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A China como ela se vê 1: DemocraciaA última edição da revista britânica Prospect traz na capa um longo ensaio assinado por Mark Leonard a respeito da atual geração de pensadores chineses. O estereótipo de um país fechado às vezes complica a compreensão da China. Muitas coisas são, de fato, proibidas. Mas o regime permite que intelectuais pensem e até incentiva o debate. Acreditam que só assim idéias novas surgirão para determinar o governo, os objetivos e as estratégias da China nos próximos anos.O resultado é que várias correntes de pensamento claramente inovadoras, embora ainda desconhecidas no Ocidente, estão surgindo. O artigo de Leonard é um resumo de seu livro que está para ser lançado, What does China think? – O que pensa a China? (na Amazon dos EUA e na do Reino Unido.) Este post, baseado no artigo, virá numa série de três a serem publicados nos próximos três dias. O primeiro trata de democracia.Diz o senso comum ocidental que, onde chega o livre mercado, logo chega a democracia. Muitos pensadores chineses questionam a idéia – ao menos, no sentido que nós damos à palavra, de democracia liberal. Yu Keping, um professor que tende à esquerda chinesa e, hoje, é próximo ao presidente Hu Jintao, vem defendendo a posição que se tornou dominante no governo. Assim como a economia foi apenas muito lentamente sendo aberta, liberdade política deve caminhar com igual cautela. E assim como, no tempo de Deng Xioping algumas cidades da costa tiveram a permissão de fazer experimentos com um mercado livre, algumas regiões têm, hoje, a permissão de mexer com democracia.Seguindo a idéia de Keping, não é democracia para o povo ainda. A democracia é para membros do Partido. Em algumas cidades, os membros têm direito a votar para escolher seus líderes. (E, para alguns cargos, as eleições vem se tornando concorridas, com campanha e tudo.) Parece pouco, uma democracia que virá apenas para o PC. Mas o Partido, com 70 milhões de membros, teria um eleitorado maior que o do Reino Unido e terminaria – segundo o projeto idealizado por Keping – tendo partidos internos que se digladiariam por ideais de China.(Antes que alguém questione, há sim um movimento de direita e outro de esquerda dentro do governo da China. Se definem, assim como aqui fora, por aqueles que acreditam que as leis de mercado deve assumir as rédeas da política de Estado e os que, por outro lado, defendem que o governo deve garantir o bem estar da população em determinados setores.)Keping quer que a democracia, o poder de voto, chegue à população apenas após um bom tempo de experimentação. Seu argumento é que onde há eleição há confusão na rua, o povo reclama, há instabilidade. Outro professor, Pan Wei, questiona suas idéias e propõe um modelo diferente. A democracia chega ao povo mas não pelo voto. Seu argumento é que em todos os países em que há democracia com livre direito ao voto, cada vez menos os eleitores têm ido às urnas e a descrença geral nos líderes é evidente. Wei e um terceiro professor, Fang Ning, estão testando numa cidade de 30 milhões de habitantes chamada Chongqing as idéias de James Fishkin, um cientista político norte-americano ligado à Universidade de Stanford.É uma tentativa de reaplicar, com ferramentas modernas, o modelo ateniense. Um grupo de cidadãos é escolhido aleatoriamente e passam por workshops com técnicos do funcionalismo público. Eles são apresentados aos problemas da cidade, às soluções possíveis, fazem perguntas. Ao fim do processo, este grupo de cidadãos escolhe como deve ser empregado o orçamento da cidade para aquele ano. Chamam o processo de democracia deliberativa.Numa terceira cidade, grupos de foco – como aqueles das pesquisas de opinião – são consultados a respeito daquilo que gostariam de ver resolvido na cidade.Essencialmente, a China é tão vasta e tão populosa que o governo decidiu que pode fazer experiências até encontrar um modelo que considere ideal. Seus cientistas políticos debatem na imprensa, via Internet, nas revistas especializadas mas, além disto, têm algo que intelectuais não têm em qualquer outro país. A oportunidade de botar em teste suas idéias no campo.Não é de forma alguma esquisito flertar com outros modelos para democracia. Há muitos problemas nas democracias ocidentais e uma certa falta de idéias e vontade de resolvê-los. Na opinião deste blogueiro, as dificuldades atuais das democracias compõem o tema mais fascinante que existe. O que chama atenção aos olhos, no caso chinês, não é a coragem de buscar novos conceitos. É o fato de que estas experiências controladas com um laboratório de cidades que realmente existem e na qual vivem pessoas de verdade só seria possível numa ditadura.http://pedrodoria.com.br/2008/03/19/a-china-como-ela-se-ve-1-democracia/
