A angústia da vida executiva
O mais completo estudo sobre o mundo corporativo no Brasil revela por que o ambiente de trabalho se tornou fonte de infelicidade para presidentes e diretores
POR AMAURI SEGALLA
COM REPORTAGEM DE ALINE RIBEIRO, ANA SANTA CRUZ E CRYSTIANE SILVA
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FOTOS PAULO VARELLA
As porcentagens acima são os principais resultados de entrevistas com mais de mil executivos de 350 empresas
Nos últimos sete meses, a executiva paulistana Denise Santos, de 38 anos, presidente da BenQ Mobile no Brasil, fabricante de celulares, esteve no centro de um furacão. A empresa é subsidiária do grupo taiwanês BenQ, que em 2006 registrou o maior prejuízo de sua história. Para ajustar as contas, fábricas foram fechadas mundo afora, e centenas de funcionários, demitidos. De Taiwan, Denise recebeu ordem para reduzir em 40% a estrutura da filial. Sua rotina tornou-se caótica. Ela chegou a trabalhar até 17 horas por dia. Nos finais de semana, reuniões intermináveis paralisaram sua vida pessoal.
Praticamente só respirava trabalho. Numa das decisões mais difíceis e doloridas de sua carreira, ela se viu na contingência de afastar 300 funcionários. "Amo o que faço, mas os momentos de infelicidade no trabalho já me fizeram ir diversas vezes para uma sessão de terapia", afirma Denise, uma das mais jovens presidentes de empresa no Brasil.
As angústias, temores e dilemas enfrentados por executivos do topo como Denise são o tema de um profundo mergulho nos corações e mentes dos altos executivos brasileiros, num estudo conduzido, nos últimos dois anos, pela psicóloga mineira Betania Tanure e pelos pesquisadores Antonio Carvalho Neto e Juliana Oliveira Braga. Professora associada da Fundação Dom Cabral e mestre convidada do Insead (França) e da London Business School, autora de sete livros na área de negócios e membro dos conselhos de administração da Gol e da Medial Saúde, Betania e seus colegas entrevistaram pessoalmente 263 presidentes, vice-presidentes e diretores de grandes empresas nacionais. Outros 965 altos executivos responderam a um extenso questionário. O levantamento abrangeu mais de mil executivos de aproximadamente 350 empresas. Dele emergiu um quadro preocupante. Acompanhe:
>>> 84% dos executivos são infelizes no trabalho.
>>> 76% deles acessam e-mail profissional fora do horário de trabalho.
>>> 58% acham que os cônjuges estão descontentes com o ritmo excessivo de trabalho deles.
>>> 55% vivenciam uma mudança radical no trabalho.
>>> 54% estão insatisfeitos com o tempo dedicado à vida pessoal.
>>> 35% apontam problemas com o chefe como a crise mais marcante de suas vidas.
"Fiquei abismada com o grau de desconforto dos executivos em seu trabalho", afirma Betania. Algumas entrevistas, que acabaram se convertendo em sessões de desabafo, duraram horas. Em alguns casos, tantas eram as queixas que a conversa teve de ser retomada. Todos foram ouvidos sob a condição de que seria mantida confidencialidade (o que faz toda a diferença em um trabalho dessa natureza). Lastreada pela atuação profissional de mais de duas décadas, a pesquisadora valeu-se da sólida relação de confiança estabelecida com seus entrevistados. Prevaleceu um clima de franqueza acima do comum em trabalhos dessa natureza. "Para seguir em frente, os executivos costumam colocar um véu em seus problemas e se recusam a olhar para suas infelicidades", afirma Betania.
Esta não é mais uma daquelas pesquisas simplistas, que se limitam a contabilizar respostas formais. Para chegar à conclusão de que 84 de cada 100 altos executivos brasileiros são infelizes no trabalho, os pesquisadores combinaram dois índices de avaliação. O primeiro, chamado Índice Global de Satisfação, considera variáveis como as horas trabalhadas, o grau de satisfação com os chefes e subordinados, os níveis de cobrança por resultados e os sistemas de recompensa, entre outros. O segundo critério, denominado Índice Global de Sensações e Atitudes, avalia o grau de ansiedade, insônia, problemas familiares, desânimo e consumo de bebidas alcoólicas, entre outros aspectos relacionados à vida pessoal. Depois de cruzados esses dados, com os respectivos pesos, foram considerados infelizes aqueles executivos cujos indicadores negativos sobrepujavam os positivos.
