Juiz impede menina de viajar à Gâmbia para ser mutiladaTerça, 4 de dezembro de 2007, 10h24 Atualizada às 10h41
Enrique Figueiredo
Esta parece ser uma história de ignorância e não de maldade. Basta uma observação passageira para perceber que S. W., 43 anos, e sua mulher A. D., 35 anos, adoram as quatro filhas. Por isso parece difícil compreender que, há alguns dias atrás, eles estivessem dispostos a levar a mais velha à terra de seus avós para que seu clitóris fosse amputado. Um tribunal de Arenys de Mar, na Espanha, foi informado dos preparativos de viagem à Gâmbia e decidiu impedir que ela fosse realizada confiscando o passaporte da menina.
Depois da ação judicial, S. W. declarou ter compreendido a questão: "Agora sabemos que essa tradição é ilegal", garante. O casal tem filhas de 14, 13, 9 e 8 anos. Todas elas nasceram na Espanha e não conhecem a terra de seus ancestrais.
O casal chegou à Catalunha 16 anos atrás e desde 1998 dirige uma pequena loja em Pineda de Mar. "Eu ganho a vida com a loja, e os negócios não vão mal", diz S. W., que conseguiu economizar o bastante para pagar as passagens da mulher e da filha mais velha para a Gâmbia. Elas deveriam ter viajado na semana passada, mas o passaporte da mãe, que serviria como documento de viagem também para a menina, foi retido pelo juiz antes que partissem. "Devolvi as passagens", o pai garante. Uma dupla de policiais foi à casa da família e exigiu que o documento lhes fosse entregue, por ordem do juiz.
O perigo foi indicado ao juiz pelos serviços sociais da prefeitura de Pineda de Mar. Fontes municipais avisaram a polícia das intenções dos pais da menina. O casal não ocultou o motivo da viagem, e estavam felizes porque os avós paternos da menina - que têm idade avançada - enfim poderiam conhecer uma das netas. Eles planejavam uma viagem feliz.
Uma patrulha policial foi à residência do casal para explicar que executar a mutilação do clitóris era tanto ilegal quanto perigoso, porque esse tipo de prática muitas vezes acarreta graves infecções, na África.
Em um primeiro momento, o casal não pareceu muito atento aos conselhos que lhes estavam sendo dados, e por isso a polícia encaminhou o assunto à Justiça. Todas as meninas da cidade de que eles provêm, em Gâmbia, passaram por essa mutilação no passado, confirma A. D., a mãe das garotas. Vestindo um traje típico africano em tons de azul brilhantes, ela confessa ter sido uma delas. "Todas as amigas de minha idade, como eu, passaram por isso". Percebe-se que se sente incomodada ao responder. No começo, hesita muito. Para as mulheres africanas, a prática é algo de muito íntimo, sobre o que não se deve falar.
A Justiça de Arenys de Mar interferiu e convocou o casal a depor, depois de receber o relatório policial. O depoimento não foi muito bem. O juiz informa em seu relatório que havia risco iminente de mutilação, e que o casal se mostrou pouco convincente, quando questionado a respeito. "A ambigüidade dos progenitores", afirma a ordem de confisco do passaporte, convenceu o juiz de que era melhor evitar a viagem porque a mutilação do clitóris "não pode ser admitida sob nosso direito penal".
Fontes familiarizadas com o caso asseguram que o pai ficou muito contrariado com a situação. Ainda assim, decidiu averiguar a situação por sua conta, e o líder religioso muçulmano local o informou de que o Corão não recomenda a prática. O pai também falou com pessoas de seu país, que o informaram de que também lá a Justiça tenta reprimir a prática.
"Quase não sei escrever. Não sabia de nada. Agora, porém, sabemos que é errado e não submeteremos nenhuma de nossas filhas a isso", explica S. W., que espera que o juiz em breve suspenda as restrições de viagem impostas a família. "Gostaria que meus pais, já bem velhos, conhecessem as netas. Eles não podem vir; nós é que precisamos visitá-los", explica.
Tradução: Paulo Eduardo Migliacci ME
La Vanguardia
Fonte:
Terra