COLETÂNEA DE CONTESTAÇÕES DOS ARGUMENTOS TEÍSTAS
PRIMEIRA CAUSA
“Esse argumento, creio eu, não tem muito peso hoje em dia, em primeiro lugar porque causa já não é bem o que costumava ser. Os filósofos e os homens de ciência têm martelado muito a questão de causa, e ela não possui nada que se assemelhe à vitalidade que tinha antes; mas, à parte tal fato, pode-se ver que o argumento de que deve haver uma Causa Primeira é um argumento que não pode ter qualquer validade. Posso dizer que quando era jovem e debatia muito seriamente em meu espírito tais questões, eu, durante muito tempo, aceitei o argumento da Causa Primeira, até que, certo dia, aos dezoito anos de idade, li a Autobiografia de John Stuart Mill, lá encontrando a seguinte sentença: “Meu pai ensinou-me que a pergunta ‘Quem me fez?' não pode ser respondida, já que sugere imediatamente a pergunta subseqüente: ‘Quem fez Deus?'”. Essa simples sentença me mostrou, como ainda hoje penso, a falácia do argumento da Causa Primeira. Se tudo tem de ter uma causa, então Deus deve ter uma causa. Se pode haver alguma coisa sem causa, pode ser muito bem ser tanto o mundo como Deus, de modo que não pode haver validade alguma em tal argumento. Este é exatamente da mesma natureza que o ponto de vista hindu, de que o mundo se apoiava sobre um elefante e o elefante sobre uma tartaruga, e quando alguém perguntava: “E a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal se mudássemos de assunto?” O argumento, na verdade, não é melhor do que este. Não há razão pela qual o mundo não pudesse vir a ser sem uma causa; por outro lado, tampouco há qualquer razão pela qual o mesmo não devesse ter sempre existido. Não há razão, de modo algum, para se supor que o mundo teve um começo. A idéia de que as coisas devem ter um começo é devida, realmente, à pobreza de nossa imaginação. Por conseguinte, eu talvez não precise desperdiçar mais tempo com o argumento acerca da Causa Primeira.”
Bertrand Russel, filósofo e matemático em "Porque não sou cristão"
“Em termos aproximados, podemos dizer que um argumento é conclusivo (deve persuadir-nos a aceitar a respectiva conclusão) apenas se satisfaz duas condições:
1. As suas premissas são aceitáveis ou estão justificadas.
2. As suas premissas (justificadas) fornecem provas ou razões suficientes para justificar a aceitação da conclusão (neste caso o argumento é dito válido).
Muitas pessoas que rejeitam o argumento da primeira causa acreditam que argumentos deste tipo (com frequência chamados de metafísicos ― ver Capítulo 6 para mais sobre a metafísica) sofrem todos de um de dois defeitos: ou as suas premissas são tão inaceitáveis ou questionáveis como as suas conclusões; ou as respectivas conclusões não se seguem validamente das premissas. Por exemplo, uma objecção levantada contra o argumento da primeira causa é o de que a segunda premissa não é aceitável (quase todas as pessoas aceitam a sua primeira premissa). Os matemáticos em particular têm argumentado a favor da possibilidade de séries infinitas de eventos ou causas em termos técnicas e alguns filósofos têm aceitado o seu raciocínio.
Suponhamos, no entanto, que rejeitamos a ideia de que pode haver uma série infinita de causas, de tal modo que ambas as premissas do argumento da causa primeira se tornam aceitáveis. Apesar disso o argumento ainda falharia em ser válido e, portanto, a aceitação da sua conclusão também não se justificaria.
Em primeiro lugar, o argumento apenas provaria que cada a série de causas tem uma causa primeira ou incausada, mas não prova que todas as causas sejam parte de uma série única de causas que tenha a única primeira causa, porque é possível que nem todas as causas sejam partes de uma série única de causas. Por outras palavras, o argumento provaria que há uma ou mais causas primeiras, mas não que exista apenas uma.
Em segundo lugar, apenas provaria, no melhor dos casos, que a primeira causa existe, não que essa primeira causa seja Deus. Em vez disso, a primeira causa poderia ter sido o Diabo (um candidato plausível, dada a natureza do universo). E mesmo que o argumento tivesse provado que a primeira causa tinha de ser um deus, não provaria que ele tivesse de ser o seu Deus (se for um crente) ou um deus que encaixasse na imagem padrão que os cristãos, judeus ou muçulmanos têm de Deus. Poderia ser qualquer um dos milhares de deuses diferentes em que os seres humanos acreditam ou, talvez, um em que um ser humano nunca tenha pensado. De facto, o argumento da primeira causa abre a possibilidade de que tenha existido um Deus que criou o universo (ou talvez muitos deuses), mas que agora Deus esteja morto.”