A China como ela se vê 2: Direita e esquerdaEste segundo post baseado no longo ensaio assinado por Mark Leonard na Prospect trata de o que se entende por pensamento de direita e de esquerda na China. Não há de ser surpresa que, mesmo num país comunista, muito pouco muda. Leonard é autor de What does China think? – O que pensa a China?. O terceiro e final sai amanhã.O pai da revolução econômica chinesa é o professor Zhang Weiying. A partir de meados dos anos 80, ele desenvolveu o processo que implantou uma ‘economia de mercado’ na China. Como seu objetivo não era promover um choque de capitalismo, que poderia destruir o país, Weiying propôs que o governo continuaria a controlar os preços da maioria dos produtos enquanto que o de outros poderiam flutuar de acordo com o mercado. Durante os quinze anos seguintes, mais e mais produtos foram incluídos à cesta até que o governo já não controlava mais nada.Perante o público, o governo continuou a chamar tudo de ‘comunismo’. Na China é assim: não importa muito como as coisas funcionam, o que importa é que tenham o nome certo. Weiying é um dos principais nomes do pensamento da ‘direita’ do Partido Comunista.Seu projeto de permitir que os preços encontrados na feira ou na loja de eletrônicos fossem ajustados de acordo com o mercado foi possível por conta das reformas implantadas pelo sucessor de Mao Zedong, Deng Xiaoping. Foi Deng que, em 1979, permitiu à pequena cidade de Shenzen que se tornasse uma ‘zona econômica especial’. Quer dizer: o governo não regularia aquilo que os empresários locais decidissem produzir e ainda concederia generosos abatimentos nos impostos. Partiram para os produtos eletrônicos de consumo.Deng defendia que alguma regiões deveriam enriquecer primeiro – a história do dividir o bolo depois circulava também o mundo comunista naqueles tempos. Weiying defende ainda hoje que a China precisa continuar no processo que concede mais liberdade de mercado, não menos.Hoje em dia, no entanto, o governo já não lhe concede mais ouvidos tão generosos como fez no passado. Há uma ascensão dos intelectuais de ‘esquerda’. O principal representante deste grupo é Wang Hui, um dos líderes dos estudantes que se levantaram em 1989, na Praça da Paz Celestial. À época, como o típico revolucionário estudantil chinês, ele queria abertura plena de mercado. Mas após as tropas marcharem contra os revoltosos, Hui caiu na clandestinidade. Primeiro, por dois anos, viveu escondido no interior, onde conheceu a desigualdade e a pobreza de seu país. Depois, exilou-se nos EUA, onde estudou. Hoje, é benquisto, um dos pensadores mais influentes.Ele pertence à ‘nova esquerda’, não aos velhos comunistas. Defende que reformas econômicas são necessárias e não tem ojeriza ao mercado. Mas acha também que, ao promover uma política econômica que valoriza apenas o crescimento desenfreado do PIB, o governo acaba por impor sofrimento a trabalhadores e meio-ambiente.Tanto Hui quanto outros pensadores de seu grupo – Cui Zhiyuan, Hu Angang – buscam um modelo de social democracia. Num país do tamanho da China, no entanto, e com o grau de desigualdade social que ainda há, o modelo nórdico é impossível. O resultado, no entanto, é que serviços básicos de saúde no interior, por exemplo, é inexistente. Daí que cogitam a possibilidade de, nos bolsões de riqueza, cobrar (ainda que pouco) por seguros de saúde. Seus outros projetos envolvem novas leis sobre os direitos de propriedade, que dêem voz aos trabalhadores das fábricas várias. Não é que eles se tornariam sócios. Apenas que teriam voz.Em 2005, influenciado pela ‘nova esquerda’, o presidente Hu Jintao editou o 11º Plano Qüinqüenal chinês que, pela primeira vez desde 1978, não punha como projeto prioritário o crescimento econômico. Para 2010, o objetivo do governo passou a ser a ampliação dos fundos de pensão públicos – que são minguados, hoje –, a criação do seguro desemprego, a implementação de licença maternidade e uma redução de 20% do consumo de energia. Há um enfoque também em melhorar as condições da China rural, suspendendo vários impostos pesados, melhorando as condições dos sistemas de saúde e de educação.Na China, qualquer transformação é feita sempre com muita lentidão. Mas o governo tem consciência de que, no exterior, as condições de vida no país são vistas como selvagens. A queda à esquerda tem a ver com a percepção de que a economia de mercado ampliou a desigualdade ao mesmo tempo em que enriqueceu o país. Mas também tem a ver com a questão da imagem. Os chineses querem mais poder no mundo e, neste jogo de influência, imagem conta.Este tema, o da crescente influência chinesa no mundo, é o tema do último post, amanhã.http://pedrodoria.com.br/2008/03/20/a-china-como-ela-se-ve-1-direita-e-esquerda/
