Financiamento ou investimento estatal em cultura, lazer, pesquisa científica e educação, subsídios à moradia, estatização da infra-estrutura de transportes, renda mínima garantida, assistência social, aprimoramento da moldura legal para melhorar a eficiência do mercado, taxação progressiva (ricos pagarem proporcionalmente mais impostos que os pobres), desconsideração do critério de “tamanho do Estado” ou tamanho da carga tributária para medir eficiência do Estado, aumento dos impostos sobre bebidas, controle da taxa de juros e exportação de trigo, ética coletivista, reinvidicação por justiça social e distributiva e a consideração que em determinado contexto histórico o comunismo poderia pensado como uma alternativa ao capitalismo. Coisa de esquerdista estatólatra? E se eu disser que essas são algumas das proposições de alguns principais gurus do Liberalismo Clássico, como Adam Smith, Friedrich Hayek e John-Stuart Mill? Pois bem, estes senhores foram teóricos do Estado Mínimo e até hoje são ídolos entre muitos articulistas do Mídia Sem Máscara. Rodrigo Constantino, por exemplo, é fã dos três e os considera como liberais legítimos (os três são resenhados no seu último livro). Vocês acreditam que todos os articulistas de direita do “Mídia Sem Máscara” acham que essas idéias são compatíveis com as suas? Vejam:
Rodrigo Constantino:
“Spencer lembra que os verdadeiros liberais, em termos de políticas práticas, deveriam usar o método de rejeição [...] O aumento da liberdade formalmente legalizada seria seguido por uma queda na liberdade de fato. O excesso de leis e regulamentações por parte do governo coloca em risco a liberdade do indivíduo [...] Deveriam, em vez de sonhar com isso, buscar a compreensão de que somente a cooperação voluntária é justa. Deveriam ler mais os defensores do liberalismo antigo. No final das contas, entenderiam que o mundo está dividido entre os defensores do individualismo e do coletivismo, ou seja, da cooperação voluntária ou compulsória. De um lado, a liberdade individual. Do outro, a escravidão”.
http://rodrigoconstantino.blogspot.com/2007/09/cooperao-compulsria.htmlCláudio Tellez:
“Pessoas que se entendem como liberais em economia acreditam que o mercado auto-regulável, livre da intervenção governamental, promove a melhor alocação possível para o bem comum da sociedade.”
http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5932&language=ptJoão Luiz Mauad
“Os liberais devem ser sempre radicais quando o assunto é intervenção do Estado no domínio econômico. Se concordássemos, como querem alguns, em nome de uma bandeira ‘menos radical’ e mais palatável que em certos casos (leia-se: naqueles casos que aprovamos) a interferência dos governos nos assuntos de mercado pode ser oportuna, estaríamos sendo, além de incoerentes, tão arrogantes quanto aqueles que combatemos.”
http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=5916Ah, já sei... Faltou eu provar que os liberais que citei defenderam as coisas que postulei. Bem, eu não concordo com certas idéias que colocarei a seguir, mas no geral, o saldo de tudo defendido é positivo, o que mostra como Liberalismo involuiu com a proliferação desses “liberais de Internet”. Então lá vai:
ADAM SMITH:
O texto de Murray Rothbard (um dos autores resenhados no último livro de Constantino) "The Celebrated Adam Smith" é um texto de umas 20 páginas atacando Smith em todas as suas idéias:
http://www.mises.org/web/2691#_edn6O “laissez-faire” smithiano defendia estas intervenções do Estado:
* Intervenções em nome da “defesa nacional”. Como, por exemplo, Smith defendia gastos públicos com educação para que os trabalhadores ficassem mais “alertas”, para contrabalançar os efeitos “estupidificantes” da divisão do trabalho. Lembrar da citação de Smith: “Com um gasto irrisório o governo pode facilitar, pode incentivar e pode impor a quase todo o povo a necessidade de adquirir as partes mais essenciais da educação” (“Wealth of Nations”.(eds.Campbell & Skinner). Oxford: Clarendon Press, 1976. vol.1, livro 2, p.27).
* Construção de estradas, pontes e portos, sob o argumento de que a iniciativa privada não tinha os incentivos para construi-los e mantê-los.
* Correios, pois eram... lucrativos!
* Restrições à exportação de trigo.