Howard Kahane, filósofo em: Thinking About Basic Beliefs
“Críticas ao argumento da causa primeira
Autocontradição
O argumento da causa primeira começa por admitir que todas as coisas foram causadas por qualquer outra coisa, mas depois acaba por contradizer esta ideia, afirmando que Deus foi a primeira causa de todas. Defende simultaneamente que não pode haver uma causa não causada e que há uma causa não causada: Deus. Convida-nos a perguntar: «E o que causou Deus?»
Uma pessoa que se deixe convencer pelo argumento da causa primeira pode objectar que o argumento não quer dizer que tudo tem uma causa, mas apenas que tudo, excepto Deus, tem uma causa. Mas isto também não serve. Se a série de causas e efeitos vai parar algures, por que razão tem de parar em Deus? Por que razão não pode parar antes, no aparecimento do próprio universo?
Não é uma demonstração
O argumento da causa primeira pressupõe que os efeitos e as causas não poderiam retroceder para sempre numa espécie de regressão infinita: uma série sem fim a retroceder no tempo. O argumento pressupõe a existência de uma causa primeira que deu origem a todas as outras coisas. Mas será que as coisas terão mesmo de ter sido assim?
Se usássemos um argumento análogo sobre o futuro, teríamos de supor que existiria um efeito final, um efeito que não seria a causa de nada para além dele. Mas, apesar de ser de facto difícil de imaginar, parece plausível pensar que as causas e efeitos se prolongam infinitamente no futuro, tal como não existe um número que seja o maior de todos, uma vez que a qualquer número que, por hipótese, seja o maior podemos sempre adicionar mais um. Se é realmente possível ter uma série infinita, por que razão não podem os efeitos e as causas prolongar-se retrospectivamente no passado, infinitamente?
Limites da conclusão
Mesmo que se possa responder a ambas as críticas ao argumento, este não demonstra que a causa primeira é o deus descrito pelos teístas. Tal como acontece com o argumento do desígnio, há limites sérios ao que pode ser concluído a partir do argumento da primeira causa.
Em primeiro lugar, é verdade que a primeira causa foi, provavelmente, extremamente poderosa, de forma a poder criar e pôr em movimento a série de causas e efeitos que tiveram como resultado todo o universo tal como o conhecemos. Pode, por isso, haver alguma justificação para defender que o argumento mostra que existe um deus muito poderoso, apesar de não ser, talvez, todo-poderoso.
Mas o argumento não apresenta absolutamente nenhuma razão para aceitar que existe um deus omnisciente nem sumamente bom. Uma primeira causa não teria de ter nenhum destes atributos. E, tal como com o argumento do desígnio, um defensor do argumento da causa primeira ficaria ainda com o problema de saber como poderia um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom tolerar o mal existente no mundo.”
Nigel Warburton, filósofo em: “Elementos Básicos de Filosofia"Simon Blackburn, filósofo em: Pense uma introdução a filosofia
ARGUMENTO ONTOLÓGICO
"Ser não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa; é apenas a posição de uma coisa ou de certas determinações em si mesmas. No uso lógico é simplesmente a cópula de um juízo. A proposição Deus é omnipotente contém dois conceitos que têm os seus objectos: Deus e omnipotência; a minúscula palavra é não é um predicado mais, mas tão somente o que põe o predicado em relação com o sujeito. Se tomar pois o sujeito (Deus) juntamente com todos os outros predicados (entre os quais se conta também a omnipotência) e disser Deus é, ou existe um Deus, não acrescento um novo predicado ao conceito de Deus, mas apenas ponho o sujeito em si mesmo, com todos os seus predicados e, ao mesmo tempo, o objecto que corresponde ao meu conceito. […] E assim o real nada mais contém que o simplesmente possível. Cem táleres reais não contêm mais do que cem táleres possíveis. Pois que se os táleres possíveis significam o conceito e os táleres reais o objecto e a sua posição em si mesma, se este contivesse mais do que aquele, o meu conceito não exprimiria o objecto inteiro e não seria, portanto, o seu conceito adequado. Mas para o estado das minhas posses, há mais em cem táleres reais do que em no seu simples conceito (isto é na sua possibilidade). Porque, na realidade, o objecto não está meramente contido, analiticamente, no meu conceito mas é sinteticamente acrescentado ao meu conceito […] sem que por essa experiência exterior ao meu conceito os cem táleres pensados sofram o mínimo aumento.
