Texto que questiona a necessidade de propriedade intelectual para a inovação na produção de softwares.
Fonte:
http://www.ordemlivre.org/?q=node/103------------------------------
Software de código-aberto: quem precisa de propriedade intelectual?por Michele Boldrin e David K. LevineArtigo publicado na revista
The Freeman da
Foundation for Economic Education (FEE).
O mercado de software de código-aberto – programas computacionais de reprodução livre, sem direitos autorais – não é bem compreendido pelos economistas. Surpreende que a inovação possa florescer em um mercado sem a tradicional propriedade intelectual. Porém, como argumentávamos em 2005, em um artigo não publicado chamado “Perfectly Competitive Innovation” [Inovação Perfeitamente Competitiva], teoricamente não há razão para acreditar que a força monopolística, atuando através da propriedade intelectual, seja necessária para a inovação. O mercado de software de código-aberto é um representante perfeito dessa perspectiva.
Primeiramente, devemos entender que o mercado de software de código-aberto é um exemplo clássico de mercado competitivo. Ele é caracterizado pela renúncia voluntária dos direitos autorais e de patente. Os compradores são autorizados a fazer suas próprias cópias, modificadas ou não, e vendê-las. Também há a renúncia voluntária ao sigilo comercial: o criador original publica o código fonte – o “modelo” para a produção do software – junto com o próprio software. Alguns softwares de código-aberto possuem outras condições. Por exemplo, pede-se aos compradores, como condição de uso, que disponibilizem suas modificações sob os mesmos termos. O movimento para o código-aberto tem recebido vários nomes, desde vírus até socialismo. Não é muito supreendente que sejam chamados aqui de modelo de mercado totalmente competitivo. Mas é isso o que ele é, tanto quanto o mercado de trigo. Todos os compradores do software podem competir com o vendedor e também uns com os outros. E é isso o que normalmente acontece.
Sabendo que há custos fixos na produção de software e (como se pode imaginar) que a competição conduz os lucros a zero, como esse mercado funciona? Como se cobre os custos fixos? Na ausência de lucros provenientes do poder monopolístico, a fonte de renda usada para se pagar custos fixos são os lucros competitivos. Nós vamos investigar aqui três questões. A primeira, qual seria a fonte dos lucros competitivos que pagam as contas dos desenvolvedores de software? A segunda, seria esse mercado um mercado real? Ou seja, os produtores de software realmente recebem uma compensação adequada por seus custos fixos e seus esforços? Ou seriam os softwares de código-aberto, como às vezes se alega, simplesmente uma elaborada e altruística obra de caridade? Finalmente, perguntamos quão significativo seria o mercado de software de código-aberto. Seria uma próspera fonte de inovação ou estaria apenas pegando carona nas inovações do software mais tradicional de código fechado, com propriedade intelectual protegida, fazendo imitações baratas que nunca teriam sido produzidas em caso de ausência do poder monopolístico?
A evidência (e o senso comum entre todos os envolvidos com software de código-aberto) mostra que a fonte dos lucros competitivos que pagam as contas dos desenvolvedores de software é a venda complementar da expertise. Para obter lucros através da venda de algo, esse produto deve ser escasso. Pode até haver certa escassez de cópias de software, mas devemos compreender que a duplicação atual de cópias é suficientemente rápida e barata, e pouco lucro pode ser obtido a partir da venda delas. Entretanto, os compradores dessas cópias de software também demandam por serviços – de suporte e consultoria até a personalização. Naturalmente, eles prefeririam contratar os criadores dos programas, aqueles que no processo de escrita do software desenvolveram uma expertise que não poderá ser facilmente igualada por imitadores.
Para entender as fontes de lucros competitivos nesse mercado, seria útil observarmos um exemplo. Red Hat é uma proeminente e lucrativa firma de software de código-aberto, uma companhia que vende o sistema operacional para computadores GNU/Linux, uma versão modificada e personalizada do sistema Linux básico, com várias funções que podem ser instaladas opcionalmente. Embora o sistema base seja, em princípio, obtido pela Red Hat gratuitamente, na verdade, ele paga os desenvolvedores. Alan Cox, um dos principais desenvolvedores do Kernel, trabalha para a Red Hat. A firma também contribui para os Open Source Development Labs [Laboratórios de Desenvolvimento de Código-aberto], que emprega Linus Torvalds, o desenvolvedor do Linux. E mais, Torvalds se beneficiou de um “prêmio” substancial de opções de ações da Red Hat. Além disso, a personalização e testes conduzidos pela Red Hat são caros, o que faz com que a Red Hat enfrente um custo fixo substancial para fornecer seu software.