A globalização desponta no estudo como uma das principais vilãs responsáveis pelo aumento da tensão no mundo corporativo. Com a competição disparando de todos os lados, as empresas correm atrás de aumento de produtividade para brigar em condições de igualdade com a concorrência mais e mais voraz. Legiões de profissionais foram demitidas nesse processo. Quem antes fazia apenas o seu trabalho passou a realizar o de três pessoas. Quem chefiava um único departamento assumiu o comando de vários setores. Os que sobreviveram tiveram de provar sua competência de forma quase obsessiva. "O acirramento da competição globalizada representou uma virada no mundo corporativo brasileiro", afirma Betania. Metas cada vez mais ambiciosas foram estabelecidas. A tecnologia também teve um papel decisivo na aceleração do ritmo de trabalho nos últimos anos.
Equipamentos como o BlackBerry, o celular que facilita o envio e recebimento de e-mails, e os laptops, que permitem acessar a internet de qualquer lugar, sem precisar de rede fixa ou pontos wireless, acabaram por eliminar a fronteira entre a vida pessoal e o escritório. Trabalha-se o tempo todo. Na quadra de tênis. Em casa, com os filhos. No jantar romântico com a pessoa querida. Também nas férias e feriados. Veja o executivo paulista Davide Marcovitch, presidente do grupo Moët Hennessy na América Latina, dono de algumas grifes do setor de bebidas (Veuve Cliquot e Moët & Chandon), Marcovitch chega a passar 20 horas por dia no escritório em São Paulo. Ao longo de quatro décadas de carreira, ele afirma ter-se desligado das atribuições profissionais somente em duas ocasiões. "Uma na lua-de-mel, há 30 anos, e outra em 1999, numa viagem com minha mulher." Por que se sacrificar tanto? "É o único jeito de chegar ao topo", diz.
DENISE SANTOS 38 anos, presidente da BenQ Mobile
A carreira executiva deixou marcas na vida da engenheira elétrica Denise Santos, responsável pela BenQ Mobile no Brasil. Para ela, a solidão profissional revelou-se de forma dramática: "No ano passado, tive um problema de saúde, fiquei triste, mas ninguém me perguntou se havia algo de errado comigo". O desenvolvimento de grandes projetos também desgasta. Há três anos, participou da implantação do sistema GSM para a Claro e coordenava 400 pessoas. "Não conseguia dormir, passei a tomar remédios. No final, percebi que nada disso valeu a pena." Nos primeiros anos de trabalho, a entrega foi importante, mas virou escravidão. "Fui casada por sete anos e posso dizer que o excesso de trabalho foi uma das causas do fim", afirma. Depois da separação, ficou cinco anos sem nenhum relacionamento firme. Hoje, namora um homem que conheceu no trabalho. "Perto dos 40 anos, começo a pensar se deveria ou não engravidar."
O ESTRESSE ESTÁ GLOBALIZADO
Segundo um estudo conduzido pela socióloga americana Juliet Schor, os principais executivos americanos trabalham hoje 163 horas mensais a mais em relação a 1969 - o equivalente a quase um mês inteiro de labuta por ano. Na década de 80, conforme a mesma pesquisa, 55% dos líderes admitiam viver uma situação de grande estresse na vida profissional. Os dados atuais demonstram que o nível subiu para 75%. No Brasil, de acordo com Betania, os executivos do topo trabalham, em média, 14 horas a cada dia - número somente comparável ao do Brasil do início do século 20. A industrialização tardia do país fez com que, especialmente entre as décadas de 10 e 30, os trabalhadores brasileiros permanecessem 14 horas por dia confinados nas fábricas. Num certo sentido, os executivos de hoje trabalham ainda mais, considerando e-mails lidos e celulares atendidos fora do expediente oficial. Isso equivale a 70 horas semanais. Para efeito de comparação, a Constituição brasileira de 1988 estabeleceu a jornada de 44 horas semanais - ou seja, os executivos do topo dedicam a suas companhias quase o dobro do tempo previsto pela lei vigente no país.
