O texto é de 1990, mas segue bem atual...
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A INDÚSTRIA TEXTILpor Janer Cristaldo
Curitiba - E já vou avisando ao revisor que é textil mesmo, assim sem acento, para não confundir com a dos têxteis, atividade esta honesta e produtiva. Se a indústria têxtil está vinculada ao campo, a textil melhor floresce no campus. Enquanto a primeira vai depender de condições climáticas e flutuações do mercado, a segunda constitui lucro certo a seus cultores, independentemente de humores atmosféricos ou financeiros. O que talvez explique a crescente migração de homens do campo para o campus. Se no campo a vida é dura e carente de atrativos (exceto talvez para poetas românticos), no campus tudo são flores e facilidades.
"A crise universitária não é um fenômeno urbano" - escreve Vargas Llosa - "nem latino-americano, mas que também provocou rupturas em sociedades de alta cultura, com sua tradição universitária de muitos séculos. França, Itália, Espanha, Alemanha e outros países europeus conheceram ou conhecem, como o Peru, a Colômbia, o México, a Venezuela, uma profunda crise em seu sistema universitário, e há vários anos dão murros de cego em busca de uma solução que não parece fácil nem imediata".
Ao falar de universidade, Llosa fala da universidade pública, diga-se de passagem. E cita um discurso de Manuel Vicente Villarán, que acusava a universidade de produzir inúteis, pensadores literários e juristas, em vez de agricultores, colonos, empresários, engenheiros, capazes de produzir riquezas e modernizar o país. Este discurso, é bom lembrar, foi pronunciado em 1900, quando o Brasil era dominado pela frágil literatura de um mulatinho europeisado e europeisante, e sequer sonhava com universidade. Trocando em miúdos: brasileiros, estamos começando a intuir, neste final de século, problemas que nuestros vecinos tentavam equacionar em meio aos estertores do século passado.
Ao abordar o movimento da reforma universitária, iniciado nos anos 20, em Cordoba, Argentina, o escritor peruano constata uma vontade de que a universidade produzisse, não capitalistas industriosos, e sim revolucionários:
"É preciso ler as páginas que José Carlos Mariátegui lhes dedica em Siete Ensayos, para se ver até que ponto a reforma concebia a universidade como uma instituição cuja meta é formar ativistas e militantes, converter-se numa máquina de demolição da sociedade burguesa. Ele vê com simpatia o movimento da reforma porque a ele parece um aspecto - no campo burguês e juvenil - da luta pela destruição da sociedade capitalista e sua substituição pela socialista. A reforma deixou flutuando no ar da América a idéia de que a universidade (e a cultura) não devia subordinar a política a seus fins e trabalhos, mas sim subordinar estes à ação e ideais políticos".
Enquanto a revolução não ocorre, o socialismo se refugia nas universidades, cuja finalidade, é bom lembrar, jamais foi subsidiar utopias desvairadas. Se nosso século provou à bastança que não é fácil impor uma disciplina marxista às leis da gravidade ou da genética, o mesmo não ocorreu no campo das ciências humanas, onde tanto faz que dois mais dois sejam quatro, cinco ou dez. Emerge então, no Ocidente, o fundamento de uma indústria das mais prósperas. Investimento? Palavras. Dividendos? Bons salários, turismos e mordomias.
Tudo isto, é claro, sob a égide de uma palavrinha mágica; pesquisa científica. Os cursos da área humanística, na universidade brasileira, são, de um modo geral, grotescas cartilhas marxistas. Enquanto os países do Leste europeu estão eliminando o marxismo de seus currículos, nós, botocudos, continuamos a insistir em doutrinas obsoletas. Na Alemanha Oriental, constatei o desespero de 25 mil professores de marxismo desempregados. Ao comentar o fato com um amigo universitário, este pediu-me que não falasse do assunto. "Se a universidade brasileira sabe, contrata todos". Discreto que sou, nem piei.
Cá entre nós, o diagnóstico mais arrasador da universidade pública brasileira foi feita por Edmundo Campos, sociólogo mineiro, em A Sinecura Acadêmica, um corajoso ensaio ante o qual os PhDeuses torcem o beicinho e se mantêm silentes. Para o autor, a universidade não está dando o retorno pelo que a sociedade paga, em impostos e taxas, pela sua manutenção. "Ninguém mais se importa com uma greve universitária que dura cinco meses. A universidade não faz nenhuma falta, tornou-se absolutamente irrelevante. Existem, é óbvio, ilhas de competência espalhadas pelo país, com bons cursos e programas, professores bem preparados e responsáveis, mas essas são exceções à regra, que são as universidades dominadas pelo baixo clero".