A China como ela se vê 3: Hegemonia mundialNa visão de Yang Yi, um almirante na Marinha chinesa dentre os principais pensadores da estratégia do país, os EUA estão em vantagem militar e cercam a China. A vantagem não é dada pela quantidade ou modernidade de armas. Os EUA não precisam disso porque o cerco é muito mais sutil – está no argumento. Sempre que a China procura modernizar ou ampliar seu poderio militar, de presto ela é apresentada como ameaça. E o mundo compra esta idéia. Para Yi, a impressão de que a China é uma ameaça militar acaso decida se armar é o maior obstáculo de sua política externa.Este é o terceiro e último post baseado no artigo de Mark Leonard na Prospect. Leonard é autor de What does China think?, à venda na Amazon dos EUA e do Reino Unido. O assunto de hoje é a relação da China com o resto do mundo.Hoje, o pensamento hegemônico – embora não unitário – na China passa ao largo das opiniões de Yi. A palavra de ordem é quanli, equivalente ao soft power norte-americano. A diplomacia do país busca ações que vendam a idéia do ’sonho chinês’ em oposição ao americano. Daí que, enquanto os EUA falam de mudança de regime pelo mundo, Beijing defende o respeito à soberania dos países. A mensagem que querem passar é que a China representa crescimento econômico, soberania política e respeito às leis internacionais. A idéia é: a China ouve outros países. E é esta China que aceita o papel de mediadora em conversas com a Coréia do Norte ou o Irã.Este é um ponto de vista particularmente defendido pela ‘nova esquerda’ do país. Gente como Yi representa o equivalente aos neo-conservadores e estes recorrem aos antigos pensadores da terra propondo um novo projeto. Há, dizem eles, dois tipos de influência. Wang é a influência do rei. O rei lança uma influência benigna ao longe; no outro lado está Ba, o ’senhor feudal’. Ele impõe pela força seu comando. Na antiguidade, propõem Yi e Yan Xuetong, a China aplicava tanto um quanto o outro. Para os vizinhos imediatos, Ba; para os países mais distantes, Wang.Por enquanto, a China está empenhada em parecer conciliadora. Enquanto a Rússia não perde uma chance de provocar os EUA, a China se desvencilha de conflitos. Quando, na ONU, o Conselho de Segurança estava embrenhado na questão de ir ou não à guerra contra o Iraque de Saddam Hussein, os chineses se calaram, permitindo aos russos e franceses que vocalizassem a oposição. Na questão dos direitos humanos, a China permitiu que os países muçulmanos se levantassem contra regras mais rígidas. Conseguiu o resultado que queria sem se expor ao desgaste. O resultado desta política é o seguinte: Em 1995, os EUA venceram 50,6% das votações na Assembléia Geral da ONU; em 2006, apenas 23,5% delas. George W. Bush não ajuda, evidentemente. Mas para aproveitar a fraqueza do inimigo carece esperteza. Em 95, a China venceu 43% das votações; em 2006, 82%.Habilidade no jogo diplomático não quer dizer que a China vença o jogo de percepção – e este é o centro do argumento do almirante Yi. Ao promover o respeito à soberania de todas as nações, o cada um faz o que achar melhor, lava cinicamente as mãos perante o genocídio de Darfur, no Sudão.A África é muito importante para a China. Em 2007, o país criou uma Zona de Economia Especial que engloba o continente. Seu modelo de crescimento está sendo implantado em vários bolsões pelo continente. Com o dinheiro chinês, a África dá as costas para o FMI e o velho sistema internacional. Tem crescido a partir de investimentos maciços. Estradas de ferro e indústrias, obras de infra-estrutura, surgem onde antes só havia miséria. O agrado à África dá de volta à China petróleo, produtos, influência. Não vem sem custo: a impressão de que há um imperialismo em curso e, principalmente, de que a China não liga para as piores aberrações. À China, tudo vale.Não é que com os EUA seja diferente. Apenas que o almirante Yi está certo. No jogo de percepções, ainda há um longo caminho a percorrer. A crise da última semana, no Tibete, só mostra duas coisas: o fato de ser uma ditadura e, portanto, simplesmente ignorar as questões de direitos humanos persistem sendo o maior obstáculo ao ingresso da China no universo das superpotências.http://pedrodoria.com.br/2008/03/21/a-china-como-ela-se-ve-3-hegemonia-mundial/