Assim, pois, quando penso uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os predicados pelos quais a penso (mesmo na determinação completa), em virtude de acrescentar que essa coisa é, não lhe acrescento o mínimo que seja. […] Se, por conseguinte, penso um ser como realidade suprema (sem defeito), mantém-se sempre o problema de saber se existe ou não.”
Immanuel Kant, dispensa apresentações Simon Blackburn, filósofo em Pense, uma introdução a filosofia
“Críticas ao argumento ontológico
Consequências absurdas
Uma crítica comum ao argumento ontológico defende que ele permitiria que, através de definições de todo o género de coisas, pudéssemos demonstrar a sua existência. Por exemplo, podemos muito facilmente imaginar uma ilha perfeita, com uma praia perfeita, vida selvagem perfeita, etc., mas é óbvio que daqui não se segue que essa ilha existe algures. Logo, porque o argumento ontológico parece justificar uma conclusão tão absurda como esta, pode facilmente ver-se que se trata de um mau argumento. Ou a estrutura do argumento não é sólida, ou, pelo menos, um dos seus pressupostos tem de ser falso; de outra maneira, não poderia dar lugar a consequências tão obviamente absurdas.
Um defensor do argumento ontológico pode responder a esta objecção dizendo que, apesar de ser claramente absurdo pensar que podemos demonstrar a existência de uma ilha através da sua definição, não é absurdo pensar que da definição de Deus se segue que Deus existe necessariamente. Isto é assim porque as ilhas perfeitas, tal como carros perfeitos, dias perfeitos, ou seja lá o que for, são apenas exemplos perfeitos de categorias particulares de coisas. Mas Deus é um caso especial: Deus não é apenas um exemplo perfeito de uma categoria, mas a mais perfeita de todas as coisas.
Contudo, mesmo que aceitemos este argumento implausível, há mais uma crítica ao argumento ontológico que qualquer seu defensor terá de enfrentar. Esta crítica foi originalmente feita por Immanuel Kant (1724-1804).
A existência não é uma propriedade
Um celibatário pode ser definido como um homem solteiro. Ser solteiro é a propriedade essencial definidora de um celibatário. Ora, se eu dissesse «os celibatários existem», não estaria a descrever mais uma propriedade dos celibatários. A existência não é o mesmo tipo de coisa que a propriedade de ser solteiro: para que uma pessoa possa ser solteira tem primeiro de existir, apesar de o conceito de celibatário ser o mesmo, quer existam celibatários quer não.
Se aplicarmos o mesmo raciocínio ao argumento ontológico, veremos que o erro que comete é tratar a existência de Deus como se não passasse de outra propriedade, como a omnisciência ou a omnipotência. Mas Deus não poderia ser omnisciente nem omnipotente sem existir; logo, mesmo numa simples definição de Deus já estamos a pressupor que Deus existe. Acrescentar a existência como mais uma propriedade essencial de um ser perfeito é cometer o erro de tratar a existência como uma propriedade, em vez de a tratar como a condição de possibilidade para que qualquer coisa possa realmente ter uma propriedade qualquer.
Mas que dizer, então, dos seres ficcionais, como os unicórnios? Claro que podemos falar acerca das propriedades de um unicórnio, tal como ter um corno e quatro patas, sem que os unicórnios tenham de existir realmente. A resposta é esta: uma frase como «Os unicórnios têm um corno» quer realmente dizer que «Se os unicórnios existissem, teriam de ter um corno». Por outras palavras, a frase «Os unicórnios têm um corno» é de facto uma afirmação hipotética. Logo, a inexistência de unicórnios não é um problema para a perspectiva que defende que a existência não é uma propriedade.”
