Ontem recebi minha cópia do
Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein pelo correio. É um livro bem diferente do que eu esperava pelo que ouvi falar; pequeno a ponto de mal o texto principal ter mais páginas do que as introduções somadas com o apêndice, e lógico, direto e despretensioso ao extremo. Acho que no fundo eu esperava algo similar a um texto arcano, e é exatamente isso o que o Tractatus não tenta ser.
Mas o choque serviu para me fazer perceber uma coisa: como a lógica é impopular. E, sendo eu quem sou, um dos primeiros exemplo que me vieram à cabeça foi
a falta de lógica da idéia de reencarnação e como esse é exatamente o apelo dela.
Aí me lembrei da minha história acadêmica e a de amigos e conhecidos meus que realmente se dedicaram a aprender. E percebi que pelo menos que se refere a expectativas parentais, a forma como se aborda o ensino superior é francamente irracional. Uma mãe passa talvez vinte anos convivendo com os próprios filhos e ensinando a eles o básico da sobrevivência doméstica, e nem sempre consegue bons resultados apesar de muitos outros estarem presentes na vida dos filhos e poderem ajudar a suprir os pontos de deficiência.
E no entanto, misteriosamente, neste tempo em que o ensino básico está em tão franca decadência e os pais mais distantes e sobrecarregados do que nunca, acha-se muito natural que quatro anos em uma faculdade particular (em condições de ensino muitas vezes precárias) façam, para usar uma frase famosa,
"toda a diferença".
A verdade é que isso não pode acontecer exceto talvez em circunstâncias muito raras e excepcionais; não se pode ser duas coisas incompatíveis ao mesmo tempo. Não se pode ter passado a vida toda aprendendo a estar em paz diante das dificuldades dos próprios familiares em pensar logicamente e se expressar corretamente na língua portuguesa para então cursar 250 créditos noturnos e passar a ser um advogado competente, que dirá um bom filósofo, antropólogo ou engenheiro de software (não menciono medicina porque sei que nesse caso há muito mais do que 250 créditos). Não sem romper com o passado, o que na prática significa abandonar a família e as expectativas da mesma. Ou, quem sabe, desenvolvendo algum tipo de psicopatologia de cisão de raciocínio.
Quanto mais se aposta em grandes conquistas, mais é preciso estar disposto a renunciar para ter essa chance. Realmente é simples assim. Existem grandes e maravilhosos campos de conhecimento a se explorar, mas dedicação tem seu preço, e a harmonia e saúde do ambiente familiar também tem. Escolhas tem de ser feitas. Se queremos que nossos filhos sejam mais sábios do que nós,
devemos antes de mais nada aceitar nossa própria ignorância relativa e nos perguntar que papel podemos realisticamente ter nesse futuro que pretendemos construir. E, se temos alguma seriedade nessa proposta, vamos perceber bem cedo que as escolhas difíceis surgem desde o início. Se por um lado é bom poder falar que se tem um filho doutor, por outro é doloroso perceber que não há como entender o que ele faz em seu ofício, muito menos como dividir experiências de vida profissional com ele ou de acompanhar a mudança do campo profissional.
Não acho que seja coincidência que em muitos casos de verdadeiros acadêmicos (não portadores de diploma, mas acadêmicos mesmo - pessoas que aprenderam a ser competentes em uma ou mais disciplinas acadêmicas e a ter algo de útil a contribuir nela) que conheço a conquista não foi propriamente deles individualmente, mas do ambiente familiar em que cresceram e viveram antes e durante a formação. Exemplo conta, e conta muito. Diálogo idem.
No fundo tudo é muito lógico e claro. Mas pode ser também difícil de aceitar, principalmente em uma realidade sócio-econômica como a brasileira, que tem desigualdades de oportunidade tão cruéis. Imagino que por isso idéias malucas como a de uma "reencarnação premiada" acabam se inserindo; o brasileiro tem uma afinidade cultural pela idéia do trampolim, do atalho, do pára-quedas para a oportunidade não-merecida.
Então crê. Crê não porque tem fé, mas porque sabe que não pode ter. Crê que uma faculdade noturna fará de seu filho "alguém" porque sabe que não será o ambiente de gritaria, ignorância e truculência em que ele foi criado que terá esse poder. Crê que vai ganhar na loteria porque precisa acreditar. Crê que votar em um político demagogo para depois pedir um emprego diretamente a ele é o melhor para seu futuro. Crê porque não tem fé e não sabe como conquistar a verdadeira fé.
Há o lugar-comum de que pessoas de ciência abandonam a fé (religiosa). Mas percebo agora que a recíproca talvez seja mais verdadeira ou pelo menos mais reveladora: A fé (ou mais exatamente, a crença interesseira) é que costuma abandonar a razão e seu frutos preciosos, a lógica e a ciência. Por que esta teria de fazer sozinha a reconciliação?