Unifesp abre as portas ao Criacionismo, artigo de Daniel Sottomaior
Esse criacionismo se sustentava inicialmente apenas pela fé, mesmo porque praticamente não havia outras explicações disponíveis
Daniel Sottomaior é estudante de doutorado na USP (danielsp@usp.br). Artigo enviado pelo autor ao ‘JC e-mail’:
A revista Nature de 28 de abril estampou na capa a seguinte nota: “Esta revista contém material sobre evolução. A evolução por seleção natural é uma teoria, não um fato. Este material deve ser abordado com mente aberta, estudado cuidadosamente e considerado criticamente”.
O texto, que imita o adesivo colocado em livros-texto de ensino médio nos EUA, se refere ao editorial e à matéria que discutem o preocupante avanço do criacionismo no mundo acadêmico e o que se pode fazer para freá-lo.
Daí a manchete “O intelligent design está chegando ao seu campus?”. Ao menos para alguns docentes da Universidade Federal de SP, a resposta é um orgulhoso “sim”.
Segundo o site da Unifesp, no próximo dia 7 a instituição promoverá uma palestra sobre “criacionismo científico”, a convite do Depto. de patologia.
Para entender completamente o que esse evento significa e o que há de tão errado com ele, é preciso recuar um pouco no tempo.
Criacionismo é o nome que se dá às propostas que afirmam que a vida e/ou o universo são resultado de um fiat proveniente de pelo menos uma divindade.
A raiz do criacionismo cristão, o tipo predominante no ocidente, é a interpretação literal do gênese bíblico, incluindo Adão e Eva e a arca de Noé, tudo isso tendo acontecido há menos de dez mil anos, o que se descobre somando as idades das figuras envolvidas. Por isso, essa variante é conhecida como criacionismo de “Terra jovem” (CTJ).
Esse criacionismo se sustentava inicialmente apenas pela fé, mesmo porque praticamente não havia outras explicações disponíveis.
Mas depois de a biologia, a geologia e a cosmologia modernas desmentirem as idéias religiosas, os criacionistas sentiram necessidade de readquirir prestígio atacando a ciência com suas próprias armas: através de evidências que favorecessem o biblicismo – ou, na falta disso, qualquer coisa que servisse para enfraquecer o ponto de vista científico.
Alegações típicas do CTJ incluem a “ausência dos elos perdidos”, pegadas de homens e dinossauros “andando juntos”, uma “geologia do dilúvio”, a “altíssima improbabilidade” do surgimento da vida e a “violação da segunda lei da termodinâmica” pelo mecanismo evolutivo.
Esses “argumentos” têm enorme apelo em platéias com pouco conhecimento sobre ciência. Ou seja: quase todo mundo.
Como muitos criacionistas prontamente reconhecem, e consta por escrito em seus credos, o CTJ é uma busca por evidências, e somente as favoráveis, de algo que eles já dão como indiscutivelmente verdadeiro.
Essa motivação oposta ao espírito científico, somada à ampla e merecida rejeição que sofre entre os cientistas, impede a legitimação do CTJ na academia e assim atrapalha os planos de expansão do pensamento religioso, através do ensino fundamental e médio (efetivado por medidas legislativas, executivas ou judiciais) e da universidade.
Uma das alternativas ao CTJ é o criacionismo de “Terra velha” (CTV), que prefere interpretações alegóricas do Gênesis e aceita todas ou quase todas as evidências científicas atuais sobre nossas origens, reservando a intervenção divina a um ou dois pontos cruciais, como faz a atual doutrina católica.
Mas essa providência light não satisfaz muitos teólogos protestantes, com seu gosto por um deus atuante e sua rejeição à idéia de que seus textos sagrados são apenas metáforas. É aí que entra o intelligent design (ID), algo como projeto ou plano inteligente.
Ao menos como estratégia, o ID é sem dúvida muito inteligente. Ele não propõe nenhuma cronologia, o que evita que os CTV sintam-se embaraçados pela ignorância científica dos CTJ e permite a união de ambos os grupos sob uma bandeira comum.
Segundo a analogia de um dos mais importantes defensores do ID, publicada em artigo ao New York Times, o ID admite que mecanismos naturais como a seleção expliquem linhas gerais de fenômenos biológicos, assim como a deriva continental explica o surgimento das montanhas Rochosas.
