Eis aqui um belíssimo exemplo de como a competição -- elemento primordial do sistema capitalista -- pode ser encarada no Brasil.
Trata-se de um país onde a Justiça decide que cobrar preços menores do consumidor é crime. No centro da história está a Drogaria São Paulo, maior rede de farmácias do país, com faturamento anual de 1,1 bilhão de reais. Há três anos, a empresa começou a atuar em Fortaleza, no Ceará, e, para ganhar mercado, passou a adotar uma agressiva política de descontos em medicamentos. Bastou para que a concorrência corresse até a Justiça, alegando dumping. Até aí, aconteceu o esperado. O que surpreende é a seqüência de decisões que até hoje impedem a empresa de praticar preços mais baixos num mercado no qual, muitas vezes, remédio é artigo de luxo. O processo é kafkiano. É um desafio entender por que ele continua existindo. O Ministério Público, justamente quem acusou a empresa de concorrência desleal, se retirou do caso e agora afirma ser injusto punir a Drogaria São Paulo. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão regulador da concorrência no país, eximiu a empresa da acusação e recomendou que a Justiça a absolvesse. Ainda assim, pelo menos até o dia 17 de setembro, quando foi fechada esta edição, o processo corria no Judiciário e ninguém sabia dizer ao certo se a Drogaria São Paulo podia ou não vender mais barato em Fortaleza. "O caso é surrealista: queremos vender mais barato, mas não conseguimos", diz Marcus Paiva, superintendente da Drogaria São Paulo.
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Por unanimidade, em julho de 2006 os conselheiros do Cade julgaram que a Drogaria São Paulo não pratica preços predatórios no Ceará. "Esse tipo de prática só é bem-sucedida se a empresa predadora consegue levar à falência a maioria dos competidores e também consegue barrar a entrada de novos concorrentes na fase em que aumenta seus preços para, finalmente, conseguir lucros significativos", afirma Luiz Fernando Vasconcellos, relator do caso no Cade. "A acusada não tinha nenhuma das duas condições." Em primeiro lugar, sua participação de mercado, inferior a 1%, seria insuficiente para que as promoções provocassem mortandade de competidores. Além disso, a Drogaria São Paulo não conseguiria manter lucros altos por um longo período de tempo, pois não teria como impedir o surgimento de novas concorrentes na fase em que tivesse de aumentar os preços. Um caso semelhante envolveu a empresa aérea Gol em 2004. A companhia também foi denunciada ao Cade ao vender passagens por 50 reais, à época um preço inédito. O órgão julgou improcedente a reclamação e validou a promoção.
JA A DROGARIA SÃO PAULO, mesmo com o parecer do Cade, não se livrou das amarras da Justiça. Os absurdos do périplo começaram um mês depois da abertura da primeira loja na capital cearense. Sensibilizado pelo argumento do Sincofarma, o MP celebrou com o sindicato um acordo que fixou em 15% o desconto máximo que as farmácias podiam aplicar sobre os preços de medicamentos no Ceará. "O Ministério Público acabou legalizando um cartel", afirma Arthur Badin, procurador-geral do Cade. A Drogaria São Paulo não aceitou o acordo e continuou dando descontos acima de 30% nos remédios. Foi aí que o MP acionou a empresa na Justiça e a denunciou ao Cade por dumping. Quatro meses depois, o caso foi julgado em primeira instância, e a decisão foi contra a rede paulista. Um ano após o início do problema, uma reviravolta sinalizou que a situação seria resolvida. O promotor Ricardo Memória, o mesmo que estabelecera o teto de descontos e denunciara a empresa à Justiça e ao Cade, revogou o limite de descontos. "Eu me senti enganado", afirma Memória. "Descobri que as farmácias afiliadas ao próprio Sincofarma, incluindo as do presidente do sindicato e uma que funcionava dentro do prédio do Tribunal de Justiça, davam descontos acima dos reivindicados por eles mesmos." Em seguida, o MP também decidiu se retirar da ação, que só não foi extinta porque o Sinco farma, que também era autor do processo, continuou na briga. "A ação deveria ser extinta", afirma Memória. Contrariado, o sindicato das farmácias decidiu processar também o MP, por não aceitar a revogação do limite de descontos.
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O caso protagonizado pela Drogaria São Paulo é apenas um indicador de quanto o tema da concorrência ainda é ignorado no país. "Nossa história de competição é curta", afirma Pereira Neto, da FGV. "A economia brasileira permaneceu fechada ao comércio exterior até a década de 90, além de termos um histórico longo de controle de preços por parte do governo. O contraste com países como os Estados Unidos é abissal. Enquanto a lei de concorrência americana tem mais de um século, a legislação brasileira atual é de 1994. O órgão que regula a concorrência por lá é de 1903, enquanto o Cade, em sua versão atual, tem menos de 15 anos -- criado em 1962, só começou a ganhar força nos anos 90. Além disso, a lei americana sobre o tema é clara -- e a Justiça cumpre sua missão de fazer com que seja aplicada. Por aqui, por mais que as empresas se esforcem para agir dentro da legalidade, o misto de legislação confusa e lentidão dos órgãos judiciais torna o terreno pantanoso para todos. Quem sofre com isso, como se vê, é o consumidor.
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