Por baixo clero não deve o leitor desavisado entender cardeais que louvam ditaduras no Caribe nem freis que pregam o totalitarismo. Na acepção do professor Campos, baixo clero é "esse enorme contingente de professores mal qualificados e com titulação mínima, aos quais foi entregue o grosso das funções universitárias. Hoje, é o baixo clero que está nas salas de aula, quando não está fazendo greve ou promovendo assembléias gerais. O baixo clero costuma ser agressivo e raivoso, porque odeia o debate e as idéias de uma forma geral".
Dinheiro público versado generosamente, baixo clero mais utopismos desvairados, eis o caldo fértil para a instalação da próspera indústria de textos. Se causa indignação no país todo o número de professores que fazem turismo com o pretexto de defender teses, não menos escandalosa é a situação - falo da área humanística - da maioria dos que voltaram com tese defendida. Cá e lá pode-se catar algum ensaio interessante, é verdade. Mas, de um modo geral, os programas de doutoramento constituem verdadeiros crimes ecológicos, nos quais milhares de árvores inocentes são sacrificadas para fornecer o papel a masturbações teóricas, geralmente importadas da Europa. Aqui-del-rei, secretário Lutzenberger!*
Durante várias décadas, os acadêmicos brasileiros fundamentaram suas reflexões no pensamento marxista, conforme as vulgatas de evangelistas menores como Lukács, Gramsci, Goldman, Althusser, Poulantzas et caterva. Tais teóricos conferiam ao pesquisador o selo sagrado de garantia, o rigor científico. Perguntinha para este final de século, quando o pensamento marxista desmorona desde dentro, exatamente por revelar-se como crença e não como ciência: que destino dar a essas toneladas de reflexões anódinas, fundamentadas em dogmas fajutos? Para o que o leitor está pensando não serve, o papel é muito grosso. Mas acho que a Holanda, por exemplo, poderia ter algum interesse no assunto, já que sempre faltou terra aos Países Baixos para fazer diques.
Mas nem só os professores-turistas são beneficiados pela indústria textil. Graças a ela, autores que há muito deviam estar mortos e enterrados continuam a transitar como se vivos fossem nos corredores universitários. Não fossem as exigências curriculares dos cursos de Letras, quem leria hoje, por exemplo, uma obra chocha e pedante como Macunaíma? Qual editor, em pleno juízo e com capital de seu próprio bolso, ousaria reeditar um chato como Oswald de Andrade? Qual leitor, em sã consciência, compraria os peixes podres dos irmãos Campos? Indo um pouco mais longe: que tem a dizer Machado de Assis a um jovem de nossos dias? Por que impor Machado a alunos que jamais folhearam um Nietzsche ou Dostoievski, estes eternamente jovens e subversivos? Através da indústria textil, a máfia universitária consegue vender cadáveres literários, ao mesmo tempo que afasta do mundo das letras gerações inteiras de leitores potenciais.
Causou celeuma em São Paulo, a hipótese de retirar o nome de Drummond de Andrade da lista de autores exigidos no vestibular. Pois acho que deveria ser retirado mesmo, para vermos se morreu ou não morreu. Poeta é aquele que vai em socorro das angústias de seus contemporâneos e pósteros, e não o que sobrevive graças à benção da máfia. Quando descobri Pessoa ou Cervantes, fui ao encontro deles por prazer e necessidade espiritual, não por imposições acadêmicas. O mesmo ocorreu com Nietzsche, Dostoievski, Herman Hesse, Hernández, Sábato, Donoso, Cela. Curiosamente, jamais vi estes nomes nos currículos universitários. O baixo clero, além de odiar o debate, detesta o gênio.
Fala-se, nestes dias, em cortar as enxúndias da universidade pública. Os reitores, reféns dos funcionários que os elegeram, negam-se a qualquer corte de pessoal. O professor universitário, com a garantia da estabilidade, sente-se acima do bem e do mal. O que deveria ser universidade virou repartição pública, com todas as impunidades daí decorrentes.
E a indústria textil vai muito bem, obrigado.
(Porto Alegre, RS, 19.08.90)
http://cristaldo.blogspot.com/2007_11_01_archive.html#2118779047239378473