Os executivos trabalham mais de 14 horas por dia - patamar só comparável à jornada do Brasil arcaico do início do século 20
É inevitável associar o quadro de infelicidade ao ritmo global de trabalho. De acordo com um estudo da Harvard Business School, 70% dos americanos estão insatisfeitos com a intensidade de sua jornada de trabalho. Metade dos entrevistados considera improvável desfrutar uma vida saudável nessas circunstâncias. No Japão, o índice de insatisfação aproxima-se de 80%, segundo levantamento da Universidade Metropolitana de Tóquio. Tudo isso explica o surgimento da expressão extreme jobs (trabalhos extremos). O termo refere-se às atividades que exigem dedicação 24 horas por dia dos profissionais mais graduados, responsabilidade por perdas e ganhos, prestação de contas a diversas pessoas (acionistas e, muitas vezes, chefes em outros países) e capacidade para enfrentar situações de grande tensão sem jamais denunciar nenhum sinal de fraqueza.
Em seu estudo, Betania expôs o que parece evidente, mas nem sempre é admitido: a falsidade do estereótipo de herói ou homem de aço no mundo corporativo. "Nos últimos anos, observei inúmeras manifestações de sofrimento e explosões espontâneas de tristeza de líderes importantes", afirma ela. "A versão oficial de que eram irremediavelmente felizes precisava ser desfeita." Betania testemunhou cenas comoventes. Presidentes em momentos de fragilidade emocional. Alguns choraram (sim, presidentes de empresas também choram). Lamentos eloqüentes contra o tempo perdido com o excesso de trabalho. Pela dedicação que oferecem às empresas, todos eles são recompensados com status, poder e dinheiro. Mas o tempo passa e, após longos anos de árdua batalha para obter sucesso profissional, eles se perguntam se isso era mesmo o mais importante. "Chega um momento em que todo ser humano depara com uma questão fundamental: se é ou se foi feliz ou não", disse a Época NEGÓCIOS o historiador inglês Stuart Walton, autor de Uma História das Emoções, publicado recentemente no Brasil pela Editora Record. No livro, Walton examina aquelas emoções que considera primordiais (como medo, raiva, tristeza e felicidade) e as relaciona à vida moderna. Em um mundo afeito a mudanças velozes que obrigam os profissionais a se desdobrar em inúmeras atribuições cotidianas, quem se destaca são justamente aqueles que mais se entregam ao que ele chama de "frenesi mundano". Trabalham intensamente, têm ambição desmedida, são competitivos ao extremo e gladiadores dispostos a sobreviver num ambiente marcado pela escassez de companheirismo e amizade. "De alguma forma, a vida cobrará seu tributo e o preço pago por essas pessoas, muitas vezes, é a infelicidade", diz Walton.
CLEDORVINO BELINO, 58 anos, presidente da Fiat
Um dos executivos brasileiros mais bem-sucedidos, Cledorvino Belini é um homem realizado. Sob seu comando, cerca de 17 mil funcionários produzem 1,8 mil carros por dia em Betim (MG), na maior fábrica de automóveis do grupo Fiat fora da Itália. Desde que se lembra, trabalha 13 ou 14 horas por dia. Há sete anos, passou por um grande susto. "Tive uma fibrilação arterial, uma espécie de arritmia no coração", diz. "Ouvi do médico que, se eu continuasse naquele ritmo, teria poucos anos pela frente." A causa da doença? A correria do dia-a-dia associada ao estresse comum entre executivos no topo. O jeito foi reorganizar tudo. Como trabalhar intensamente fosse inevitável, decidiu incorporar hábitos saudáveis. Passou a fazer exercícios físicos e priorizar alimentos menos calóricos. Hoje, 10 quilos mais magro, sente-se mais disposto. E o ritmo continua alucinante. Mesmo no fim de semana, responde e-mails dos funcionários da empresa. São, às vezes, centenas de mensagens. "Não deixo um sequer sem resposta", diz.
