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Alain Bihr *Le Monde diplomatique Em 1993, para defender um tratado de livre comércio, o presidente Bill Clinton citou Adam Smith, que a seu ver tinha estabelecido que «os hábitos do comércio contradizem os da guerra». Desde há mais de dois séculos, a ideia de que uma disposição natural para a troca explicaria o capitalismo e favoreceria a paz deve muito a Adam Smith. Esta génese do capitalismo só esquece um detalhe: as relações de produção... Quando, onde, como e por que razão apareceu o capitalismo? Estas perguntas já fizeram correr rios de tinta nos últimos dois séculos, muito por culpa da dificuldade desta problemática, da diversidade de pontos vista e dos ângulos de análise. Tratando-se de questões relativas às origens de um fenómeno, por definição sempre obscuras, as respostas estão continuamente a ser postas em causa, à medida que se descobrem novos materiais historiográficos e se inventam novas hipóteses. Mas estas divergências devem-se igualmente à aplicação de princípios de explicação diferentes, implicando cada um deles uma forma particular de pôr a questão. A primeira explicação de conjunto das origens do capitalismo é aquela cuja formulação acompanhou a constituição do pensamento económico clássico, a partir da segunda metade do século XVIII. É também a que conheceu, desde então, a mais ampla difusão, continuando a inspirar a maior parte das abordagens da história do capital e do capitalismo. De resto, devido a essas origens, continua a ser marcada pelos pressupostos do pensamento liberal. A sua característica principal é atenção privilegiada, quando não exclusiva, ao mercado. Na sua perspectiva, a formação do capital como relação de produção e o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção reduzem‑se, no essencial, à extensão e consolidação da esfera das relações comerciais. Ela escrutina por isso, com muito cuidado, o surgimento e os resultados dessas relações, as condições que os favoreceram mas também os obstáculos que lhes travaram o caminho, as sinergias ou, pelo contrário, os conflitos entre o desenvolvimento do comércio à distância e as estruturas políticas que estiveram no centro destes processos, as formas comerciais do capital que se desenvolveram graças a eles, etc. Sem que sejam necessariamente mal conhecidos ou negligenciados os escolhos que muitas vezes travaram, ou bloquearam, o sentido da marcha, a ideia que sobressai do conjunto de estudos inspirados por este paradigma liberal é que o capital e o capitalismo resultam da dinâmica definitivamente instalada das relações comerciais, elas mesmas entendidas como a forma normal, ou mesmo como a forma por excelência, da relação social. UMA DEFINIÇÃO QUE IGNORA A HISTÓRIA Uma das primeiras expressões deste princípio pode ser encontrada na obra principal de Adam Smith, Investigação acerca da natureza e das causas da riqueza das nações (1776), que passa por ser a fundadora da economia política clássica [1]. Desde as primeiras páginas, o autor afirma a sua convicção da existência no homem de uma «tendência que o leva a traficar, a fazer trocas de uma coisa por outra», tendência especificamente humana de que não encontramos quaisquer traços nas outras espécies animais. Tendência que Adam Smith considera definitivamente fundamentada na mútua dependência dos homens que vivem em sociedade, sendo a troca melhor do que a generosidade para satisfazer as exigências desta última: «(...) O homem tem quase continuamente necessidade de receber ajuda dos seus semelhantes, e seria em vão que esperaria que essa ajuda dependesse apenas da bondade alheia. Será muito mais seguro consegui‑la se o homem se dirigir aos interesses pessoais dos outros e se os persuadir de que é para sua própria vantagem que devem fazer o que pretende que eles façam. É o que faz aquele que propõe a outrém um negócio qualquer, seguindo a seguinte proposição: “Dê-me aquilo de que preciso e receberá de mim aquilo de que você precisa”». Desta tendência para a troca resulta, segundo Adam Smith, um impulso para o desenvolvimento da divisão do trabalho, tendo cada um desde logo interesse em se especializar no tipo de actividade para a qual a natureza, a tradição ou a experiência pessoal o tornaram mais apto: «Desta forma, a certeza de poder trocar todo o produto do seu trabalho que exceda o consumo próprio, por um excedente semelhante do produto do trabalho dos outros que lhe possa ser necessário, encoraja ainda cada homem a dedicar-se a uma ocupação particular e a cultivar, aperfeiçoando-se, tudo o que nele exista de talento e inteligência para este tipo de trabalho». Da mesma forma, pode dizer-se que, para Adam Smith, a troca comercial e a divisão do trabalho que ela implica, ao mesmo tempo como condição e resultado, são consideradas como sendo um estado natural (nos vários sentidos do termo) da sociedade, tendo como base o pressuposto de que esta não é, por seu lado, mais do que a reunião de uma enorme quantidade de indivíduos puramente egoístas, quer dizer, ao mesmo tempo perfeitamente autónomos (porque proprietários privados do produto do seu trabalho, tal como dos seus meios de produção) e unicamente movidos pela consideração do seu interesse pessoal na mútua dependência que com outros estabelecem. É fácil percebermos que isto constitui um mito, no sentido próprio de relato fabuloso que pretende explicar as origens e fundamentos do mundo em geral e das instituições humanas em particular, se tomarmos em atenção, desde logo, o carácter tautológico da explicação fornecida: Adam Smith pressupõe que o estado natural da sociedade é precisamente aquele de que ele tenta explicar a génese e o processo de desenvolvimento, a saber, uma estrutura socio-económica caracterizada por um conjunto de produtores privados unidos apenas por um sistema de relações comerciais. Repararemos de seguida que, se o estado natural da sociedade tivesse sido alguma vez esse, o capitalismo deveria ter nascido quase imediatamente após o fim da pré-história humana. Ora foi preciso esperar muito mais para que isso acontecesse! Não tratarei aqui o alcance e o significado ideológico (apologético) global de uma abordagem destas, que leva a conceber o capitalismo como o fim da história humana, como o estado ideal do desenvolvimento social, porque nele desabrocharia plenamente a quintessência comercial das relações sociais. Limitar-me-ei a referir dois dos principais limites desse paradigma do simples ponto de vista da inteligência do devir histórico. Em primeiro lugar, ao focar-se principalmente, ou mesmo exclusivamente, no processo de circulação comercial, esta abordagem de inspiração liberal acaba por negligenciar, e mesmo ocultar totalmente, as relações de produção, entendidas aqui no seu sentido mais estrito como o conjunto dos procedimentos, normas e instituições que condicionam a unidade dos produtores e dos seus meios de produção, sem a qual nenhuma produção poderia ter lugar. Ora, antes de colocar em circulação os produtos do trabalho social, sejam de que natureza forem, antes de os transformar em mercadorias, é preciso começar por os produzir; e são as condições que presidem a essa produção que comandam em definitivo o destino dos produtos do trabalho social. E, inclusivamente, a possibilidade ou não, para esses produtos, de se tornarem mercadorias. Por não levarem em linha de conta as relações de produção, os estudos inspirados por este paradigma liberal têm quase sempre dificuldade, ou até falham redondamente, quando se trata de explicar por que razão, longe de surgirem espontaneamente, as relações comerciais puderam desenvolver-se em certas condições e circunstâncias, enquanto outras condições e circunstâncias lhes eram sistematicamente desfavoráveis. Por exemplo, por que razão o imenso império chinês permaneceu pouco receptivo às relações comerciais durante milénios, enquanto as mesmas conheceram uma expansão notável ao longo da Antiguidade mediterrânica. Em segundo lugar, e de resto pelos mesmos motivos, esses estudos não compreendem a natureza da verdadeira revolução que se opera nas relações de produção com a formação do capital e o desenvolvimento consequente do capitalismo. Porque o próprio do capitalismo não é que o produto do trabalho social nele tome geralmente a forma de mercadoria. Se «a riqueza das sociedades em que reina o modo capitalista de produção se anuncia como uma “imensa acumulação de mercadorias”», como constata Marx na abertura de O Capital [2], é sobretudo e essencialmente porque as condições tanto subjectivas (as forças de trabalho) como objectivas (os meios de produção) do trabalho social em si mesmo se transformaram em mercadorias. Isto pressupõe, como Marx demonstra longamente, a expropriação dos produtores e a sua redução ao estatuto de «trabalhadores livres», não tendo outra escolha que não seja a de venderem a única coisa de que ainda são proprietários, isto é, a sua força de trabalho. Dito de outro modo, é nas relações de produção que jaz o segredo da formidável expansão da esfera da circulação comercial que caracteriza o capitalismo e de que este se orgulha: a segunda não é mais do que a aparência sob a qual se manifestam as primeiras. De facto, não existe qualquer dinâmica trans-histórica de crescimento e de desenvolvimento das relações comerciais. Por todo o lado, em todos os tempos, a esfera da circulação comercial e monetária, partindo da constituição de capital comercial a que pode dar origem, continua a ser subordinada às relações de produção stricto sensu: às regras e instituições que regulam as relações dos produtores com os seus meios de produção, bem como as relações dos produtores