"O Globo" 14/10/07
Extinção interior
Marília Martins
A crise ambiental da Terra não se restringe à natureza. Também no universo microscópico, dentro do corpo humano, há espécies ameaçadas de extinção por uma dramática e acelerada transformação do meio ambiente, e entre elas estão microrganismos que podem ser essenciais à vida humana.
Quem faz o alerta é o pesquisador americano Martin Blaser, chefe do Departamento de Medicina da Universidade de Nova York (NYU, na sigla em inglês). Em suas pesquisas, ele revela um panorama impressionante da evolução das espécies no universo microscópico e do equilíbrio precário entre o organismo humano e os seres que nele vivem e que são essenciais à Humanidade.
— Se nós extinguíssemos todos os vírus e as bactérias hoje existentes, nós morreríamos também. A espécie humana desapareceria com eles — diz Blaser.
Defesas naturais estão em risco
O estudo de Blaser é muito maior do que um simples recenseamento dos micróbios que habitam o nosso organismo. A hipótese da equipe de pesquisadores do departamento de medicina da universidade é a de que as transformações do meio ambiente microscópico são tão poderosas que espécies inteiras de micróbios estão desaparecendo e, por incrível que pareça, essa não é uma boa notícia para os seres humanos.
Um exemplo é o da bactéria Helycobacter pylori , apontada como uma das causas de úlcera e de câncer de estômago, que se encontra atualmente em acelerado processo de extinção. Esta deveria ser uma ótima notícia para nós, seres humanos, que temos estômago.
Mas não é. Por que? — A presença dessa bactéria no organismo fez com que a espécie humana desenvolvesse uma série de antígenos que protegem as camadas interiores do estômago. Esses antígenos são transmitidos de uma geração para outra. Com o desaparecimento da bactéria, porém, estão sumindo também os antígenos.
O resultado é que o organismo humano, para defender o estômago, agora mais desprotegido e vulnerável a ataques, tende a antecipar o processo digestivo para o órgão anterior ao estômago, o esôfago.
Por isto, vemos hoje que, ao declínio dos casos de câncer de estômago, corresponde um aumento dos pacientes de doenças do esôfago, inclusive câncer.
Com um agravante: o câncer de estômago costuma aparecer em idade avançada, em pacientes acima dos 50 anos. Já as doenças graves de esôfago surgem em qualquer idade, até em crianças — frisa Blaser.
No fim das contas, a extinção de uma bactéria perigosa está levando a uma troca de doenças, que pode ser altamente desvantajosa para a espécie humana, na medida que ataca indivíduos mais jovens.
Outra importante mudança no espectro dos microrganismos que hoje são mais perigosos para a espécie humana está relacionada às doenças auto-imunes, cada vez mais comuns, como o diabetes.
São doenças em que a autodefesa do organismo falha e agentes externos se valem da fragilidade do sistema imunológico. Para os pesquisadores da equipe de Blaser, as doenças auto-imunes se tornaram mais comuns por causa da crescente higienização do espaço urbano e do uso indiscriminado de antibióticos, que eliminou boa parte dos agentes infecciosos que atacavam o homem.
— A ociosidade do sistema imunológico pode ter levado à sua maior fragilidade. O resultado deste processo, outra vez, não foi a redução do número de doenças e sim a mudança do espectro de males que assombram a espécie humana — comenta Guillermo Perez-Perez, um dos pesquisadores assistentes da equipe da NYU.
Além de fazer estudos sobre bactérias relacionadas ao processo digestivo como a Helycobacter pylori e a Campylobacter, relacionada com a gastroenterite, a equipe de Blaser se dedica aos microrganismos que atacam a pele.
Blaser fez um estudo famoso sobre o risco de contágio pelo Bacillus anthracis, agente da doença infecciosa, que começa na pele, conhecida pelo nome de antraz.
O bacilo foi enviado num envelope para o escritório de um político do Congresso americano, e Blaser foi mobilizado para fazer uma previsão dos riscos de contaminação.
O pesquisador chegou a uma fórmula matemática para determinar a velocidade do contágio e mostrou que até cinco mil pessoas poderiam contrair a doença a partir de um único envelope. Isto levou a polícia americana a estabelecer uma série de precauções no tratamento da correspondência do Congresso.
A equipe de Blaser, que tem o ambicioso projeto de mapear as bactérias que habitam o corpo humano, fez uma experiência recente para fazer um primeiro recenseamento de microrganismos encontrados na pele humana.
O resultado foi impressionante: em amostras coletadas numa porção do antebraço de seis indivíduos sadios foram achadas 182 espécies, pertencentes a 91 gêneros e cerca de 8% eram desconhecidas dos cientistas.
Alguns meses depois, foram coletadas novas amostras e novas espécies foram descobertas, que não tinham sido registradas anteriormente. Isto mostrou que na pele humana há bactérias residentes e outras que estão ali apenas de passagem.—
Estimamos que há no corpo humano algo entre 3 mil e 10 mil espécies de bactérias como residentes fixas. Em média, um bom zoológico tem entre cem e 200 espécies. Então nós já sabemos que, somente em nosso antebraço, temos a mesma quantidade de espécies bactérias que um bom zôo — diz Blaser.