DINHEIRO E FELICIDADE
Se as atribulações nos escritórios tornaram-se uma fonte de angústia para os altos executivos, o que pode fazê-los mais felizes? Mais dinheiro, sucesso e poder certamente não é a resposta. Afinal, os profissionais entrevistados por Betania e sua equipe lideram os rankings de remuneração, são vistos por seus pares como estrelas e tomam decisões muitas vezes por sua conta e risco. "Estudos mostram que as pessoas mais felizes são aquelas que amam intensamente o que fazem, seja no trabalho, seja em casa, cuidando dos filhos", diz o historiador Walton. "Se forem bem remuneradas para fazer o que gostam, melhor ainda." Para Betania, há uma diferença sutil entre os conceitos de felicidade e prazer no trabalho: "Os executivos são apaixonados pelo que fazem, mas o ambiente intoxicado os impede de encontrar a felicidade". É fácil de entender. O sujeito tem prazer em lançar um novo produto, em construir fábricas, em desbravar fronteiras. O problema está nas intermináveis reuniões, na jornada excessiva, na falta de possibilidade de desfrutar outras dimensões da vida. Em não raros casos, isso provoca danos à saúde. Tempos atrás, o executivo Cledorvino Belini, presidente da Fiat, teve um problema cardíaco diretamente causado pelo estresse gerado pelo volume excessivo de trabalho. Recuperado do susto, teve de adotar a prática de exercícios físicos para equilibrar o corpo e a mente. "Hoje levo uma vida mais harmoniosa", diz. No final do ano passado, o presidente de uma grande empresa do setor de telecomunicações desmaiou no banheiro da companhia depois de participar de uma reunião com a equipe. Não era infarto ou acidente vascular cerebral, o mais comum nesses casos. Era simplesmente estresse. Recentemente, um diretor de uma empresa de alimentos surtou, reagindo aos gritos quando o chefe lhe passou uma atribuição impossível de ser cumprida no prazo estabelecido. Contido por colegas de trabalho, foi levado ao hospital e de lá seguiu para tratamento psiquiátrico. Também há pouco, um executivo de uma companhia do setor de bebidas desistiu de embarcar para o exterior numa missão profissional. Desistiu porque não conseguia enfrentar a perspectiva de um vôo e das intermináveis e muitas vezes infrutíferas reuniões que viriam a seguir. "Senti uma angústia, uma ansiedade incontrolável. Simplesmente travei", afirma o executivo, que iniciou tratamento psicoterápico.
"Frenesi mundano" é o nome que os pesquisadores dão ao estilo de vida dos executivos de ambição desmedida, supercompetitivos
Uma maneira eficaz para detectar os reais sentimentos dos CEOs - não os que se espelham em declarações oficiais, mas aqueles que se ocultam na persona bem moldada - é ouvir o testemunho de executivos que deixaram o cargo. É esse o caso do paulistano Geraldo Carbone, 50 anos. Ex-presidente da filial brasileira do BankBoston, cargo que ocupou por nove anos até que a empresa foi incorporada pelo rival Itaú, Carbone decidiu iniciar uma carreira solo, à frente da GC Capital, empresa de investimentos. Não tem subordinados, além da secretária. "O que me atraía no cargo de presidente eram os desafios", afirma. "Nunca me deixei seduzir pelo status e outras maravilhas." Hoje, Carbone afirma não ter saudade do mundo corporativo. "É insalubre, dramaticamente insalubre." Para sustentar essa visão ácida, ele afirma que a angústia flagrada pela pesquisadora Betania se deve ao aumento da complexidade do mundo dos negócios combinada com a perda de autonomia dos presidentes de subsidiárias. "Ao mesmo tempo em que aumentaram as cobranças e os prazos, tiraram do executivo as ferramentas que lhe possibilitariam dar conta de suas metas", diz Carbone. "É uma encrenca que coloca o presidente num caminho sem solução."
DAVIDE MARCOVITCH 62 anos, presidente do grupo Moët Hennessy
Nas últimas três décadas, Davide Marcovitch não se lembra de ter tirado mais de dez dias de férias seguidos. Na última vez, foi com a mulher à França e à Itália e passou todo o tempo colado ao celular. Responsável na América Latina por um grupo que tem inúmeros braços internacionais (a empresa é dona de grifes como Veuve Cliquot e Moët & Chandon), Marcovitch coordena o trabalho de 800 pessoas em diferentes países. "Nunca trabalho menos de 16 horas por dia", diz o executivo, que já chegou a dormir no escritório. "Acordo nos horários mais inusitados para falar com os escritórios no mundo." Se isso o incomoda? "Pode parecer algo irracional, mas esse ritmo é natural na minha vida." Casado há 30 anos, não tem filhos. "No começo, foi opção", diz. "Eu sabia que teria de me dividir entre trabalho e família. Para não fazer uma escolha difícil, preferi deixar de lado a chance de ter crianças." Anos depois, o casal reconsiderou a hipótese, porém já era tarde demais. "Paciência, não gosto de ficar remoendo o passado."
