Um texto do economista brasileiro Eduardo Giannetti que peguei no orkut:
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=57316&tid=2517958803876850188&kw=BlakeEm quase 70 anos de assídua atividade intelectual, Friedrich von Hayek publicou 26 livros e cerca de 250 artigos em periódicos especializados. Essa formidável massa de publicações impressiona não só pelo seu volume, mas também pela diversidade dos temas tratados. Hayek escreveu sobre assuntos que se encontram espalhados por vários departamentos universitários e que vão desde a epistemologia, ética, psicologia e filosofia da ciência até a história das idéias, economia, jurisprudência e política.
Ao contemplar o legado de Hayek, o estudante de sua contribuição ao pensamento moderno é levado à conclusão de que nenhuma mente individual teria condições de dominar plenamente a extraordinária torrente de teses, pistas, críticas e informações contida em sua obra. O consolo é lembrar a definição certa vez sugerida pelo próprio Hayek: “Uma pessoa educada é aquela que já esqueceu muita coisa”.
Pelo que será lembrado Hayek no futuro? O primeiro ponto é distinguir com clareza entre a imagem pública e o pensamento do autor. “A fama”, advertiu o poeta alemão Rainer Maria Rilke, “é a quinta-essência dos mal-entendidos que se juntam a um nome”. O fato é que nenhum intelectual, seja qual for a sua orientação ideológica, tem condições de controlar – ou sequer prever – o uso que será feito de suas idéias por outros intelectuais ou pelos políticos e líderes de opinião em geral.
É curioso que no último encontro que tiveram, em 1946, Hayek e Keynes tenham tocado precisamente nessa questão. “Eu perguntei a ele”, relatou Hayek sobre a conversa, “se ele não estava alarmado com o uso que alguns de seus seguidores estavam fazendo de suas teorias.
O que falta no relato de Hayek é saber como ele teria reagido a uma pergunta assim. A experiência mostra que as conseqüências não-intencionais das idéias de um autor são, via de regra, muito mais importantes do que os efeitos diretamente perseguidos por ele. Mesmo em vida, Hayek não foi exceção à regra.
Um comentário da Economist,no obituário do pensador austríaco, vai direto ao ponto: “Como Keynes, Hayek conquistou a fama menos pelo que escreveu do que pelo que outros disseram que ele escreveu”. Assim, embora tenha escrito um artigo explicando “Por que não sou um conservador” (1960), muitos ainda insistem em caracterizar Hayek como um expoente do “neoconservadorismo”.
Outros preferem acreditar que suas idéias teriam sido a base teórica do thatcherismo, o que é evidentemente falso, a começar pelo simples fato de que o tipo de política monetária adotada por Thatcher nos dois primeiros anos de seu governo não tem nada a ver com sua proposta de “desestatização da moeda”. Sobre política monetária, Hayek declarou em entrevista ao Times de Londres que sua posição é tão distinta daquela defendida por Milton Friedman que “quando nos encontramos nós praticamente evitamos o assunto”.
Existem, também, os que imaginam Hayek como um “ultraliberal radical”, adepto do laissez-faire puro e irrestrito e inimigo jurado do Estado do Bem-Estar. São todos rótulos reconfortantes, sem dúvida, que permitem manter o inimigo a uma distância segura, mas que revelam muito mais a ignorância inocente de quem os emprega do que qualquer familiaridade com Hayek e seu lugar no campo neoliberal.
Simplificações grosseiras e ilusórias como essas sempre ajudaram os homens a proteger suas crenças favoritas e a neutralizar aquilo que lhes parece estranho e ameaçador. Hayek nunca foi um libertário, adepto do anarco-capitalismo à la Nozick e David Friedman. Ao contrário de Marx e Herbert Spencer, esse estranho par, ele jamais previu ou pregou o “desaparecimento do Estado”.
Para ele, a tarefa fundamental do Estado é a proteção e o alargamento do campo de escolha livre do indivíduo.
É em nome desse fim que, como observa John Gray, “Hayek argumenta que o Estado possui funções positivas que incluem o suprimento de alguns bens públicos, a provisão de um nível mínimo de segurança contra a privação aguda e a adoção de medidas para aprimorar a competição de mercado”. Tirar totalmente de cena o Estado seria, entre outras coisas, abrir as portas para o retorno da escravidão – nada mais longe que isso do valor supremo da filosofia hayekiana que é ampliação da liberdade individual.
Quanto ao Estado do Bem-Estar, em particular, valeria a pena lembrar apenas um exemplo concreto e que contradiz frontalmente a imagem de um Hayek ultraliberal, algoz dos fracos e oprimidos. O Estado do Bem-Estar é a transferência de renda extramercado, feita por meio de impostos recolhidos pelo governo, para benefício de grupos sociais específicos como idosos, deficientes, menores carentes, desempregados, etc.
Hayek atacou, é certo, o Estado de Bem-Estar tal como ele se desenvolveu nas democracias ocidentais nas últimas décadas. Sua crítica baseia-se no argumento de que tais transferências, do modo como são hoje feitas, são disfuncionais do ponto de vista da racionalidade do mercado e ineficientes dentro do seu próprio objetivo de melhorar o bem-estar e as oportunidades dos grupos mais vulneráveis da comunidade.