No entanto, da mesma maneira que reconhecemos que os rostos de presidentes no monte Rushmore são produto de um projeto inteligente, e não de movimentos tectônicos, o ID afirma que existem marcas na natureza que permitem inferir a presença de um projeto inteligente.
Exemplos típicos seriam os flagelos de bactérias e processos biomoleculares como a coagulação do sangue, que simplesmente não poderiam ter se formado por processos naturais.
De maneira bastante deliberada, o ID omite qualquer menção à causa do design, desde que ele seja “inteligente”.
Com isso, tenta se desviar da acusação de motivação religiosa para conquistar um público mais amplo, mostrando que até os criacionistas evoluem. Bem, então qual é o problema? Por que ser contra a inocente palestra de um criacionista na Unifesp?
Para começar, o é ID somente uma roupagem pretensamente científica para o velho argumento do design, uma das “provas” da existência de uma divindade criadora.
Sua versão mais famosa é a de William Paley, apresentada na obra de 1802 que não por acaso se chama Teologia Natural. Paley afirma que qualquer relógio é imediatamente reconhecido como obra de um criador.
E “como relógios são resultado de um projeto inetligente, e coisas vivas são como relógios nos complicados mecanismos que têm uma finalidade (e.g., olhos que permitem visão), coisas vivas também são provavelmente o resultado de projeto inteligente”.
Além de merecer sérias objeções filosóficas, como todos os argumentos teleológicos, o argumento do design perdeu toda sua força quando Darwin propôs a teoria da evolução por seleção natural.
O design é um argumento por analogia, que é notoriamente pouco confiável e no máximo sugestivo. Não possui peso nenhum comparado com o maciço corpo de evidências disponíveis a respeito da evolução.
Visto de outra forma, o ID é uma sofisticada versão da falácia da ignorância, que se dá quando uma proposição é assumida como verdadeira quando não se provou que ela é falsa.
Como (ainda) não se pode apontar com precisão todo o caminho evolutivo de todas as estruturas biológicas, o ID conclui erroneamente que esse caminho não existe.
Talvez ainda mais grave é o fato de que o criacionismo não é, sob nenhuma medida, uma teoria científica. O criacionismo não é testável, não é parcimonioso nem possui poder explicativo algum.
De acordo com a National Academy of Sciences dos EUA, “suas alegações subordinam dados observados a afirmações baseadas em autoridade, revelação ou crença religiosa.
A documentação oferecida em apoio a essas alegações é tipicamente limitada a publicações especiais de seus defensores. Essas publicações não oferecem hipóteses sujeitas a mudança à luz de novos dados, novas interpretações ou demonstrações de erro.”
O criacionismo tem todos os sintomas típicos das disciplinas que tentam se passar por ciência.
Seus argumentos aparecem somente na mídia, em publicações independentes e palestras como a da Unifesp, mas não em revistas científicas; suas alegações são bombásticas, contrariam princípios muito bem estabelecidos e são amparadas por evidências muito escassas e questionáveis; seus defensores geralmente não têm formação em área relevante e alegam que a rejeição da comunidade científica se deve a teorias conspiratórias ou viés ideológico.
A idéia de que os cientistas conspiram contra o criacionismo por motivos pessoais é especialmente curiosa, já que muitos deles também possuem crenças religiosas.
Também é muito importante considerar que a luta dos criacionistas é por legitimação. Sua mera presença na universidade lhes empresta um mérito que eles não têm e compromete o prestígio da instituição. O currículo do palestrante também não ajuda em nada.
Ele é provavelmente o mais importante criacionista do país, mas não possui título ou trabalho publicado em área correlata, e vem fazendo exposições sobre intrigantes temas como o destino de toda a água do dilúvio e a logística da arca de Noé.
Essa posição não impede que as demais teses que defende estejam corretas, mas é bastante reveladora sobre os critérios de cientificidade e verossimilhança que ele utiliza.
O fato de ser um fundamentalista bíblico não constitui demérito científico nenhum, mas sua falha em conseguir distinguir a atividade científica da religiosa é inaceitável e deixa evidente um conflito de interesses que a Unifesp deveria considerar mas que os defensores do ID detestam discutir.
Isso não é censura nem obscurantismo, somente aplicação dos critérios mais básicos de avaliação de mérito. Não haveria problema algum se o criacionista fosse palestrar em uma igreja, mas o que ele faz em uma universidade séria?