QUEM QUER SER PRESIDENTE?
O aumento da complexidade, a pressão de acionistas e a aceleração da rotatividade de presidentes no cargo geraram nos Estados Unidos uma reação surpreendente dos executivos. Mais da metade dos entrevistados em uma pesquisa realizada há dois anos disse que não gostaria de ser presidente de uma empresa. Detalhe: foram ouvidos pelos pesquisadores executivos de altos postos, a meio caminho de se tornar virtuais candidatos ao principal posto de uma corporação. Uma das vítimas desse processo foi o executivo Antonio Werneck, substituído, em 2002, no comando das operações na América Latina da anglo-holandesa Reckitt Benckiser. Ele conta que enfrentou dificuldades ao negociar metas com a matriz. "Virou uma conversa de louco", afirma ele. Angustiado com tudo isso, Werneck decidiu abrir um período sabático para fazer uma revisão de vida. Freqüentou um conselheiro de executivos em Londres, viajou para o Peru, divorciou-se e casou novamente. "Hoje sou outra pessoa, capaz de calibrar melhor cada aspecto da vida, não apenas o profissional", diz Werneck, atual presidente da Santher, fabricante de papéis.
"Sinto o tempo todo que alguém da minha própria empresa me dará uma facada pelas costas", diz o diretor de uma indústria de bebidas
É muito difícil o executivo abrir mão de um salário generoso, do poder e do status que desfruta na vida executiva. "Ele cai na armadilha financeira", afirma Betania. "Acredita que uma promoção ou mais dinheiro podem aliviar sua infelicidade, mas isso é um equívoco." Em geral, é frágil a relação entre aumento de renda e felicidade. Décadas de forte crescimento econômico nos EUA, na Europa e no Japão na segunda metade do século 20 não aumentaram a proporção de indivíduos que se consideram felizes. Entre 1975 e 1995, segundo dados do governo americano, a renda média por habitante nos EUA aumentou 43% em termos reais. No mesmo período, o grau de felicidade permaneceu estagnado. "Na faixa de população muito pobre, dinheiro em geral traz algum aumento no nível de felicidade", disse a Época NEGÓCIOS o economista suíço Bruno Frey, professor da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e do Instituto de Política de Paris. Autor de diversos estudos que relacionam o impacto do aumento da renda e do nível de estudo na felicidade das pessoas, Frey vê um limite para isso: "Para as pessoas que alcançam um padrão financeiro médio ou elevado, mais dinheiro não as deixa mais felizes".
Por que o bem-estar financeiro não é capaz de trazer paz de espírito para as pessoas? Os sábios do passado dão pistas. O romano Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), um dos grandes filósofos da Antiguidade, escreveu que para alcançar a felicidade "é preciso livrar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a maioria dos homens". Nada mais apropriado nos tempos atuais, em que os executivos são tomados por uma agitação permanente (nem sempre produtiva). Outro sábio, o grego Demócrito (460 a.C.-370 a.C.), escreveu Sobre o Prazer, texto que traz, logo no começo, a seguinte recomendação: "Ocupe-se de pouco para ser feliz". É tudo o que os altos executivos não fazem.
Sigmund Freud (1856-1939) levou o dilema para outro campo. De acordo com o criador da psicanálise, o processo civilizatório e o avanço da racionalidade demandado pelo mundo contemporâneo comprometem as aspirações primárias dos indivíduos, entre elas a felicidade. Para Freud, o cerceamento da espontaneidade natural impede a civilização de ser feliz. "O homem primitivo estava em situação vantajosa por não conhecer restrições ao instinto", escreveu em um de seus clássicos, O Mal-estar na Civilização. "O homem civilizado trocou uma parcela das suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança." Para o psicólogo americano Jonathan Haidt, professor da Universidade de Virgínia e autor do best-seller The Happiness Hyphotesis ("A hipótese de felicidade"), o segredo está justamente na confluência entre o bem-estar material e o espiritual. Segundo ele, é preciso fazer parte de algo, ter um propósito (nem que seja subir na carreira), mas ao mesmo tempo olhar para dentro de si e para as pessoas em torno.