Mas ao criticar o Estado do Bem-Estar como ele é, Hayek em nenhum momento propõe o seu desmantelamento puro e simples, o que seria uma coisa absurda e cruel. O que ele faz é nos convidar a refletir sobre o Estado do Bem-Estar como ele deveria ser.
Se Milton Friedman propõe, como corretivo das distorções acumuladas pelo Estado do Bem-Estar, a criação de um “imposto de renda negativo”, Hayek vai na mesma trilha ao sugerir o estabelecimento de uma “renda mínima garantida” para todo e qualquer cidadão cuja capacidade de ganho no mercado livre fique abaixo de um certo nível.
A proposta faz parte de sua crítica à instituição do salário mínimo. Pois ao negar a tese de que alguém possa merecer um determinado salário, no mercado, em vez de outro, Hayek não propõe que o indivíduo padeça à míngua caso sua capacidade de obter renda o abandone.
É por isso que defende, para surpresa e choque inclusive de alguns admiradores, a criação de uma “renda mínima garantida”, financiada por impostos, para aqueles cujos rendimentos fiquem de outro modo abaixo dela. Isso permitiria um melhor direcionamento das maciças transferências de renda que hoje terminam nos bolsos de quem não precisa delas.
O problema, para Hayek, surge apenas quando a remuneração do trabalho é determinada de fora, pela autoridade estatal ou pelo poder excessivo dos grandes sindicatos, de modo a neutralizar os sinais de preço emitidos pelo mercado livre, e que deveriam servir de guia para o direcionamento dos nossos esforços e atividades individuais.
“Assegurar uma renda mínima previamente definida”, afirma Hayek, “ou uma espécie de piso abaixo do qual ninguém precise cair, mesmo quando não é capaz de prover para si mesmo, parece ser não apenas uma proteção inteiramente legítima contra um risco que é comum a todos, mas parte necessária da Grande Sociedade, na qual o indivíduo não mais possui a proteção automática dos membros do pequeno grupo particular no qual nasceu”. Obviamente, tal proposta apenas faz sentido para os países desenvolvidos, onde o nível de prosperidade per capita permite financiá-la.
Como o exemplo esclarece, a crítica de Hayek ao Estado do Bem-Estar como ele é não significa que ele defenda o seu fim – o “Estado guarda-noturno” ou a utopia duvidosa dos libertários da “anarquia mais o delegado”. Muito menos significa que ele não se preocupe com a situação dos grupos desfavorecidos (idosos, deficientes, menores abandonados, desempregados, enfermos etc), como se ouve e lê com tanta freqüência dos que se contentam em propagar chavões e estereótipos infundados sobre autores que desconhecem.
Hayek não é o primeiro herege econômico – e seguramente não será o último – a padecer da glória dos mal-entendidos que foram se juntando a seu nome.
Se não as procurou deliberadamente, Hayek também jamais evitou assumir posições heréticas. Entre elas, a mais conhecida é provavelmente sua oposição ao “grande consenso keynesiano” em política macroeconômica, e isso numa época em que os economistas, com raras exceções, acreditavam ter encontrado na “síntese neoclássica” a fórmula infalível para a prosperidade e o pleno emprego sem dor.
Hayek desafiou a ortodoxia keynesiana e pagou um alto preço por isso. Tornou-se uma figura isolada e esdrúxula no panorama intelectual, mas viveu o bastante para assistir à virada da maré. De fato, como ele observou com elegância e fina ironia em entrevista a uma revista francesa: “Quando eu era jovem, o liberalismo era velho; agora que sou velho, é o liberalismo que voltou a ser jovem”. Sua experiência ilustra com perfeição a máxima do poeta inglês William Blake, segundo a qual “se o tolo persistisse na sua tolice, ele se tornaria sábio”. Poucos tolos, na história das idéias, perseveraram o suficiente para atingir a sabedoria.
Mas a heresia mais fecunda de Hayek – aquela pela qual ele merecerá ser lembrado como um dos mais importantes e criativos economistas teóricos do século XX – não foi sua oposição a Keynes ou qualquer sugestão de ordem prática que tenha feito. Sua grande contribuição à teoria econômica foi a análise do mercado competitivo como um mecanismo de descoberta, processamento e uso do conhecimento.
Os artigos seminais nos quais Hayek desenvolveu a perspectiva epistêmica do funcionamento e das propriedades do sistema de mercado foram: “Economia e conhecimento” (1937), “O uso do conhecimento na sociedade” (1945) e “O significado da competição” (1946).
Não é por acaso que a composição desses artigos coincide com a principal mudança de rota na evolução intelectual de Hayek.
Foi nessa fase de sua carreira que ele decidiu abandonar o trabalho em teoria econômica pura e, mais especificamente, o programa de pesquisa na linha do equilíbrio geral walrasiano, para se dedicar à investigação dos fundamentos filosóficos e das conseqüências normativas de sua descoberta.
