Fábio pergunta.
-Não, vou morrer. – A voz é baixa, quase um sussurro.
-O que você tem? – Fábio está assustado.
-Saudades.
-Ninguém morre de saudades.
-Serei o primeiro caso.
-Olha, Débora, chega de brincadeirinha mórbida.
-Vou morrer – a vozinha ainda mais apagada – o que pode ser mais mórbido?
O que ele podia responder? A moça estava morrendo. E morrendo na sua cama. O fim da picada.
-Vou levá-la ao hospital – disse por fim.
-Não por favor.
-Lá eles podem tratá-la melhor.
-Não, eles vão me espetar, enfiar sondas e no final vou acabar morrendo da mesma maneira. Ninguém pode me ajudar, só você.
-Eu? Que posso fazer? Vê-la morrer?
-Você pode me salvar.
Salvá-la? Como? Não era médico, nem padre, o que espera ela que ele faça?
-Vou telefonar para sua casa. Qual o seu número?
-Não tenho casa.
-Bom, você deve morar com alguém, com sua mãe, seu pai. É casada?
-Eu só tenho você.
-Débora, chega de absurdos.
-Só tenho você.
-Faz quinze anos que a gente não se vê.
-Eu nunca o esqueci.
-Porra Débora, agora não é hora disso.
-Eu te amo.
Ah! Tudo estava esclarecido. Sim senhor. Aquela garota moribunda, soltando os últimos suspiros na sua cama declarava seu amor – com quinze anos de atraso.
Fábio bem se lembrava da fadinha no colégio. Uma boneca. Tinha uns cabelos cacheados e era a única genuinamente loura. Ele não era muito enturmado, mas o seu pessoalzinho admirava a rapariga: “gostosa”. Menina de quatorze anos já pode ser gostosa e pensando bem, Fábio considerou, mulher é mais gostosa aos quatorze.
Agora que ele está grandinho, quase trintão, não fica bem ficar admirando as meninas de catorze; para isso existem as de dezoito, dezenove...
Essa Débora não era mais a fadinha de outrora. Poderia até ser bonita, mas do jeito que está parecia um ente desencarnado. E o amava. Os quinze anos de atraso!
-Vou telefonar para o hospital.
Ela segurou sua mão ou tentou; havia muita fraqueza. Os olhos brilhantes – como saber se de febre ou de amor! – pedem, imploram, suplicam. Fábio não tem mais quinze anos, é homem feito.
-Lembro que você veio se declarar a mim na escola – a mesma vozinha exigente de ouvidos apurados.
-Você se lembra disso? – pergunta Fábio surpreso. Ele juntou todas as suas forças juvenis, socou-a numa massa informe de coragem, engoliu em seco duzentas vezes, e foi-se declarar à fadinha quando ela estava entre as amigas no meio do pátio. Não foi uma boa hora. Se bem que hora nenhuma teria sido boa. A fadinha era a deusa que fazia suspirar os colegas mais vetustos – eram paparicos, rapapés, salamaleques. A menina julgou, com a sabedoria típica das adolescentes de quatorze anos, que estando tão acima do comum das meninas, dados os fatos, as provas e as teses, guri nenhum daquela escola estaria à altura do olimpo do seu ego.
“Não Fábio”. Ele bem se lembrava das palavras.
-Lembro-me que você disse não.
-Eu era uma criança – novamente o fio de voz – uma criança mimada.
-É. Éramos crianças. Tinha amor de criança. Paixão de criança. Você é agora adulta e tem febre.
-Tive sempre febre. Primeiro foi a febre da juventude; dos vestidos, das roupas coladas, dos rapazes, dos carros velozes. Depois, a febre das sensações; dos cigarros, do álcool, das drogas, do sexo. Minha febre é como um móvel que muda de cômodo; saiu de dentro, veio para fora.
-Você está delirando. – Fábio agarra o telefone começando a discar o número da emergência.
Um acesso de tosse invade Débora, tão violento, sacolejando o corpinho mirrado. “Cof, cof, não por favor, não, cof, cof”.
“Ela vai morrer na minha cama expelindo pedaços do pulmão”. Ainda mais assustado ele a segura tentando ampará-la; em vão. Os estertores duram cinco longos minutos.
-Não me deixe.
Não tinha escolha. Para aonde iria? Deixá-la morrer sozinha enquanto dava voltas pela cidade? Quem sabe um cinema? Era uma idéia tentadora; abandonar a fadinha.
-Estou com AIDS.
-Não foi de mim que pegou – diz com raiva. A mulher infectava a cama, o apartamento, o prédio todo. Instintivamente ele se afasta.
-Se eu tivesse ficado com você tudo teria sido diferente.
-Não entendo.
-Você era pessoa pura. Um garoto puro - novo acesso de tosse. – Me olhava aonde quer que eu fosse, andava atrás de mim feito um cachorrinho. Você me amava.