Os criacionistas têm uma longa ficha corrida de citações de cientistas fora de contexto e distorção de argumentos científicos. Eles utilizam as controvérsias sobre diferentes modelos evolutivos para afirmar que “a evolução é uma teoria em crise”, e que cada vez mais pesquisadores a rejeitam.
Os criacionistas não querem ser reconhecidos como teólogos, mas como cientistas que têm uma alternativa em pé de igualdade com a evolução. É melhor parecer científico do que sagrado.
Ter proferido uma palestra em universidade de renome é um feito que certamente aparecerá em destaque no currículo do criacionista e lhe permitirá afirmar que sua atividade é científica e que existe de fato uma controvérsia sobre a validade da evolução natural.
Por isso, mesmo que não cause estrago científico nenhum, o fato de da palestra acontecer na Unifesp tem o importante efeito colateral de corroborar uma percepção profundamente equivocada da sociedade sobre a ciência.
É ingenuidade encarar o evento de maneira puramente científica e achar que sua falta de mérito encerra a questão quando as luzes se acenderem.
Assim que os criacionistas começarem a discursar no último reduto livre dessa pseudociência, as luzes não se acenderão mais. O ID é uma arma de propaganda e como tal deve ser encarada.
O simples fato de ele entrar em cena já é uma vitória que abre caminho para sua reafirmação. Quem não se importa com esse avanço também deve estar preparado para não reclamar quando o criacionismo se espalhar ainda mais no ensino e na imprensa.
O grande público e a mídia não estão interessados em teorias difíceis de entender, mas em controvérsias científicas, alegações bizarras e minorias corajosas que defendem a verdade simples, que qualquer um pode enxergar, contra um establishment que esconde sua ignorância através de palavras difíceis e teorias sem sentido.
Os professores que estarão presentes na platéia têm conhecimento para perceber imediatamente o problema com os argumentos dos criacionistas, mas a mídia e a audiência leiga, que têm acesso livre ao evento, escutarão argumentos que lhes parecem extremamente razoáveis.
Assim, a universidade terá falhado miseravelmente com o objetivo de levar a ciência à população. E mais: uma vitória do criacionismo aos olhos da sociedade faz péssima figura dos cientistas que insistiram por séculos em suas vãs teorias e desmerece completamente suas pesquisas e seus métodos.
O legislativo vai pensar duas vezes antes de despejar bilhões de dólares em doutores autocentrados que não conseguem reconhecer seus erros. Por que gastar tanto dinheiro com essa ciência arrogante se a verdade está plenamente acessível a indivíduos sem título nenhum?
Como bem aponta a Nature, mesmo que o movimento criacionista seja solenemente desprezado ou ridicularizado na universidade, ele não é inócuo.
Além de possuir ampla representação política, ele é bem organizado, bem financiado e está conquistando o ensino médio público, o que é muito mais do que se pode dizer da ciência em qualquer lugar do mundo.
O criacionismo já tem Universidades brasileiras plenamente comprometidas com sua causa e também uma agenda política clara de negação da ciência – com a qual a Unifesp está colaborando. Inadvertidamente, espera-se.
O museu de história natural do Smithsonian Institute deverá em breve exibir um filme criacionista em troca de uma doação de 16 mil dólares, um preço bem pequeno a se pagar pela integridade científica da instituição e de todos os seus pesquisadores.
Pode-se imaginar que a Unifesp vê uma troca dessas como moralmente repugnante e prefere ceder seu espaço graciosamente.
Diversas figuras importantes da ciência brasileira já se dispuseram a subscrever um documento de condenação da realização dessa palestra.
Entre eles, os profs. drs. Marília Smith (que atualmente dirige o depto. de morfologia e a disciplina de genética da Unifesp), Vicente Amato Neto, Mário Novello, Crodowaldo Pavan, Aziz Ab’saber, Oswaldo Frota-Pessoa, Renato Sabbatini, Renato Zamora Flores, Renan Moritz Almeida, Francisco Wechsler, Wayne Seale e Célio Levyman. Com este artigo, outros nomes virão.
A diretoria da Soc. Bras. de Genética também solidarizou-se imediatamente e emitiu um manifesto de repúdio ao criacionismo que se soma à declaração emitida ano passado pela SBPC. Esperamos que a Unifesp se sensibilize e pare de dizer amém.
Fonte:
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=28621