A perspectiva aberta por Hayek parte de uma redefinição do problema econômico. Para a teoria neoclássica convencional, a grande questão era como obter uma alocação ótima de recursos limitados e conhecidos entre fins dados. Tanto o sistema de livre-mercado como o sistema de planejamento central seriam respostas alternativas a um problema comum – como garantir a alocação ótima dos recursos existentes em condições dadas.
Mas o nó do problema, argumentou Hayek, é precisamente o fato de que os recursos existentes nunca são plenamente conhecidos, nem as condições dadas. Os desejos dos consumidores, as tecnologias disponíveis, os custos de produção, o acesso a recursos naturais, as oportunidades de ganho e investimento rentável – em suma, as condições da economia não estão dadas de uma vez por todas, mas estão constantemente mudando, e isso em larga medida pela própria atuação dos empresários ao abrirem possibilidades que eram até então desconhecidas.
O verdadeiro problema econômico não é a otimização do conhecido, mas sim a geração, processamento e utilização de uma extraordinária massa de informações relevantes que se encontram dispersas – e muitas vezes apenas latentes – nos cérebros de um grande número de pessoas (trabalhadores, gerentes, técnicos, cientistas,empresários, comerciantes, consumidores etc).
A grande inovação de Hayek foi mostrar a função epistêmica do mercado. Mostrar que o mecanismo de mercado – baseado na propriedade privada, nas trocas voluntárias e na formação de preços através de um processo competitivo reconhecidamente imperfeito – é antes de mais nada uma técnica de descoberta que resolve o problema da geração, processamento e uso do conhecimento disperso na sociedade.
Na visão hayekiana, as regras do mercado são a gramática da interação entre homens livres e criativos. Tal como a linguagem natural, trata-se de uma instituição regida por regras que se formaram gradualmente, sem que ninguém soubesse ou deliberasse de antemão como seria o seu funcionamento – regras complexas e abstratas que “resultam da interação humana, mas não da intenção humana”.
O erro fatal das economias de planejamento central foi a presunção, ao mesmo tempo arrogante e ingenuamente racionalista, de que a “organização científica da sociedade” – o plano econômico elaborado pela autoridade central – poderia substituir com vantagem o mercado regido pelo sistema de preços como fonte de incentivos e mecanismo de coordenação das atividades micro, definidas pela divisão social do trabalho.
Fazer isso foi imaginar que era possível tratar a economia como um todo, como se ela fosse uma grande fábrica ou um gigantesco exército. Na analogia com a linguagem, o que se tentou fazer equivale à decretação da proibição do uso da língua natural (como o russo) nas trocas verbais e a obrigatoriedade do uso de uma língua de laboratório (como o esperanto). O resultado, como sabemos, foi a criação de um hospício econômico, bem retratado no lamento do funcionário soviético: “Nós fingimos que trabalhamos e eles fingem que nos pagam”.
Ao contrário de Keynes, um economista essencialmente pragmático, Hayek sempre foi um pensador apegado a princípios. Aí reside sua grandeza, mas também o seu ponto fraco. Sua confiança em princípios faz com que, em alguns momentos, ele até mesmo resvale numa postura francamente dogmática, incompatível com o diálogo aberto e racional.
Seria um despropósito imaginar que sua obra resolve todos os problemas. Fascinado pelo milagre espantoso da “mão invisível”, ele tem pouco a dizer sobre o vasto território das imperfeições do mercado.
Ele rejeita com firmeza o crescimento excessivo do Estado, mas não chega a fazer uma análise positiva das patologias do setor público (como fazem, por exemplo, Buchanan e a escola da escolha pública).
Seu conhecimento dos problemas peculiares do atraso econômico e dos países do Terceiro Mundo – particularmente no tocante à questão demográfica e do capital humano – é bastante reduzido. Hayek explica, melhor que ninguém, a raiz do colapso do castelo de cartas soviético; mas o que sua abordagem dificilmente explicaria é o atraso de uma Índia ou o sucesso econômico japonês.
Na história do pensamento econômico, Hayek pertence a uma linhagem de autores cuja virtual extinção foi repetidamente anunciada, mas que teima em postergar o seu fim. São os que acreditam, como dizia Hayek, “que aquele que for somente um economista não tem condições de ser um bom economista, pois todos os nossos problemas tocam em questões de filosofia”.
Certamente não é acidente que na Inglaterra, a nação que tem tido por tanto tempo a liderança em economia, quase todos os grandes economistas eram também filósofos e, ao menos no passado, todos os grandes filósofos também eram economistas... Se mencionarmos apenas os nomes mais importantes, Locke, Berkeley e Hume, Adam Smith e Bentham, Samuel Bailey, James e John Stuart Mill, Jevons, Henry Sidgwick e finalmente John Neville e John Maynard Keynes, tal lista parecerá para os filósofos como uma lista de filósofos ou lógicos importantes, e para os economistas como uma lista de economistas de ponta.
Embora fosse membro da escola austríaca, Hayek seguramente conquistou o seu próprio lugar nessa lista.