O DISCURSO CORPORATIVO É CONTRADITÓRIO
A pesquisadora Betania Tanure diz que, na prática, muitas empresas não valorizam seus executivos
Em depoimento a Época NEGÓCIOS, a psicóloga Betania Tanure discorre sobre o levantamento que consumiu dois anos de trabalho e será transformado em livro:
>>> O que motivou o estudo "Em meados dos anos 90, comecei a perceber uma certa angústia entre os líderes empresariais. Alguns executivos mais próximos relataram experiências negativas que vivenciaram no trabalho. Notei um enorme desconforto principalmente entre aqueles que detinham poder. Estava claro que algo negativo se desenrolava com grande força. Os homens do topo estavam trabalhando demais, distanciavam-se da família, sentiam-se compelidos a competir de forma agressiva no próprio ambiente profissional em que se inseriam. Resolvi investigar, incitando-os a falar mais."
>>> A pesquisa "Apliquei uma escala de 1 a 7 para definir o que chamei de Índice Global de Satisfação dos profissionais com o trabalho e com a vida pessoal, variando de 'extremamente insatisfeito' até 'extremamente satisfeito'. Entre as variáveis analisadas na vida profissional, incluí relação com os pares, chefes e subordinados, níveis de cobrança por resultado e sistemas de recompensa, entre outros fatores. No campo pessoal, pesquisei a relação com os filhos, familiares e parceiros amorosos, qualidade da alimentação e saúde, entre outros aspectos. Também apliquei uma escala de 1 a 7 para definir o Índice Global de Sensações e Atitudes, variando de 'nunca' até 'sempre'. Nesse caso, os executivos foram questionados sobre a incidência de ansiedade, dor de cabeça, fadiga, insônia, desânimo, diminuição do interesse sexual e consumo de bebidas alcoólicas, entre outras"
>>> Prazer e infelicidade "Eu e minha equipe chegamos ao percentual de 84% de executivos infelizes no trabalho depois de cruzar os dados e considerar a predominância de respostas negativas, ou seja, aquelas em que eles revelaram altos índices de insatisfação com a vida que levam no escritório. Entretanto, é impossível não admitir que os líderes têm muitos prazeres no mundo corporativo. Eles amam o que fazem. Mas há imensos conflitos também. O problema central é que colocam um véu na frente e se recusam a olhar para as infelicidades. Muitos dizem que, se tirarem o véu, enlouquecem. Até que chega alguém e diz para tirar a cortina. É por isso que alguns executivos choraram nas entrevistas. A máscara é muito grande."
>>> As causas da tristeza "São diversos os fatores que levaram à infelicidade. A questão do aumento da competição é um turning point na história do mundo corporativo brasileiro. A competição está crescendo de forma brutal. Os executivos encontram estruturas cada vez mais enxutas, nas quais os bons cargos são cada vez mais escassos. Portanto, só a alguns eleitos está reservado o Olimpo do poder - e todos querem desfrutá-lo. Essa disputa aumenta a desconfiança. Quem consegue ser feliz num ambiente em que se espera ser traído a qualquer momento? A globalização também provocou grandes impactos. Hoje, o sujeito tem um chefe nos Estados Unidos, outro na China, que muitas vezes pedem coisas diferentes. Ele tem de prestar contas a inúmeras pessoas - a qualquer hora do dia, inclusive de madrugada, graças ao fuso horário. Trabalha-se cada vez mais e sob brutal tensão."
>>> A situação das executivas "Todo mundo fala em oportunidades iguais, mas isso não existe. Quanto mais elevado o nível hierárquico, menos mulheres se encontra. É óbvio que a situação hoje é melhor do que há 20 anos. Mas difere muito da dos homens. Não consigo vislumbrar, nos próximos anos, uma proporção equilibrada entre os sexos. Há um momento na vida da mulher, chamado maternidade, que é dramático. A maioria delas decide desacelerar a carreira. Com os homens, ocorre o oposto."
