O Globo" 22/10/07
25 de Outubro
Paulo Guedes
Os arquivos da revolução de outubro e do Partido Comunista em Moscou foram abertos aos pesquisadores externos no final dos anos 80.
Orlando Figes, historiador de Cambridge, foi um dos primeiros a vasculhar o material. Sua monumental narrativa, “A tragédia de um povo: A revolução russa 1891-1924” (1996), traz uma descrição com surpreendentes detalhes do episódio da tomada do Palácio de Inverno durante a revolução socialista de 1917.
“Poucos eventos históricos foram tão profundamente distorcidos por mitos quanto os registrados em 25 de outubro de 1917. A imagem popular da insurreição bolchevique como uma luta encarniçada travada por dezenas de milhares e resultando numa profusão de heróis tombados é muito mais conseqüência de ‘Outubro’ — o filme de Eisenstein, brilhante, mas bastante ficcional, produzido para comemorar o décimo aniversário do levante — do que uma passagem real. [/i][/u]
A Grande Revolução Socialista de Outubro, rótulo pomposo criado pela mitologia soviética, não passou de um acontecimento em pequena escala, nada mais que um golpe militar, despercebido pela maior parte dos habitantes de Petrogrado.
Teatros, restaurantes e bondes funcionaram normalmente enquanto os bolcheviques tomavam o poder.” “Antes mesmo do início do assalto, na lendária conquista do Palácio de Inverno, a maioria das forças encarregadas da defesa já voltara para casa, faminta e abatida, pois o estoque de alimentos não daria para o jantar de todos os soldados.
Ao longo de toda a ocorrência, o único perigo concreto à residência imperial foi uma vidraça estilhaçada no terceiro andar.” “As poucas fotografias dos dias de outubro disponíveis mostram também quão diminuta era a força insurgente atravessando áreas semidesertas.
Não há imagens associadas a revoluções populares: massas nas ruas, barricadas e trocas de tiros.” “E como agiu a massa durante o levante? Ao assumir o controle do Palácio de Inverno, os bolcheviques descobriram sua colossal adega de vinho. Dezenas de milhares de garrafas antiqüíssimas então sumiram.
Proletários e soldados vermelhos serviram-se de Chateau D’Yquem 1847, a última safra a merecer o endosso do czar, desprezando as garrafas de vodca, que eram então distribuídas à multidão que ficara do lado de fora do palácio.
Tontas de álcool, as massas dedicaram-se à pilhagem e à destruição do Palácio de Inverno.” “Em vão, os bolcheviques tentaram conter a anarquia interditando o suprimento de bebidas e nomeando um comissário encarregado da segurança do Palácio de Inverno.
O nomeado prosseguia se embebedando durante o expediente. Colocaram então guardas na porta da adega, mas estes decidiram promover a venda dos cobiçados produtos, bombeando o líquido até a rua.
Ávidos, os compradores não tinham paciência para encher vasilhas e bebiam diretamente da mangueira.” “Centenas de bêbados acabaram atrás das grades. As detenções encerraram-se quando não havia mais espaço físico para abrigar tantos infratores. A balbúrdia prosseguiu por semanas, até que no fim do ano o álcool acabou e a capital acordou com a maior ressaca da História.”
"O Globo" 29/10/07
25 de outubro - parte 2
Paulo Guedes
"A Rússia da década de 20 permanecia um país em guerra consigo mesmo. A revolução fracassou em eliminar as iniqüidades que a haviam provocado. Ninguém sabe quantos morreram. Qualquer contagem aponta números catastróficos. Considerando somente as baixas da guerra civil, do terror, da fome e das enfermidades, chega-se a algo em torno de dez milhões de vítimas, sem contar os cerca de dois milhões que emigraram. Morrer na Rússia era fácil. Merecer um funeral digno, prerrogativa para poucos. Os serviços fúnebres haviam sido nacionalizados. Para enterrar um ente querido, era necessário enfrentar uma longa lista de exigências burocráticas. Havia também falta de madeira para fazer os caixões.
Cadáveres eram velados em ataúdes alugados, nos quais lia-se a inscrição ‘Favor devolver’, devidamente esvaziados na hora de baixar o corpo à terra.”
O historiador Orlando Figes, de Cambridge, foi um dos primeiros a vasculhar os arquivos da Revolução Russa de 1917, quando estes foram abertos aos pesquisadores no fim dos anos 80. Sua monumental narrativa, “A tragédia de um povo: A revolução russa 1891-1924” (1996), dá uma detalhada descrição do episódio da Grande Fome de 1921-1922.
“O maior de todos os males da época, responsável pelo extermínio de cinco milhões de vidas, foi a Grande Fome de 1921-1922. A fome transformou as pessoas em canibais. Esse foi um fenômeno muito mais comum do que os historiadores admitem. Na Bachkiria e nas estepes em torno de Pugachev e Bzuluk, onde a falta de alimentos era aguda, verificaram-se milhares de casos.” “Um homem condenado após ter devorado várias crianças confessou:
‘Em nossa aldeia, todos comem carne humana, apenas não revelam. Há inúmeras tavernas na vila, e todas servem pratos à base de crianças’. Na cidade de Pugachev, não era recomendável que crianças pequenas andassem pela rua à noite, pois havia bandos de canibais e negociantes que as matavam, para consumo próprio ou para vender a carne num comércio abjeto.” [/u]
Esses testemunhos são possivelmente a base factual histórica responsável pelo folclore segundo o qual os comunistas comiam criancinhas. Mas, prossegue Figes, “caçar e matar pessoas para comer era praxe”.
As mães, desesperadas em dar de comer aos filhos, cortavam pernas e braços dos cadáveres. Roubar cadáveres de cemitérios tornou-se tão comum que, em muitas regiões, guardas armados vigiavam os portões.” “As pessoas se alimentavam dos próprios parentes. Na aldeia de Ivanovka, próxima a Pugachev, uma mulher foi flagrada devorando a carne do marido. A refeição estava sendo dividida com o filho do casal. Quando as autoridades policiais tentaram jogar fora o que ainda havia no prato, ela gritou: ‘Não, ele é nosso sangue, e ninguém tem o direito de levá-lo de nós. Precisamos dele para nos alimentar’.”
Os economistas de boa estirpe sabem que é apavorante a desorganização de um sistema produtivo, uma engrenagem descentralizada responsável pela alimentação de milhões de pessoas.