* Inúmeros tributos, Smith advogava impostos, sobretudo sobre os ricos. Os ricos deveriam ser taxados, para evitar “a indolência e a luxúria” dos mesmos.
* Advogava impostos pesados sobre bebidas alcoólicas.
* Smith era a favor da taxação progressiva: os ricos deveriam pagar uma alíquota maior de impostos.
* Leis do Estado contra a “usura”: Smith achava que as taxas de juros deveriam ter um teto (!!!) fixado em 5% ao ano. A razão ? O empréstimo para consumo dos ricos geralmente tinha taxas acima disso. E se tinha algo que o calvinista Smith abominava era o consumo.
E eu acrescento mais. Como já disse o economista hindu Amartya Sen: “Uma das críticas que o pai da economia moderna, Adam Smith, fez às leis de assistência social não foi a de que elas davam assistência às pessoas, dando uma renda mínima, mas ele criticava o fato de que o apoio vinha de governos locais. Assim, ao mudar de um lugar para outro, a pessoa perde o direito à renda. Ele achava que isso tornava a mobilidade natural das pessoas mais difícil, devido a essas leis. Ele achava que elas não tratavam os pobres muito bem.”:
http://rodaviva.fapesp.br/?id=32&pag=1 (ver mais em “Wealth of nations”, p.152-154)
FRIEDRICH HAYEK:
Um dos resenhados no último livro do Constantino é entrevistado pelo jornalista polonês Mateusz Machaj:
http://www.hanshoppe.com/publications/hoppe_polish-interview.pdfHans-Hermann Hoppe é considerado a “estrela” maior da “escola austríaca” atualmente. Ele considera Hayek “praticamente um social democrata”.
MACHAJ: Hayek não era um liberal clássico ?
“Hayek diz-se um liberal clássico. Contudo, veja o que ele diz na parte III de sua ‘Constituição da Liberdade’ e no vol III de seu ‘Lei, Legislação e Liberdade’ e você terá uma impressão inteiramente diferente. De acordo com Hayek, o governo é necessário para realizar certas tarefas: Não apenas para ‘garantir a lei’ e a ‘defesa contra inimigos externos’, mas diz que ‘em uma sociedade avançada, o governo deve usar seu poder para levantar fundos através de impostos para prover um número de serviços que por várias razões não podem ser providos pelo mercado’. Entre estes estariam ‘proteção contra violência, epidemias, enchentes e avalanches, mas também amenidades que tornam tolerável a vida nas cidades modernas, a maioria das estradas... a provisão de padrões de medida e muitos tipos de informações como registro de terras, mapas e estatísticas para certificar a qualidade de certos bens e serviços oferecidos no mercado’.
O governo deveria também ‘garantir uma renda mínima para todos’ e ‘distribuir seus gastos ao longo do tempo de tal maneira que ele intervenha quando o investimento falhar’. O governo deveria financiar escolas e pesquisas científicas e ‘regulamentar a construção civil, a qualidade dos alimentos, a certificação profissional, as restrições sobre produtos perigosos (como armas, explosivos, veneno e drogas), assim como certas regulamentações de segurança e saúde no processo de produção e a provisão de instituições públicas como cinemas, estádios, etc.’; e deveria fazer uso de seu ‘eminente domínio’ para melhorar os bens públicos’.
Além disso, Hayek queria que o governo provesse ‘estabilidade monetária’, implementasse um sistema de ‘seguro compulsório’, considerasse a possibilidade de moradias subsidiadas, realizasse o ‘planejamento urbano’ e o ‘zoneamento’. E por fim, ‘a provisão de amenidades e oportunidades de lazer, a preservação das belezas naturais e de sítios históricos, lugares de interesse científico, parques, reservas naturais, etc’.
Pior ainda, Hayek insiste que reconheçamos que é irrelevante qual seja o tamanho do governo ou quão rápido ele cresce. O que importa é apenas se as ações do governo preenchem certos requerimentos formais. Segundo ele ‘É o caráter do governo, não seu tamanho, que é importante’.
A carga total de impostos não é um problema para Hayek. Impostos - e, analogamente, o serviço militar - supostamente perdem seu caráter coercitivo ‘se são previsíveis e são forçados independente de como o indivíduo iria empregar suas energias. Isto lhes retira essencialmente a natureza malévola da coerção. Se a necessidade de pagar uma certa quantia de impostos torna-se parte de meus planos, se um período de serviço militar é uma parte previsível de minha carreira, então eu posso seguir um plano geral para a minha vida e sou tão independente da vontade de outra pessoa quanto todos aprendemos a ser em sociedade’.