Primeiro, vamos considerar os lucros obtidos através da venda de cópias físicas. Nesse mercado, as cópias físicas são vendidas mais caras do que seu custo marginal. Utilizando os preços citados na internet, no dia 10 de julho de 2002, a Red Hat cobrava US$ 59,95 por pacote contendo seu sistema. Por ele ser baseado no Linux, seus competidores podem legalmente duplicar e vender o mesmo sistema que a Red Hat vende. Na verdade, pelo menos duas companhias, Hciesign e Linuxemporium, faziam exatamente isso. Em 10 de julho de 2002, a Hcidesign oferecia o Red Hat Linux 7.2 por US$ 16, menos de um terço do valor cobrado pela Red Hat. A Linuxemporium.co.uk oferecia um negócio similar. O impressionante é que a Red Hat vendeu mais pacotes por US$ 59,95 do que a Hcidesign e a Linuxemporium venderam por US$ 16. Nenhuma das duas companhias representou uma ameaça à Red Hat.
Notem que o preço alto cobrado pela Red Hat provavelmente não se devia à escassez física de cópias. Era pela venda da expertise que acompanhava o desenvolvimento do sistema. Qualquer pessoa que utilize softwares computacionais sabe que eles raramente funcionam conforme esperado. Se você compra um software e tem um problema ou uma pergunta, para quem você preferiria ligar? Para as pessoas que escreveram e desenvolveram o programa? Ou para as pessoas que duplicaram o CD?
Um Modelo de Negócios MelhorNa realidade, a venda de expertise a partir da cobrança sobre cópias físicas acabou não sendo o modelo de negócios mais bem sucedido. Por fim, a Red Hat concluiu que não estava vendendo cópias suficientes a US$ 59,95 e decidiu mudar a estratégia. O que anteriormente era vendido, agora é fornecido gratuitamente, como o Fedora Core, e usado como plataforma para receber feedbacks sobre atributos que são incorporados ao sistema comercial, chamado Red Hat Enterprise Linux. Este, disponibilizado somente mediante assinatura anual, por um preço que – dependendo das funções do produto – varia de US$349 até US$2,499.
Este anúncio do site promocional da Red Hat deixa claro por qual serviço os consumidores estão pagando: “Acesso ilimitado aos serviços e ao suporte: as assinaturas incluem serviços correntes e suporte para garantir que seus sistemas permaneçam seguros, confiáveis e atualizados. Quando você tiver uma pergunta técnica, você falará com os engenheiros de software certificados da Red Hat. Ou você poderá acessar uma base de dados com informações técnicas e atualizações.”
Notem como esse mercado funciona: Primeiro, a expertise é passada dos desenvolvedores para os engenheiros de software certificados da Red Hat. Então, outros adquirem a expertise, os estoques de expertise se expandem e o preço pelo qual ela é vendida cai. É claro que nesse meio tempo inovações serão criadas e nova expertise será gerada.
A presença de firmas lucrativas como a Red Hat – sem falar da IBM – na indústria do código-aberto, sugere que essa seja uma atividade viável economicamente e não caridosa ou altruísta. No artigo publicado em 2004 chamado “The Economics of Technology Sharing: Open Source and Beyond,” Josh Lerner e Jean Tirole documentaram alguns dos benefícios financeiros para os desenvolvedores em particular, ao contribuírem com projetos de código-aberto. Por exemplo, a equipe de programadores que desenvolveu o servidor de rede Apache é ranqueada de acordo com a significância de suas contribuições e permanecem em seus empregos. O trabalho realizado por Il-Horn et al. mostra que os salários que os programadores recebem nesses outros trabalhos são altamente influenciados por seu ranking na Apache Foundation. Em outras palavras, o modelo de expertise na Apache é bem parecido com o da academia – o programador escreve software visando receber reconhecimento e pagamento financeiro pela expertise que ele demonstra através de seu produto publicado.
