Sem mobilização da sociedade pela reforma tributária o que é ruim pode ficar muito piorDemandas são tantas que não soa pessimista avaliação de que só há acordo com nova rodada de impostosEmpenho e boa fé não faltaram aos autores da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) enviada à Câmara, reabrindo o embolorado tema da reforma tributária. O conteúdo é pleno de boas intenções. Mas o objetivo de reduzir a complexidade dos tributos e racionalizar as incidências, sobretudo no campo do ICMS, o mais importante imposto da constelação tributária, exclusivo dos estados e municípios, não é garantia de que a emenda final corresponderá à idealizada.
O viés tecnicista da proposta, pois não resultante de um consenso previamente combinado com os parlamentares, aumenta a percepção de que sofrerá profundas modificações no Congresso. Além disso, trata a candente questão federativa, muito mal resolvida na Constituição de 1988 e desbalanceada pelo agravamento da histórica concentração de poderes na esfera federal em detrimento da autonomia de estados e municípios, como um jogo racional de divisão de receitas.
Há razões para se desconfiar do desenho que tomarão os impostos, vencidos os debates e votações na Câmara e Senado - supondo-se que haja vontade real do governo em mudar o sistema. Os antecedentes não são promissores. Todos os ensaios depois de 1988 de reforma do aparelho fiscal fracassaram ou porque estavam verdes para mudar ou porque os governos pressentiram que o resultado final desfalcaria o que lhe cabe na partição tributária, sem nenhuma compensação.
O projeto de agora tem abertura suficiente para preferencialmente atender os interesses fiscais do Estado - o que ficou manifestado na diretriz de que as mudanças devem manter o nível atual de carga tributária. O risco é o teto virar piso à medida que o gasto entre no debate, o que será inevitável, além de considerações políticas, tais como a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas e o aumento da progressividade do Imposto de Renda, propostas pelo PT.
Embora possam ser justificáveis, elas retiram o caráter neutro da reforma como a equipe que a elaborou na Fazenda imaginou, podendo criar resistências desnecessárias ao projeto. Seu trâmite político exige habilidade, até porque não são o governo e sua base política afins com propostas para enxugar o gasto público, tal como não se vê essa coalizão defendendo estímulos à formação de capital, caso avaliem que implique risco às políticas sociais e regionais.
Gatilhos anticargaGovernos social-democratas convivem bem com o capital, mas se tiverem de explicitar sua preferência, na prática, como é o caso de uma reforma tributária, dificilmente darão ao capital mais que ao trabalho e ao social, até pelo que já dão ao rentismo.
Não por acaso, a carga tributária explodiu na era FHC e, embora a um ritmo menor, siga crescendo nos dois mandatos de Lula. Precedente que sinaliza o desfecho da reforma, se ela fugir ao roteiro.
O secretário de Política Econômica da Fazenda, Bernard Appy, tem dito que é intenção do governo criar gatilhos a serem acionados a cada vez que aumentasse a carga tributária. É uma proposta ousada. O problema é como inseri-la no corpo de medidas que de algum modo permitem expandir a tributação, como a janela aberta na PEC que o PT pretende usar para desengavetar o gravame da riqueza pessoal.
Trabalho de partoAs demandas reais e políticas são tantas que não soa pessimista a avaliação de que, uma vez destampadas a questão do Estado e a da partilha das receitas entre os entes federativos, só haverá acordo com uma nova rodada de aumento de impostos. Ou, o que também é uma solução, se dê à atual reforma o destino das que a antecederam: um armário trancado a chave.
O que se vai constatar nos debates é que o sistema tributário, embora envelhecido, continua incompreendido para entrar em trabalho de parto e conceber um novo rebento.
Para evitar o piorO ceticismo não serve para desqualificar medidas que o estágio alcançado pela economia está a requerer, como simplificar o ICMS, desbastando as 27 legislações, uma por estado, numa única válida em todo país e apenas quatro a cinco alíquotas.
Mas é válido para prevenir frustrações, na medida em que se vão discutir as receitas sem discussão preparatória sobre as despesas, coisas como o limite da intervenção do Estado, a redundância entre os governos em áreas como saúde e educação e o aumento metódico do custeio das máquinas públicas, que já monopoliza as dotações orçamentárias.
Conclusão: sem mobilização da sociedade o que é ruim pode ficar pior.
Difícil é pensar um cenário em que a sociedade se manifeste com a sua complexidade e divisão de interesses. Entidades empresariais e sindicatos se manifestam por ela, como se deu na questão da CPMF, mas nem sempre o que defendem expressa a média das opiniões.
Isso é papel dos partidos, embora, com as exceções individuais, o que mais há, no Congresso, são coalizões formadas não para defender o interesse difuso da sociedade, mas para conservar e até expandir os benefícios de grupos políticos, de corporações do funcionalismo e de setores empresariais.
A soma das partes, que não raro supera o todo, é o que deforma o processo orçamentário e enrijece a carga tributária. Deformidades fiscais estão em toda parte e não sensibilizam ninguém. No fim, ou o governo pega as rédeas da tramitação da reforma tributária ou é grande o risco de que se perca o rumo e tudo saia errado.
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