Nigel Warburton, filósofo em: “Elementos Básicos de filosofia"
ARGUMENTO DO DESÍGNIO
"O argumento teleológico (argumento do design)
O passo seguinte nos conduz ao argumento da prova teleológica da existência de Deus. Vós todos conheceis tal argumento: tudo no mundo é feito justamente de modo a que possamos nele viver, e se ele fosse, algum dia, um pouco diferente, não conseguiríamos viver nele. Eis aí o argumento da prova teleológica de Deus. Toma ele, às vezes, uma forma um tanto curiosa; afirma-se, por exemplo, que as lebres têm rabos brancos a fim de que possam ser facilmente atingidas por um tiro. Não sei o que as lebres pensariam deste destino. É um argumento fácil de se parodiar. Todos vós conheceis a observação de Voltaire, de que o nariz foi, evidentemente, destinado ao uso dos óculos. Essa espécie de gracejo acabou por não estar tão fora do alvo como poderia ter parecido no século XVIII, pois que, desde o tempo de Darwin, compreendemos muito melhor por que os seres vivos são adaptados ao meio em que vivem. Não é o seu meio que se foi ajustando aos mesmos, mas eles é que foram se ajustando ao meio, e isso é que constitui a base da adaptação. Não há nisso prova alguma de desígnio divino.
Quando se chega a analisar o argumento teleológico da prova da existência de Deus, é sumamente surpreendente que as pessoas possam acreditar que este mundo, com todas as coisas que nele existem, como todos os seus defeitos, deva ser o melhor mundo que a onipotência e a onisciência tenham podido produzir em milhões de anos. Realmente não posso acreditar nisso. Achais, acaso, que, se vos fossem concedidas onipotência e onisciência, além de milhões de anos para que pudésseis aperfeiçoar o vosso mundo, não teríeis podido produzir nada melhor do que a Ku-Klux-Klan ou os fascistas? Realmente, não me impressiono muito com as pessoas que dizem: “Olhem para mim: sou um produto tão esplêndido que deve haver um desígnio no universo”. Não estou muito impressionado pelo esplendor dessas pessoas. Ademais, se aceitais as leis ordinárias da ciência, tereis de supor que não só a vida humana como a vida em geral neste planeta se extinguirão em seu devido curso: isso constitui uma fase da decadência do sistema solar. Em certa fase de decadência, teremos a espécie de condições de temperatura, etc., adequadas ao protoplasma, e haverá vida, durante breve tempo, na vida do sistema solar. Podeis ver na Lua a espécie de coisa a que a Terra tende: algo morto, frio e inanimado.
Dizem-me que tal opinião é depressiva e, às vezes, há pessoas que nos confessam que, se acreditassem nisso, não poderiam continuar vivendo. Não acrediteis nisso, pois que não passa de tolice. Na verdade, ninguém se preocupa muito com o que irá acontecer daqui a milhões de anos. Mesmo que pensem que estão se preocupando muito com isso, não estão, na realidade, fazendo outra coisa senão enganar a si próprias. Estão preocupadas com algo muito mais mundano – talvez mesmo com a sua má digestão. Na verdade, ninguém se torna realmente infeliz ante a idéia de algo que irá acontecer a este mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por conseguinte, embora seja melancólico supor-se que a vida irá se extinguir (suponho, ao menos, que se possa dizer tal coisa, embora, às vezes, quando observo o que as pessoas fazem de suas vidas, isso me pareça quase um consolo) isso não é coisa que torne a vida miserável. Faz apenas com que a gente volte a atenção para outras coisas.”
Bertrand Russel, filósofo e matemático em “Porque não sou cristão”
“Objecções ao Argumento do Desígnio
A objecção mais óbvia é a de que, no melhor dos casos, o argumento do desígnio apenas prova que há um projectista e não um Deus padrão, tal como o argumento da causa primeira apenas provaria que há uma primeira causa. O projectista, claro, não precisa de ser um Deus padrão; poderia muito bem ser o diabo, muitos deuses, um outro deus ou, talvez, um deus já falecido. Mas o argumento do desígnio nem sequer prova tanto porque a sua segunda premissa (a de que a ordem nem poderia existir sem um ordenador) é duvidosa, para não dizer pior. Porquê assumir que a ordem não pode existir sem um organizador?
Afirma-se muitas vezes que podemos justificar a existência de um projectista por um método chamado indução. (Mais será dito sobre a indução no capítulo 3.) Verifica-se que muitas coisas que manifestam ordem (relógios de pulso, por exemplo) foram deliberadamente compostas por projectistas humanos ou animais. Já vimos muitos relógios que sabemos que são projectados por humanos mas nunca vimos um que, sendo investigado, provasse não ter sido assim projectado. Portanto, se agora nós descobrirmos um relógio de pulso na areia de uma praia deserta. Assumimos (por indução) que ele também foi projectado por humanos.