-Você nunca ligou. Que me lembre, todos debochavam de mim, você mais que todos.
-Tinha que fazer o que todos esperavam. Você era um garoto ridículo, tímido, desajeitado. Como poderia ficar com você?
-Está dizendo que gostava de mim, mas não ficou por causa do que os outros iriam pensar?
Débora assentiu com a cabeça. A respiração profunda, irregular.
-Essa é boa. Que história!
-Você foi a única pessoa que realmente me amou, Fábio. Seu amor era verdadeiro. Os outros só me maltrataram. Todo homem que conheci me tratava com puta. Eles me deram tudo; me deram casa, carro, jóias. Em troca eu dava uma trepada; uma trepada cinematográfica. Era um filme pornográfico, só que além de trepar com o ator, trepava com o diretor, o câmera-man, o contra-regra. Depois eu trepava por nada, por uma cheirada. Quando eles se cansaram de mim eu trepava por um pedaço de pão.
Seu olhar se torna vidrado. O suor abundante molha o vestido.
-Calma Débora. Vou trazer uma toalha para enxugá-la.
Com a toalha na mão Fábio começa a enxugar seus braços, seu rosto. O vestido está em sopa.
-Pode tirar o vestido.
-Não é preciso – um resíduo de pudor.
-Eu sou puta – ela tosse. – Vamos, tire o vestido. Não tenho mais nada a esconder.
O corpo dela está cheio de manchas. Fábio nunca vira alguém tão magro. Sentiu novo arrepio indefinido – impossível dizer se asco, desejo ou ambos.
-Você era puro – ainda a vozinha.
É porque ela não o conhecia de perto. Roubara a herança da mãe para viver na farra. Mamãe agora vivia num asilo funesto e do dinheiro somente restava uns trocados. O anjo Fábio, o puro...
-Chega de ficar falando isso.
-Eu sei o que aconteceu entre você e sua mãe.
-Sabe? – Fábio não esperava que a sacanagem que fizera com a mãe fosse de domínio público.
-Não foi culpa sua.
-Não. Eu obedecia a vozes da minha cabeça.
-Fomos vítimas, você e eu, de nossas mães. Foram elas que nos foderam.
Mais tosses.
-Foi minha mãe que me arrastou para essa vida. Ela vivia dizendo “Você é linda, nada de namorar os pobretões do bairro”; “Você não quer ficar como eu, dona de casa gorda de subúrbio?”; “Namore um rapaz bem formado, de sólida situação financeira”; “Débora, você vai voar longe daqui, dessa gente” – cof, cof, cof; a tosse interminável.
-Ela não mandou você cheirar, trepar com todo mundo, virar puta.
-Não. Ela só me disse para esquecer de amar e quem não trepa por amor trepa pelo quê?
Era verdade. A mãe fodera Débora. Uma filha bonita só serve para agarrar um bom partido. Mas a mãe dele nada fizera.
-Você me amava Débora? – havia emoção na voz, algo que pensava estar morto. Fábio não se julgava capaz de amar.
-Eu te amo! Faça amor comigo agora.
-Não posso. Você está morrendo...
-Não quero morrer sem ter amado alguém de verdade! Faça amor comigo agora, por favor.
Confuso, Fábio não sabe o que fazer. A adolescência volta e todo seu influxo; desejos, paixões, sonhos desenfreados se misturam. Ele ama Débora, sempre a amou – tudo teria sido diferente se tivessem ficado juntos.
-Tem uma camisinha na minha bolsa.
Sem bem saber o que estava fazendo Fábio deita sobre ela; a camisinha no membro.
-Vem, vem – ela diz na voz mais baixa até então, mas ele a ouve, nunca ouvira tanto.
O corpo dela embaixo do dele ferve; é a febre, o desejo. Fábio imaginou que a penetração seria difícil, mas ela estava úmida. Tudo foi muito fácil, muito rápido. Débora gemia, estertorava, tinha seu último instante. A febre a fazia contorcer-se, mas havia algo mais: um prazer louco, selvagem. Ela estava gozando, Fábio sentia, gozando como nunca, talvez pela primeira vez na vida.
Eram marido e mulher; a simbiose perfeita. Fábio, então, lembrou-se da mãe: “Você nunca vai ser nada”, “Sai desse canto menino”. Débora tem razão: sua mãe o fodera. Ele era puro; não fosse mamãe, Fábio seria outro, melhor.
Percebe que estivera sempre esperando por ela, sua Débora, sua fadinha de cachinhos amarelos. Ele não ia deixar de gozar na sua esposa, não lhe ia negar seu sêmen. Num arroubo arranca a camisinha atirando-a longe. Penetra, penetra fundo: forte, rápido, violento; e o suspiro dela morrendo se confunde com o dele gozando.