Então se eu sei que todo mundo tem de pagar 90% de imposto de renda e servir 50 anos no exército e posso ajustar minha vida de acordo com isso, eu sou essencialmente um homem livre! Que hocus pocus terminológico!
À luz disso tudo, qual é a diferença entre Hayek e, digamos, os social-democratas suecos?”
Enfim, tamanho de gasto público e carga tributária ótima é uma variável que apresenta um laço complexo com o crescimento econômico e varia muito de país para país. Se é assim, Hayek fez muito bem em nunca ter dado relevância a carga total de impostos. Um dado que desmistifica “quanto menos oneroso o Estado, melhor” é que o crescimento do produto por homens-hora em uma amostra de 15 países da OCDE (países ricos) foi de 1,6% de 1870-1913, 1,8 % em 1913-1950, 4,6% de 1950-1973 e 2,8% de 1973-1979 (SACHS, Jeffrey; LARRAIN, Felipe. Macroeconomia: edição atualizada e revisada. São Paulo: MAKRON Books, 2000., p. 600). Lembrem-se: em que época o Estado era menos oneroso, mesmo?
E veja o trecho da entrevista a Veja em 1979, que diz mais sobre o que ele pensa sobre as regulamentações:
VEJA – O sistema de livre mercado não padece também de ineficiências?
HAYEK – "Ele necessita de uma moldura legal apropriada para funcionar eficientemente. No presente, é verdade, não se pode dizer que essa moldura seja a mais adequada. Precisamos, por isso, trabalhar para aperfeiçoar as leis. Por exemplo, deve-se aplicar às corporações empresariais as normas que, lentamente, foram desenvolvidas para regular a conduta dos indivíduos. De todo modo, essa adaptação tem de ser lenta e gradual, orientada pela experiência, jamais através de reformas radicais."
http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_070.htmlJOHN STUART-MILL
“Se, portanto, se devesse escolher entre o comunismo, com todas as suas chances, e o atual [1852] estado da sociedade, com todos os seus sofrimentos e injustiças; se a instituição da propriedade privada necessariamente tivesse como conseqüência a produção do trabalho tem que ser distribuída segundo o esquema atual, quase em proporção inversa ao trabalho- cabendo as proporções maiores dela àqueles que nunca sequer trabalharam, vindo logo depois aqueles cujo trabalho é apenas nominal, e assim por diante, em uma escala descendente, diminuindo a remuneração cada vez mais, à medida que o trabalho se torna mais duro e desagradável, até chegarmos ao trabalho corporal mais fatigante e mais esgotante, que não pode sequer contar com a certeza de ganhar o necessário para garantir a subsistência; se a alternativa fosse entre essa situação e o comunismo, todas as dificuldades inerentes ao comunismo, grandes ou pequenas, não passariam de pó na balança.” ( John Stuart-Mill. Em: “Princípios de Economia Política” ,Vol I , p.187, São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983).
Essa declaração mostra bem como Liberalismo e ética individualista são coisas completamente independentes. Stuart-Mill produziu nada menos que um dos maiores clássicos da Filosofia Moral, já que sua obra “Utilitarismo” é leitura obrigatória para qualquer estudante de filosofia. Entre as abordagens que se encaixa na ética utilitarista está o consequencialismo, o princípio que considera qualquer ação é moralmente julgada segundo os estados conseqüentes dela e o ranking pela soma que trata da necessidade da soma da utilidade ou bem-estar dos indivíduos. É devido a essa antiguidade da ética coletivista que Hayek diz no volume II, de “Direito, Legislação e Liberdade” (1985, Editora Visão) que “segundo um axioma da tradição liberal, a coerção dos indivíduos só é permissível quando necessária a consecução do bem-estar geral ou do bem comum (p.1)”. Stuart-Mill era teórico do Estado Mínimo, falava em “injustiça” no sistema econômico da sua época e empregava expressões como “justiça social e distributiva”. Inclusive recebeu uns puxões de orelhas de Hayek (também no volume II, de “Direito, Legislação e Liberdade”) por causa da última atitude (o liberal austríaco considerava que pobres eram vítimas de males, não de injustiças).