Wall Street se rende aos fundos de países para sair da crise e põe em causa velhos paradigmasTratados poucos anos atrás como pedintes, emergentes são a tábua de salvação de bancos como o CitiWall Street está em polvorosa. Depois de assistir a seus vistosos e poderosos bancos ficarem sem fôlego, à porta da quebradeira, com o estouro da bolha imobiliária e início da grande desconfiança nos mercados financeiros globais, que afasta os aplicadores dos papéis podres que carregam e acentua o risco de recessão nos EUA, começou um fenômeno surpreendente. Fundos de países que uma a duas décadas atrás vinham a Wall Street como pedintes são, hoje, a sua tábua de salvação. O mundo dá voltas, e mais dará até o fim desta crise.
O sistema financeiro global, sobretudo o dos EUA, possivelmente, nunca mais será o mesmo quando passar a crise ainda em curso, e elas passam, e ficarem visíveis os novos donos do pedaço em Wall Street. Anteontem, quando anunciou perdas de US$ 9,83 bilhões no último trimestre de 2007, resultado da baixa contábil de US$ 18 bilhões de papéis ilíquidos - e mais haverá trimestralmente quanto mais durar a aversão aos títulos exóticos emitidos pela banca -, o Citibank, legenda do sistema bancário dos EUA, anunciou a venda de 3,7% de seu capital para um desses fundos soberanos de países.
Agora, foi o de Singapura, que injetou US$ 6,8 bilhões. No fim do ano passado havia sido o de Abu Dhabi, que pôs US$ 7,5 bilhões em troca de 4,9% do capital do Citi, no qual já estava com cerca de 3%, agora também aumentado, o príncipe saudita Alwaleed bin Talal.
Outros potentados financeiros também se socorreram no caixa largo de países que formaram enormes reservas de divisas, especialmente da Ásia, como a China, e os petroleiros do Oriente Médio, como os reinos dos Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Arábia Saudita, mas há muito mais destes fundos, conhecidos em inglês pela sigla SWF, de sovereign wealth fund, espalhados pelo mundo.
Aqui mesmo o governo pensou em fazer algo parecido, aproveitando-se das reservas de US$ 184,5 bilhões, grande parte estacionada nos TNotes dos EUA. São neles que também estão as reservas dos países superavitários, estimando-se em US$ 2,2 trilhões esta montanha de dinheiro ocioso, 60% da China, rendendo pouco se aplicado em renda fixa, como os papéis do Tesouro dos EUA. É um novo, surpreendente mundo que vem pela frente. Se admirável, é o que ainda se verá.
Novos ricos do mundoEm uma década, segundo afirma Andrew Leonard na revista Salon, estima-se que os tais fundos soberanos estarão montados em US$ 12 trilhões. Tudo de propriedade do Tesouro de países que carecem de maiores oportunidades para investir essa dinheirama em sua própria economia ou não precisem tanto dela, caso da China. Fazer o quê?
Sair comprando o que estiver pela frente mundo afora. Por ora, além do Citi, já foram seduzidos por este dinheiro o Bear Stearns, o Morgan Stanley, o Merrill Lynch, todos dos EUA, o suíço UBS - e muitas empresas industriais e de serviços da economia real.
Bom para EUA, BrasilO desastre financeiro dos bancos americanos, com repercussões não menos sérias também na zona do euro, precipitou esse movimento ao abrir a chance única aos países superavitários para botar um pé no centro nevrálgico da maior economia do mundo. Tal tendência já se via no horizonte, mas está sendo acelerada.
Surgem daí muitas, e instigantes, elucubrações. A imediata é que, se governos de países com importância central nos desdobramentos da economia global, como o chinês, resolveram assumir posições-chaves em Wall Street é porque pressentiram oportunidades. Bom para os EUA. Quanto mais rápido arrefecer a crise financeira, menor será a desaceleração da economia americana e os prejuízos globais. Bom para o Brasil.
Fim do livre mercado?Mais preocupante, do ponto de vista político dos países visados pelos fundos soberanos, é a eventual interferência externa sobre os negócios nacionais. É o que se discute nos EUA, onde o governo Bush, por exemplo, já vetou negócios desse tipo, como a venda de portos para o fundo de Abu Dhabi e de uma petroleira para uma das estatais da China.
Além disso, começa a ser discutida uma questão mais sutil: se não se infiltraria por aí o vírus que solaparia o mercado livre, com os movimentos econômicos influenciados cada vez mais pelo dirigismo de governos. É questão controversa. Ela remete no Brasil ao papel do governo na consolidação cogitada do setor de telefonia diante desse cenário desafiador: o de economias privadas na fachada e estatais na retaguarda. Mas estatais estrangeiras...
Afinal, o que é a Telefónica? É uma estatal privatizada, na qual o presidente é nomeado com aval do governo da Espanha. E a Telmex? Idem com batatas, estando seu dono, Carlos Slim, para o governo do México como a ex-estatal Vale está para o governo brasileiro: pode lucrar quanto quiser, menos ficar na contramão do poder de turno.
Pouca compreensãoAs transformações na economia mundial são pouco compreendidas no Brasil, o que não implica uma crítica, já que também nebulosas nos EUA e na Europa. Só que aqui ainda se analisa o presente com carga cultural do passado, o que distorce muito mais o que por si já não é facilmente percebido.
Tome-se a crise dos EUA. Muitos a enxergam como o ocaso do império. Especulou-se o mesmo no fim dos anos 80, quando, com a economia também em frangalhos, juros a mais de 20%, causou comoção a venda a uma imobiliária do Japão, no coração de Manhattan, de um dos ícones do capitalismo, o Rockefeller Center.
E deu no quê? No ano seguinte o Japão entrou numa crise da qual não saiu ainda, o Rockefeller Center foi revendido na bacia das almas, surgiu a internet e a riqueza voltou a fluir nos EUA.
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