e dos não-produtores entre eles (a divisão social do trabalho) e por fim as relações dos produtores e dos não-produtores com o produto do trabalho social. São essas relações de produção que determinam tanto a possibilidade como os limites do desenvolvimento da circulação comercial e monetária e, consequentemente, a eventual formação e acumulação de capital comercial. Da mesma forma que são as relações de produção que determinam a forma, a intensidade e em definitivo os resultados dos inevitáveis efeitos de dissolução que, por retroacção, o desenvolvimento da economia comercial e monetária, incluindo o capital comercial, provocam neles. Numa palavra, se a elite da economia comercial e do capital comercial está incontestavelmente entre os operadores da formação da relação capitalista de produção, é na estrutura e dinâmica das relações pré-capitalistas de produção que é preciso procurar as razões do facto de a sua acção ter podido, ou não, chegar a um tal resultado. E, sob esse ângulo, as diferentes relações de produção que surgiram no decurso da transição da pré-história à história ou ao longo desta última não são certamente equivalentes. Aquelas que estruturam as sociedades “asiáticas” não oferecem grande coisa ao desenvolvimento das relações comerciais e ainda menos à acção dissolvente do capital comercial. Aquelas que caracterizam o mundo antigo mediterrâneo fornecem-lhe, pelo contrário, um quadro e uma base extremamente favoráveis; e, ainda assim, mostram-se muito permeáveis à sua acção dissolvente: esta contribui nomeadamente para a concentração da propriedade fundiária e para a expropriação de uma parte importante dos produtores agrícolas. Mas, longe de conduzir à formação da relação capitalista de produção, o conjunto do processo só desemboca nunca extensão da escravatura e na constituição de uma plebe mantida com fins clientelistas, devido nomeadamente à dependência económica e à tutela política na qual a propriedade fundiária continuou a manter o capital comercial. São definitivamente as relações de produção feudais, como as que se constituíram lentamente na Europa ocidental durante a Alta Idade Média, até se cristalizarem nos séculos IX e X, por fusão entre as estruturas herdadas do Baixo Império Romano e as da «comuna germânica» importadas pelos invasores, que vão permitir o amadurecimento de diversas condições primordiais de formação do capital. Sublinhei as originalidades fortes que constituem estas relações feudais: a posse ou propriedade deixada aos servos de uma parte dos seus meios de produção, do seu tempo de trabalho e do produto do seu trabalho; a emancipação das cidades relativamente à estrutura político-ideológica da propriedade fundiária, podendo estas desde logo dedicar-se apenas ao desenvolvimento da economia comercial e do capital comercial; e, por fim, a fragmentação do poder político, que o enfraquece globalmente e lhe interdita a reconstituição de toda a estrutura imperial. ACUMULAÇÃO AO SERVIÇO DA BANCA Da sinergia entre estes diferentes factores, ela própria característica das relações feudais de produção, resultará, em primeiro lugar, o desenvolvimento do comércio: do comércio longínquo entre centros urbanos, para começar, por ser a mais lucrativa das formas de comércio e a única inicialmente aberta à acção do capital comercial; do comércio próximo, depois, entre os centros urbanos e o campo que os cerca, por intermédio do desenvolvimento de um artesanato comercial conexo do desenvolvimento do capital comercial, mas também e sobretudo pela integração crescente da produção agrícola e dos produtores agrícolas (servos, fazendeiros livres, proprietários alodiais), conduzindo rapidamente a crescentes diferenciações sociais entre eles, enquanto faz nascer uma camada de lavradores ricos lado a lado com trabalhadores braçais empobrecidos e jornaleiros já expropriados. As relações de produção feudais terão assim contribuído directamente para a acumulação da riqueza monetária nas mãos dos mercadores, dos usurários e dos banqueiros, assim como para a sua concentração, nomeadamente sob a forma de companhias comerciais com múltiplas sucursais, aliando as práticas do negócio, da banca e dos seguros. Era essa a primeira condição essencial de possibilidade de formação das relações capitalistas de produção. ______* Professor de Sociologia na Universidade de Franche-Comté. Este texto foi extraído de La Préhistoire du capital (Page deux, Lausana). [1] Adam Smith, La richesse des nations, Flammarion, Paris, 1991, tomo I. As citações seguintes são extraídas desta edição (em português: A Riqueza das Nações, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1976).[2] Karl Marx, Le Capital, Éditions Sociales, Paris, 1948, tomo I, p. 51 (em português: O Capital, Edições Avante!, Lisboa, 1990).http://www.infoalternativa.org/teoria/teo013.htm