O primeiro recenseamento limitou-se a indivíduos sadios, mas Blaser acredita que o número pode ser maior no caso de pessoas doentes: — Nossa hipótese é que vamos descobrir espécies diferentes na pele de pessoas com doenças como psoríase ou eczema.
Encontrar bactérias que sirvam de marcadores para determinadas doenças poderia levar à elaboração de métodos de diagnóstico e quem sabe até ao desenvolvimento de novas drogas — avalia o pesquisador.
Os microorganismos que vivem no ser humano
O corpo humano tem cerca de 100 trilhões de células. Porém, apenas 10% delas são realmente humanas.
As demais são criaturas unicelulares, como bactérias, vírus, fungos e outros microorgaismos.
Eles são imprescindíveis a nossa saúde. Ajudam a metabolizar vitaminas, por exemplos. Há bilhões de micróbios na pele, na boca, nos intestinos e em cada parte do corpo. A seguir, alguns dos mais relevantes.
PELE Há centenas de espécies. Muitas são benéficas. Mas algumas podem causar acne (Propionibacterium acne). A Staphylococcus epidermidis é uma das espécies mais comuns. A pele de uma pessoa pode abrigar cerca de um trilhão de bactérias.
INTESTINOS Centenas de espécies compõem a flora intestinal humana. Não podemos viver sem elas. Uma das espécies mais conhecidas é a Lactobacilus acidophilus.
Bacteroides estão entre as bactérias mais comuns. Eles metabolizam carboidratos para produzir vitaminas.
BOCA Há centenas de espécies. As mais comuns são estreptococos. Algumas podem causar cáries e placas. Espécies como a Streptococcus mutans têm gosto especial por açúcar e o usam para formar placas nos dentes.
ESTÔMAGO A bactéria Helycobacter pylori vive normalmente no estômago humano, mas pode causar úlcera e câncer em algumas pessoas.
Porém, seu desaparecimento não é necessariamente benéfico e pode levar ao surgimento de outras doenças.
VAGINA A flora vaginal, composta por bactérias, tem uma função protetora e ajuda a impedir a infecção por microorganismos nocivos
Antibióticos, vilões do microcosmos
Quais os vilões que ameaçam o equilíbrio das espécies do microuniverso? São vários, diz Blaser. Para o pesquisador, a vida moderna alterou radicalmente o equilíbrio do meio ambiente num nível microscópico.
As maiores alterações foram promovidas pela higienização do espaço urbano (que mudou o contato dos seres humanos com o ambiente em que vivem), pela industrialização dos alimentos (que transformou os hábitos alimentares), pelo sedentarismo (incentivado pelas formas atuais de organização do trabalho). Mas o principal vilão é o uso indiscriminado de antibióticos, que devastou o equilíbrio das espécies no microuniverso.
Segundo Blaser, o exagero no consumo de antibióticos está alterando o espectro de doenças do homem. Um exemplo seria o aumento dos casos de obesidade e de doenças a ela relacionadas.
Blaser diz que há muito se sabe que altas doses de antibióticos favorecem a obesidade. Ele lembra que os fazendeiros americanos são criticados por darem quantidades excessivas de antibióticos para seus animais de criação e fazem isto porque descobriram que antibióticos em excesso aceleram a engorda.
— Hoje, tomamos antibióticos para tudo.
Com isto, exterminamos espécies de bactérias que viviam no organismo humano e alteramos radicalmente o meio ambiente a nível molecular. O resultado é que nos tornamos mais vulneráveis, menos aptos a nos defender de invasores.
O consumo exagerado de antibióticos está diretamente relacionado ao aumento dos casos de asma e da obesidade, por exemplo. Além disto, esse exagero está levando ao aumento da obesidade entre crianças e adolescentes. Estamos fazendo com nossos filhos exatamente o mesmo que os fazendeiros fazem com os seus animais — diz Blaser.
O médico americano dá um conselho básico: só tomar antibióticos em último caso.
Ele também recomenda fortemente a amamentação dos bebês pelas mães, para que elas transmitam a seus filhos os antígenos que possuem e que pertencem a uma tradição familiar genética. Blaser também desaconselha a obsessão com a higiene.
— Higiene é necessária para evitar doenças. Mas a obsessão com a limpeza, desinfetando demais o corpo ou o ambiente doméstico, pode ser prejudicial porque fragiliza o sistema imunológico.
As crianças devem ter vida ao ar livre, a fim de tornar mais ágil o seu sistema de defesa do organismo. A superproteção pode ser altamente danosa à saúde e ao equilíbrio ecológico interno do organismo — acrescenta o pesquisador assistente Guillermo Perez-Perez.
Blaser acredita que, num futuro não muito distante, o médico terá no seu consultório alguns medicamentos que serão nada mais do que bactérias e outros micróbios concentrados em pequenos frascos, que deverão ser consumidos pelo paciente a fim de promover o equilíbrio do meio ambiente orgânico num nível microscópico.
Segundo ele, a medicina do futuro fará um exame para determinar quais os microrganismos presentes no corpo de um paciente e quais aqueles que são essenciais à manutenção de seu equilíbrio ecológico interno.
Para Blaser, afinal, ecologia não é sinônimo apenas de defesa do meio ambiente, mas sobretudo de luta pelo direito a uma vida mais saudável, o que quer dizer um corpo internamente equilibrado.