Flocos de neve, as leis da natureza e o corpo humano manifestam ordem (apesar de, claro, nunca termos visto um projectista, humano ou não, a projectá-los). Sabemos, claro, que os seres humanos (ou noutros animais) não podem tê-los ordenado, pelo que concluímos, por indução, algum organizador não animal, nomeadamente Deus, deve tê-los feito assim.
Mas esta conclusão não está justificada. Quando concluímos por indução que o relógio de pulso encontrado na areia não se ajeitou sozinho ou que não apareceu completo por acidente, e que, portanto, deve ter sido projectado por seres humanos, estamos seguros. O nosso argumento assemelha-se a isto:
1. Já foram observados muitos relógios de pulso, e todos os que foram examinados foram projectados por humanos.
2. Este relógio deve ter sido projectado por seres humanos.
Podemos, inclusive, argumentar em termos mais gerais e, portanto, de uma maneira mais poderosa, assim:
1. Muitos dispositivos mecânicos foram já observados, e de todos os que foram examinados se concluiu que foram projectados por humanos.
2. Este dispositivo mecânico (que, por acaso, é um relógio de pulso) deve ter sido projectado por seres humanos.
Notemos agora quão mais geral um argumento teria de ser para nos levar até um projectista de flocos de neve, leis da natureza ou seres humanos:
1. Muitas das coisas organizadas têm sido observadas e de todas as que foram examinadas se concluiu que foram projectadas por humanos.
2. Esta coisa organizada (que, por acaso, é um floco de neve, uma lei da natureza ou um ser humano) deve ter sido projectada por um projectista.
O argumento é claramente defeituoso porque a sua premissa é obviamente falsa. Há um grande número de coisas ordenadas para as quais não descobrimos um projectista ou um organizador ― flocos de neve, arco-íris, cristais e seres humanos são alguns. (Se há um deus que projectou todas essas coisas, então, para observarmos o projectista de flocos de neve a trabalhar, teríamos de apanhar Deus no acto de os amoldar a partir de H20, ou, talvez, de o apanhar no acto de criar as leis da física de que resulta que H20 se compõe a si mesmo em flocos de neve).
O ponto é o de que as coisas que manifestam ordem parecem cair em duas classes distintas: aquelas que nós (ou outros animais) ordenaram; aquelas que não ordenámos. Já verificámos e encontrámos muitos itens da primeira classe que são projectados por humanos. Mas nunca encontrámos um projectista para um só membro da segunda classe. Portanto, não estamos autorizados a concluir por indução que toda a ordem implica um organizador ou um projectista, logo o argumento pelo desígnio não pode ser apoiado pelo raciocínio indutivo. Se estamos prontos para o aceitar, devemos estar a fazê-lo sem razão, isto é, pela fé.”
Howard Kahane, filósofo em: Thinking About Basic Beliefs
“Críticas ao argumento do desígnio
Fraca analogia
Uma objecção ao argumento apresentado defende que este se baseia numa analogia fraca: presume sem discussão a existência de uma semelhança significativa entre os objectos naturais e os que sabemos terem sido concebidos. Mas não é óbvio que, para usar mais uma vez os mesmos exemplos, o olho humano seja realmente como um relógio em todos os aspectos importantes. Os argumentos por analogia baseiam-se no facto de existir uma forte semelhança entre as duas coisas comparadas. Se a semelhança for fraca, as conclusões que podem ser retiradas com base na comparação serão igualmente fracas. Assim, por exemplo, um relógio de pulso e um relógio de bolso são suficientemente semelhantes para que possamos presumir terem ambos sido concebidos por relojoeiros. Mas, apesar de existir alguma semelhança entre um relógio e um olho — ambos são intrincados e cumprem as suas funções específicas —, essa semelhança é apenas vaga e quaisquer conclusões baseadas nessa analogia resultarão igualmente vagas.
Evolução
A existência de um Relojoeiro Divino não é a única explicação possível de como os animais e as plantas estão tão bem adaptados às suas funções. Em particular, a teoria da evolução pela selecção natural, defendida por Charles Darwin (1809-1882) no seu livro A Ori-gem das Espécies (1859, trad. 1961), oferece-nos uma explicação alternativa, largamente aceite, deste fenómeno. Darwin mostrou como, pelo processo da sobrevivência do mais apto, os animais e as plantas melhor adaptados ao seu meio ambiente sobrevivem e transmitem os seus genes aos seus descendentes. Este processo explica como as maravilhosas adaptações ao meio ambiente que encontramos nos reinos animal e vegetal podem ter ocorrido, sem precisar de introduzir a noção de Deus.
