O menino Carlo Broschi, então com sete anos, tomou uma poção tranqüilizante a base de ópio e mergulhou em uma banheira cheia de água quente. Ricardo, seu irmão mais velho, pressionou-lhe as veias jugulares provocando uma privação momentânea dos sentidos e dos movimentos. Nesse meio tempo, Caterina Broschi, com o auxílio de uma faca começou a castrar o filho. Ao terminar a cirurgia improvisada, o mundo artístico estava recebendo aquele que iria ser o mais famoso castrato de toda a história da música.
Esse tipo de mutilação para fins líricos teve início na Espanha. Os responsáveis pela música coral ficaram impressionados com as vozes admiráveis dos eunucos de origem árabe. Com o passar dos tempos eles passaram a ocupar lugar de destaque nos corais que acompanhavam a liturgia da igreja católica. O Papa Sixtus V (1545-1590) escreveu uma Bula Papal para o Núncio apostólico da Espanha, liberando o uso de meninos castrados nos corais das igrejas da Península Ibérica. Os mais destacados castrati espanhóis foram Francesco Soto e Giacomo Spagnoleto.
A partir do século XVII a castração de meninos que seriam treinados para a carreira do bel canto tornou-se rotina nos Estados Papais e no Reino de Nápoles. Em 1591, o coro da Capela Sistina já contava com castrati afamados, como Pietro Paolo Fogliato e Girolamo Rosini de Perugia.
O primeiro livro dedicado a registrar as técnicas de castração em humanos foi escrito no século XVI por Charles d’Ancillon, um advogado francês. Na prática médica a castração era indicada em casos de hidrocele, hérnia e gota. Quando a família não tinha recursos para contar com a assistência de um médico, cabia à mãe a condução da operação.
Segundo os rígidos preceitos deixados por São Paulo, as mulheres estavam proibidas de cantar nas igrejas. Elas eram substituídas pela voz luminosa e etérea dos meninos cantores. Para que esse dom não fosse interrompido pela puberdade, recorria-se ao processo de castração.Os jovens castrados, ao atingir a maioridade, apresentavam uma massa corporal obesa. Devido ao crescimento dos pulmões e o aumento da caixa torácica, a voz alta de uma criança dentro de um corpo adulto podia ser treinada para alcançar níveis de performances extraordinários como se fossem sopranos ou contraltos. Na época, se comentava que a intensidade e a altura do canto de um castrato eram cintilantes e alcançavam uma intensidade e volume capaz de sacudir as paredes dos teatros europeus.
A partir do século XVII a política da igreja passou a ser ambígua. Por um lado ela passou a condenar a prática da castração, punindo os responsáveis com a morte ou a excomunhão. Mas o Vaticano sempre estava pronto a aceitar em seus grupos corais, meninos cantores que haviam perdido os testículos devido ao coice de um cavalo ou pelas mordidas de um porco selvagem. Sob esse manto de hipocrisia os castrati eram recebidos nas igrejas com todas as honras que lhe eram devidas.
Carlo Maria Michelangelo Nicola Broschi nasceu em Nápoles, no dia 25 de janeiro de 1705 e tornou-se o castrato mais famoso da Europa. Junto com outros destacados colegas, como Felice Salimbeni, Giuseppe Appiani e Gaetano Majorano, era dono dos palcos dos teatros de ópera e emocionou o público emitindo sons jamais ouvidos. Durante três séculos os castrati foram adulados pela sociedade européia, recebiam um régio patrocínio da realeza e viviam como os pop stars dos dias de hoje.
Carlo Broschi adotou o nome artístico de Farinelli em homenagem à família Farina, que custeou seus estudos com o professor Niccoló Porpora no Conservatório de Santo Onofrio.
Farinelli também era conhecido como Il Ragazzo. Sem vacilar ele podia emitir de sete a oito notas jamais emitidas por outros cantores e podia manter qualquer uma delas por um minuto. Com quinze anos ele fez sua primeira aparição pública interpretando Angelina e Medoro, opera composta por Niccoló Porpora, com libreto de Metastasio. Aos dezenove anos, Farinelli já era um fenômeno, tendo se apresentado nas cortes de Nápoles, Roma, Bolonha e Viena.
Farinelli viajou para uma temporada em Londres aonde interpretaria as principais obras de Haendel, na época o mais afamado compositor europeu. As apresentações do castrato causaram furor entre as platéias, mas sua permanência foi abreviada por um conflito entre Haendel e Porpora. Este abrira uma casa de opera chamada Teatro dos Nobres, único local aonde Farinelli podia se apresentar. Haendel impunha a presença do cantor no Covent Garden, aonde era diretor musical.
Como o impasse não foi resolvido, Carlo Broschi deixou a Inglaterra e a convite do rei Filipe V foi se estabelecer na corte espanhola. O monarca sofria de uma depressão profunda, denominada à época de melancolia negra. A voz de Farinelli hipnotizou e acalmou o rei reavivando seu espírito, o que lhe permitiu a retomada de suas tarefas diárias. Durante dez anos, durante todas às noites, Farinelli executava quatro árias para o rei, sendo que duas nunca saíram do repertório: Pallido e Sole e Per questo dolce amplesso.
Após a morte de Felipe V, Farinelli permaneceu por mais 15 anos na Espanha, servindo a Ferdinando VI. Nesse período ele recebeu o ambicionado título de "Cavaleiro da Ordem de Calatrava", tornando-se um príncipe. Com a ascensão ao trono de Carlos III, Farinelli decidiu retornar para a Itália. Ele viveu o resto de sua vida em um suntuoso palácio na cidade de Bolonha, aonde era visitado por personalidades como Mozart, Gluck, o Imperador Joseph II e Giacomo Casanova. O cantor faleceu no dia 15 de julho de 1782.
A castração para fins artísticos foi expressamente proibida pelo estado italiano em 1870. Alessandro Moreschi (1858-1922), foi o último castrato da história da musica. Ele entrou para o coral da Capela Sistina em 1883 e lá permaneceu até 1913. Moreschi não pode ser comparado a um Farinelli ou a um Senesino, mas o disco que perpetuou sua voz até os dias de hoje, é o único registro histórico do desempenho vocal de um castrato.
Obras recomendadas:
Farinelli Il Castrato – filme produzido pela Sony Picture Classics (1994), dirigido por Gerard Corbiau, com Stefano Dionisi, Enrico Lo Verso e Elsa Zylberstein. Um simulacro do que deveria ser a voz de Farinelli foi montado através da mixagem eletrônica de duas trilhas gravadas separadamente pelo contra tenor Derek Ragin e a soprano Ewa Godlewska. Esta película recebeu o Prêmio César de 1995, equivalente francês do Oscar americano.
The Last Castrato – disco interpretado por Alessandro Moreschi, com músicas de Mozart, Tosti, Rossini, Bach, Palestrina e a Ave Maria composta pelo Papa Leão XIII. As gravações foram feitas em estúdio em 1902 e 1904. Gravadora Pearl – OPAL (9823).