O exame individual dos desenvolvedores reforça esse ponto. Torvalds é multimilionário e Bram Cohen, o desenvolvedor do BitTorrent, recebeu recentemente US$8.75 milhões em capital de risco, para seu projeto de código-aberto. Esses números e o sucesso do software de código aberto também nos ensinam algo importante sobre os (esperados) pagamentos, necessários para termos pessoas inteligentes como Torvalds ou Cohen desenvolvendo software inovador. É improvável que Torvalds tenha escrito originalmente o Linux com o objetivo de se tornar milionário. Ainda assim, ele deve ter esperado por alguma forma de recompensa ao iniciar seu trabalho. Sua riqueza atual é provavelmente maior do que ele esperava, mas ainda é quatro vezes menor que a de Bill Gates. Então, pelo menos no caso de Torvalds, o custo de oportunidade de escrever software inovador não é de dezenas de bilhões de dólares, é de apenas alguns milhões. É importante conhecermos esses dados, quando alguém alegar que sem os pagamentos feitos por um grande monopólio através da propriedade intelectual, os inovadores não estariam inovando. Finalmente, é possível imaginar que a indústria do código-aberto não seja de forma alguma uma indústria real. Talvez ela exista somente por que é capaz de pegar carona nas inovações criadas pela parte proprietária da indústria, na qual a força monopolística dos direitos autorais desempenha um grande papel. Certamente, é verdade que o Linux seja a imitação do Unix e que o OpenOffice Writer seja a imitação do Microsoft Word. Mas isso não significa muita coisa, porque praticamente todo software, seja ele propriedade intelectual ou não, é uma imitação de algum outro software. O Microsoft Windows é uma imitação do Macintosh, que é uma imitação do Smalltalk. O Microsoft Word é uma imitação do WordPerfect, que é uma imitação do WordStar. O Microsoft Excel é uma imitação do Lotus 1-2-3, que é uma imitação do VisiCalc. E assim por diante.
Mas o argumento da “carona” é correto?Vejamos a produção de textos. Existem muitas alternativas de código-aberto ao Microsoft Word, como Kword, AbiWord e o OpenOffice Writer, sendo esse último o mais usado. Como se compara os custos de desenvolvimento desse software, financiado como foi por um modelo de código-aberto, aos custos de desenvolvimento do Microsoft Word? O fato é que a maior parte dos custos de se escrever um software não está na constatação de que seria legal ter um botão para justificar o texto ou nos algorítmos para espaçar as linhas – os quais, no fim das contas, foram desenvolvidos por Gutenberg, em 1450 – mas na implementação detalhada e na depuração dos códigos computacionais. Até onde sabemos, nenhum desses projetos de código-aberto teve qualquer benefício a partir do trabalho feito pela Microsoft.
Um Desenvolvimento Mais CaroProvavelmente, o desenvolvimento dos projetos de código-aberto foi mais caro que o desenvolvimento do Microsoft Word. As tarefas mais trabalhosas e caras enfrentadas pelos desenvolvedores desses projetos parece ser a reversão da engenharia dos documentos do Microsoft Word, para fornecerem uma formatação capaz de criar uma compatibilidade com o programa. Se esses projetos open-source tivessem sido realizados antes do competidor, esse custo substancial poderia ter sido evitado.
Também vale lembrar que os lucros competitivos gerados por esses projetos são significativamente menores do que teriam sido se tivessem entrado no mercado antes do Microsoft Word. Então parece racional concluir que o mercado competitivo sem o Microsoft Word teria gerado ambos os programas.
Provavelmente, o programa mais inovador dos últimos anos é o BitTorrent, um programa que descentraliza e aumenta exponencialmente a velocidade dos downloads de arquivos da internet. É comercialmente bem sucedido, já que 50,000 cópias são baixadas diariamente. É também suficientemente inovador, e agora está até sendo imitado – pela Microsoft. Embora o BitTorrent seja um programa de código-aberto, de acordo com seu site, o autor Bram Cohen faz da manutenção do programa sua profissão.
O último ponto a ser enfatizado aqui é que o mercado de software não é uma experiência única. A inovação e a competição sem a proteção das patentes e dos direitos de propriedade ocorreram simultaneamente em várias outras indústrias, da segurança financeira à moda. A mensagem dos softwares de código-aberto é uma mensagem para todas as indústrias: a propriedade intelectual não é necessária para a inovação.