Claro que a teoria da evolução de Darwin não refuta de forma alguma a existência de Deus — na verdade, muitos cristãos aceitam-na como a melhor explicação de como as plantas, os animais e os seres humanos se tornaram no que são hoje: eles acreditam que Deus criou o próprio mecanismo da evolução. Contudo, a teoria de Darwin enfraquece, de facto, a força do argumento do desígnio, uma vez que explica os mesmos efeitos sem mencionar Deus como causa. A existência desta teoria acerca do mecanismo da adaptação biológica impede o argumento do desígnio de constituir uma demonstração conclusiva da existência de Deus.
Limites da conclusão
Mesmo que, apesar das objecções mencionadas até agora, o leitor ache convincente o argumento do desígnio, deve reparar que este argumento não demonstra a existência de um deus único, todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Um exame mais minucioso do argumento mostra que este tem várias limitações.
Em primeiro lugar, o argumento não consegue, de forma alguma, sustentar o monoteísmo — a ideia de que só existe um deus. Mesmo que o leitor aceite que o mundo e tudo o que ele contém mostra claramente sinais de ter sido concebido, não há razão para acreditar que foi tudo concebido por um só deus. Porque não poderia ter sido tudo concebido por uma equipa de deuses menores trabalhando em conjunto? Afinal de contas, a maioria das grandes e complexas construções humanas, como os arranha-céus, as pirâmides, os foguetões espaciais, etc., foram construídos por equipas de indivíduos; por isso, se levarmos a analogia a sério, a sua conclusão lógica irá conduzir-nos à convicção de que o mundo foi concebido por um grupo de deuses trabalhando em equipa.
Em segundo lugar, o argumento não apoia necessariamente a perspectiva de que aquele ou aqueles que projectaram o mundo são todo-poderosos. É plausível argumentar que o universo tem vários «defeitos de concepção»: por exemplo, o olho humano tem uma tendência para a miopia e para criar cataratas com a idade — o que dificilmente pode ser considerado a obra de um criador todo-poderoso que desejasse criar o melhor mundo possível. Tais verificações poderiam levar algumas pessoas a pensar que o Arquitecto do universo, longe de ser todo-poderoso, será antes um deus ou deuses comparativamente fracos ou talvez um deus ainda novo a experimentar os seus poderes. Talvez o Arquitecto tivesse morrido pouco tempo depois de ter criado o universo, deixando-o assim a degradar--se sozinho. O argumento do desígnio oferece, pelo menos, tantas razões para estas conclusões como para a existência do deus descrito pelos teístas. Por isso, o argumento do desígnio, por si só, não pode demonstrar que é o deus dos teístas que existe, e não qualquer outro tipo de deus ou deuses.
Por último, sobre o carácter omnisciente e bom do Arquitecto, muitas pessoas acham que o mal existente no mundo contraria esta conclusão. O mal vai desde a crueldade humana, o assassínio e a tortura, ao sofrimento causado pelos desastres naturais e pela doença. Se, como o argumento do desígnio sugere, devemos olhar à nossa volta para ver os sinais da obra de Deus, muitas pessoas acham difícil aceitar que o que vêem seja o resultado de um criador benevolente. Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia impedi-lo de existir; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal continua a existir. Este sério desafio à crença no Deus dos teístas tem sido muito discutido pelos filósofos. É conhecido como o problema do mal. Numa próxima secção examinaremos, algo detalhadamente, este problema e as várias tentativas de o resolver. Mas, para já, este problema deve pelo menos fazer-nos ponderar se é verdadeira a ideia de o argumento do desígnio oferecer razões conclusivas a favor da existência de um Deus sumamente bom.
Como podemos ver nesta discussão, o argumento do desígnio só pode oferecer-nos, na melhor das hipóteses, uma conclusão muito limitada: a de que o mundo e tudo o que nele existe foi concebido por algo ou alguém. Ir para além desta conclusão seria ultrapassar o que logicamente pode concluir-se do argumento.”
Nigel Warburton, filósofo em: “Elementos Básicos de filosofia”