Cena de estupro em 'Caçador de Pipas' causa polêmica Amantes de livros e cinéfilos estão aguardando ansiosamente a estréia, em novembro, da versão para o cinema do romance
O Caçador de Pipas, um bestseller internacional.
Mas, antes mesmo de estrear, o filme já está provocando polêmica no Afeganistão, país onde se passa grande parte da narrativa, e nas comunidades da diáspora afegã.
Escrito em 2003 pelo americano de origem afegã Khaled Hosseini, o livro abrange desde os anos anteriores à guerra na Cabul dos anos 70 até a brutalidade do governo Talebã.
O romance toca em temas como o exílio, o desejo de um filho de agradar seu pai e - acima de tudo - fala de amizade e traição na relação entre dois meninos, os personagens centrais do livro.
PerturbadorO menino Amir assiste ao estupro de Hassan, seu leal amigo e empregado, por um marmanjo psicopata.
Ao invés de socorrer Hassan, Amir foge. O incidente muda a amizade dos dois para sempre e é um acontecimento central na narrativa.
Ainda assim, alguns dos envolvidos no filme disseram que não tinham idéia de que uma cena tão perturbadora seria incluída.
A história está sendo filmada em dari, uma das principais línguas do Afeganistão, e muitos papéis são interpretados por afegãos comuns, sem experiência prévia como atores.
Entre eles estão as crianças que interpretam os três papéis infantis principais. Elas foram selecionadas entre dois mil candidatos em escolas de Cabul.
A decisão corajosa da direção - o filme é dirigido por Marc Forster, que também dirigiu
A Última Ceia - teve como objetivo alcançar a maior autenticidade possível, mas criou obstáculos imprevistos.
'Não me disseram'O menino Ahmad Khan Mahmidzada, de 11 anos, interpreta o personagem Hassan. Ele pertence ao grupo étnico hazará, o mesmo do personagem fictício. Os hazará têm sido oprimidos e tiranizados ao longo da história afegã.
O pai de Ahmad, Ahmad Jaan, disse que só quando ele e o filho chegaram a Kashgar, no oeste da China - onde o filme está sendo filmado por razões de segurança - é que ficaram sabendo sobre a cena do estupro. Jaan disse que queria tirar seu filho da cena.
"Quando eu disse a eles que não deixaria Ahmad Khan fazer parte deste filme, eles disseram: 'Não vamos filmar aquela cena'" disse o pai.
Ahmad Khan é o ator perfeito para Hassan. Como o personagem, ele está sempre sorrindo. Mas, assim como o pai, está inquieto em relação ao filme que está estrelando.
"Eles não me contaram a história", disse Ahmad em inglês, lembrando do processo de seleção para o elenco.
Ele disse que participou da cena do estupro, embora sem tirar as calças - "porque não é certo", acrescentou com firmeza.
E como a cena foi filmada de forma não explícita, parece que o pai do menino sequer percebeu o que havia acontecido.
Em Los Angeles, Estados Unidos, a produtora dos filme, Rebecca Yeldham, defendeu a forma como a cena foi filmada.
"A cena foi feita de forma muito, muito discreta e não gratuita", disse. "Ela não inclui nudez. Foi mostrada de forma meio impressionista. Mas também é importante ser fiel à história. Para que fique claro que o ataque que aconteceu naquele beco contra aquela criança foi uma violência sexual."
Cenas pesadasQuanto à alegação de Ahmad Jaan, de que o diretor havia prometido não filmar aquela cena, a produtora foi categórica.
"Isto não é verdade", disse. "Ninguém deu essas garantias ao pai de Ahmad."
Ela disse que o elenco foi alertado de antemão de que haveria "cenas pesadas" no filme.
Ainda assim, vários integrantes do elenco se aliaram a Ahmad Jaan e estão dizendo que, apesar de a cena do estupro ter sido filmada, ela deve ser cortada.
Nabi Tanha, o ator que interpreta o pai de Hassan no filme - Ali - disse que está preocupado com a linguagem ruim usada contra os hazarás.
Ahmad Jaan disse que teme duas coisas: que o filme piore as relações entre os hazarás e o grupo étnico dominante patãs (ambos o menino estuprador e o personagem principal Amir são patãs); e que sua própria família fique em perigo quando o filme for lançado por causa do conceito afegão de desonra.
"Claro que estou preocupado", ele disse. "Meu próprio povo, minha própria tribo, vai se voltar contra mim por causa da história. Tenho medo de que cortem minha garganta, que me matem, que me torturem."
Seu filho teria dito que tem medo de que seus amigos o rejeitem pensando que ele realmente foi estuprado.
Musa Sultani, que chefia a Comissão Independente dos Direitos Humanos do Afeganistão, em Bamiyan, terra dos hazarás, disse acreditar que o filme possa reavivar velhas tensões étnicas.
"Esta cena, em um contexto afegão, pode ser interpretada como desonra para uma comunidade, para uma etnia", disse Sultani. "Em sociedades tribais, as pessoas não distingüem entre coisas reais ou fictícias."
Mas nem todos os afegãos envolvidos estão preocupados.
Mustafa Maroof, tradutor e agente na contratação dos atores, disse à BBC que como a cena foi filmada de forma indireta, provavelmente não haverá reação adversa.
A produtora Rebecca Yeldham está consciente dos problemas e diz que está em contato com grupos comunitários em Cabul.
Mas argumenta que os temores - que se espalharam em grupos de afegãos vivendo em exílio e usando sites de bate-papo na internet - estão baseados em uma crença errônea de que o filme seja explícito quando, na verdade, foi filmado de forma discreta e respeitando os sentimentos dos afegãos.
"Não acreditamos que as crianças estejam em risco".
Ainda assim, os produtores decidiram não lançar o filme no Afeganistão - embora cópias em DVD muito provavelmente vão acabar circulando pelo país.
Os produtores de
O Caçador de Pipas gostaram de ter usado afegãos comuns como atores.
Mas a filmagem levantou questões que eles não previam - a confusão entre fato e ficção em uma sociedade muito diferente da californiana, e os conceitos afegãos de honra e tribalismo.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070918_kiterunner_filme_mv.shtml