AS PORTAS DA TOLERÂNCIA ABREM-SE PARA OS GAYS MUÇULMANOS12/12/2007 – 11h25
Foto: Mercedes Sayagues/PlusNews
Suhail Abu al-Sameed parecia calmo, mas interiormente ele tremia. Na sua frente estavam sentados vários ulama, eruditos islâmicos que vinham do Afeganistão ate o Iêmen. No dia anterior, vários deles tinham denunciado a homossexualidade como sendo anti-islâmica. “Como muçulmano e gay, eu sinto-me inseguro, rejeitado e desrespeitado neste lugar”, disse ele. “Se eu devesse tornar-me soropositivo, a primeira coisa que eu perderia seria a minha comunidade muçulmana. Eu não poderia pedir-lhes apoio”.
A tensão na sala era palpável. Abu al-Sameed continuou: “Eu gostaria que vocês não se referissem aos gays com os termos (árabes) shaz e luti – perversos e estupradores – porque nos não o somos”. Dois homens em keffiyeh faziam sinais para que ele se calasse, mas o facilitador acenou para que continuasse. Impressionado, o público escutava enquanto Abu al-Sameed, jordaniano que vive no Canadá, fazia o impensável: revelar-se como gay durante a Conferência Islâmica Internacional sobre o HIV/Aids, organizada em Joanesburgo na semana passada pelo Islamic Relief Worldwide (Auxílio Islâmico Mundial, IRW em inglês).
Inovadora, esta conferência reuniu ulama, acadêmicos, médicos, trabalhadores humanitários e ativistas soropositivos muçulmanos de 51 países para uma reflexão sobre a resposta islâmica ao HIV e à Aids. Um dos temas principais foi a prevenção do HIV nos grupos vulneráveis e marginalizados - trabalhadores do sexo, crianças de rua, usuários de drogas injetáveis e homens que fazem sexo com outros homens.
Jaffer Inamdar, soropositivo, fundador e diretor de programas da Fundação para Vidas Positivas em Gôa, na Índia, disse ao PlusNews que nesta região turística, “durante a alta estação, de Setembro a Abril, acontece muito sexo, drogas e atividades homossexuais. Uma linguagem dura e condenadora os faz (os gays) fugir, esconder-se e continuar a propagar o HIV”.
Pena de morteA homossexualidade é um crime e é proibida nos países muçulmanos. Invocando a Sharia, seis países oficialmente islâmicos (o Irã, a Mauritânia, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes e o Iêmen, assim como 12 estados da Nigéria) aplicam a pena de morte para casos de sexo consensual entre pessoas do mesmo sexo, segundo a Amnesty International. Outros países o punem com multas, prisão ou fustigação, além da estigmatização social e da condenação da cultura ocidental como responsável por trazer para estes países o modo de vida homossexual. Não é para menos que Abu al-Sameed tinha medo: “Eu vi o olhar deles, sua linguagem corporal, e lembrei-me que poderia ocasionar uma reação violenta”.
Ele não tinha nada a temer: “Depois, mulheres usando véus, homens barbudos, os tipos mais religiosos, vieram desculpar-se por terem talvez dito alguma coisa que tivesse me ofendido, que tivesse feito sentir-me rejeitado ou em perigo”. Cada gesto amigável demonstrava integração. “Isto somos nós. Nossa cultura é íntima, calorosa, baseada nos relacionamentos. Quando revelei-me à minha família, eles não me rejeitaram”, disse Abu al-Sameed, aliviado, ao PlusNews.
ReaçãoNa manhã seguinte, os ulama tinham uma surpresa. O porta-voz da conferência e diretor de políticas da IRW, Willem van Eekelen, leu sua declaração coletiva. Ela dizia que embora o Islã não aceite a homossexualidade, os líderes islâmicos tentariam ajudar a criar um ambiente onde os gays possam procurar os trabalhadores sociais e obter ajuda contra à Aid sem sentirem-se ameaçados.
“Foi a primeira vez que durante um fórum religioso de alto nível falou-se sobre os homossexuais, reconhecendo-os e aceitando-os”, disse Abu al-Sameed. “Isto vai abrir um espaço para o diálogo com a comunidade gay muçulmana e ajudar outros muçulmanos homossexuais a “saírem do armário” em um ambiente seguro”.
“É bem a primeira vez”, confirmou o sheik Abul Kalam Azad, presidente do Conselho Masjid para o Progresso da Comunidade, no Bangladesh, que vê-se teólogos de universidades do Egito e da Síria e Imãs da Índia, do Sudão e do Paquistão desafiarem a homofobia islâmica.
“A homossexualidade é um pecado, mas não devemos ser cruéis. Eles [gays] sofrem muito no mundo muçulmano”, disse ele. O ativista Inamdar acolheu esta declaração: “Existem muitos gays no meu grupo. O Islã diz que isto é um pecado e nós temos que seguir as regras islâmicas, mas somos todos humanos e todos merecemos respeito”.
Vestido duma túnica branca com adornos dourados e dum turbante branco, com sua esposa usando o véu muçulmano e seu bebê atrás dele, o sheik sudanês Mohamed Hashim al-Hakim não tinha ares de quem fosse receptivo aos direitos dos homossexuais. E portanto ele demostrou-se tolerante. Al-Hakim dirige uma empresa, a S-Smart Training and Consultancy Center, em Khartoum, que também coordena programas de prevenção à Aids.
“Eu costumava ser muito duro em relação aos homossexuais e as trabalhadoras do sexo”, disse ele. “Mas eu aprendi a respeitar sua humanidade. Eu aconselho-os a mudar, mas se eles querem continuar, devem praticar o sexo seguro para que não prejudiquem a si mesmos ou aos seus parceiros”.
Durante a conferência, que durou uma semana, Abu al-Sameed, coordenador do Programa para Jovens Imigrantes do Centro de Saúde Sherbourne, em Toronto, tinha suportado as declarações homofóbicas. Na véspera, um dos eruditos tinha relegado a homossexualidade ao nível da bestialidade e do adultério, como coisas a serem evitadas.
“A dureza das declarações me exaltou. Eu tinha que fazer alguma coisa pela minha própria integridade e dignidade, e para a dos outros gays muçulmanos”, disse Abu al-Sameed. Sua decisão de revelar-se amadureceu no seu grupo de trabalho durante a conferência, composto de muçulmanos do Iraque, do Quênia, da África do Sul e da Tanzânia, que conseguiram obter uma abertura para expressarem-se nas seções plenárias.
A psicóloga sul-africana Sabra Desai foi a primeira a falar sobre cuidados e solidariedade. Ela lembrou as palavras do Profeta: “Se uma parte do meu corpo dói, todo meu corpo dói. Eu interpreto isto assim: se um membro da minha comunidade sofre, todos nós sofremos”.
Ela apertou a mão de Abu al-Sameed por baixo da mesa e passou-lhe o microfone. Ele começou, devagar: “Como muçulmano gay...”. E com cada palavra, as portas da tolerância abriam-se mais.
http://www.agenciaaids.com.br/site/noticia.asp?id=8942