LARES DESFEITOS
Um dos principais fatores que conduzem à infelicidade, como constatou Betania Tanure em seu estudo, é justamente a impossibilidade de os executivos, diante do que as empresas exigem deles, viverem um relacionamento intenso com a família. Não é só para dentro de si que eles não conseguem olhar, mas, em especial, para os que vivem próximos. Eis um campo minado por ressentimentos, faltas e, sobretudo, culpas. "O trabalho é hoje o lugar da admiração, enquanto a casa está se transformando no espaço da culpa e da dívida", diz a também psicóloga Vicky Block, conselheira de executivos. Enquanto no escritório a persona profissional brilha e é invejada por seus pares, no lar a situação revela-se diametralmente oposta. É onde o profissional sofre pressões por não dar suficiente atenção ao cônjuge, não ajudar na lição de casa dos filhos ou ausentar-se de uma reunião de pais, ou por não cumprir a eterna promessa de viagem com a família. "Quando você entra no local de trabalho, sabe exatamente o que tem de fazer, é algo quase matemático", diz Afonso Celso de Barros Santos, presidente da locadora Avis do Brasil. "No âmbito emocional é que vem o desgaste, a dificuldade de perceber se está ou não fazendo a coisa certa." Barros diz que se angustia por ficar pouco com os filhos. "Temo que a dedicação limitada às crianças possa ter um impacto negativo no futuro deles."
As mulheres enfrentam um quadro dramático. como ter filhos e subir na carreira? Os avanços feministas pouco chegaram aos escritórios
O dilema é complexo. A maioria dos executivos sabe que precisa reservar um tempo maior para a família, mas nem ele tampouco os parentes próximos admitem dispensar os bens materiais conquistados graças ao alto cargo bonificado. "Se eu diminuir o ritmo e ganhar menos, sei que a minha família irá chiar", foi a resposta mais freqüente quando Betania questionou seus entrevistados sobre a hipótese de reduzir sua jornada. Para a psicóloga Vicky, essa aparente contradição faz parte do que ela chama de "gestão de paradoxos" que os profissionais do topo devem administrar. A maioria dos executivos sente-se impotente diante dessa situação. Em geral, culpam-se por não ver os filhos crescerem, recebem enorme pressão vinda dos familiares e obviamente sofrem com isso - mas não conseguem mudar esse estado de coisas. Um dos casos relatados no estudo diz respeito a um executivo que, ao chegar em casa, deparou com a mulher de malas feitas e os filhos dentro do carro, prontos para abandonar o lar.
Esses mesmos paradoxos são replicados nas empresas que investem no discurso da qualidade de vida, mas que, na prática diária, se convertem em miragem. "Já dei inúmeras entrevistas exaltando a maneira como minha corporação preza o bem-estar dos funcionários, mas o que não contei é que minha vida pessoal estava destruída justamente pela quantidade absurda de trabalho", disse um ex-diretor de uma grande empresa do setor de telecomunicações, divorciado recentemente devido aos serões de madrugada no escritório. O estudo traz outra constatação inquietante que demonstra como o trabalho assumiu no mundo contemporâneo proporções grandiosas. Ao ser questionados sobre o evento negativo mais marcante em suas vidas, 39% referiram-se à morte na família. Outros 35% disseram que as brigas com os chefes foram os eventos mais significativos. Conclusão que causa perplexidade: há um empate técnico entre o estresse gerado pela perda de um familiar e rotineiros conflitos com a chefia.
SYLVIA COUTINHO, 45 anos, diretora-executiva do HSBC Bank Brasil
Ela representa duas notáveis exceções no mundo corporativo. A primeira delas diz respeito ao cargo que ocupa. Ainda é desigual a proporção de homens e mulheres que estão no topo da hierarquia. A segunda refere-se à vida familiar. De acordo com o estudo realizado pela pesquisadora Betania Tanure, apenas 7% das executivas entrevistadas são casadas com homens que não trabalham. O marido de Sylvia Coutinho, diretora-executiva do HSBC Bank Brasil, o engenheiro agrônomo Bernard Costilhes, abdicou da carreira para acompanhar o crescimento profissional da mulher. Consultor, Costilhes passa a maior parte do tempo em casa e é o responsável por ir às reuniões de escola dos filhos ou levá-los ao médico. A situação já provocou cenas constrangedoras. "Nos eventos relacionados ao trabalho, as pessoas que não nos conhecem supõem que meu marido é o executivo", diz ela. Sylvia sente-se culpada por não ter participado como gostaria da vida dos filhos. Dor mitigada pela intensa dedicação do marido.