Renovação da lei agrícola dos EUA revela a farsa do livre comércio e pune o etanol brasileiroNa terra do livre mercado, a concorrência é aprisionada e o contribuinte banca fazendeiro ricoA renovação da lei de incentivo à agricultura dos EUA, a chamada Farm Bill, pelo Senado dois dias depois de ser aprovada também por larga margem de votos pela Câmara é a prova de que o protecionismo vai de vento em popa no mundo rico, e que a rodada de Doha, para a liberalização do comércio global, não passa de farsa.
A lei renovada amplia para cerca de US$ 307 bilhões em cinco anos os subsídios ao agricultor americano, parte sob a forma de compra garantida de alimentos para programas de assistência social – um subterfúgio político para calar opositores ao emprego dos impostos dos contribuintes para sustentar fazendeiros ricos. E isso quando a renda agrícola é a maior da história. O preço do trigo disparou 126%, da soja, 57%, milho, 45%. E a inflação explodiu no mundo.
Os efeitos dessa decisão se estendem a todo mundo, já que os EUA são o maior produtor e exportador agrícola global, vindo depois a União Européia. Os dois blocos concentram os maiores subsídios à agricultura e impõem barreiras para a livre competição da produção dos demais países produtores em seus mercados.
Cortar os primeiros e derrubar os segundos, eis o senso da Rodada de Doha, começada na capital do Catar em novembro de 2001 e agora moribunda. Por ela a diplomacia do governo Lula se empenhou e fez o país se atrasar ao perseguir a negociação multilateral e tornar letra morta o plano B dos acordos comerciais bilaterais.
A Farm Bill fere todos os acordos de livre comércio e atinge com força os interesses dos países agrícolas com produção competitiva, como Brasil e Argentina, e prejudica os mais pobres especialmente da África. Ela nada tem a ver com a proposta enviada ao Congresso pelo presidente George W. Bush, que já anunciou que vai vetá-la.
Se o fizer, deverá colher outra derrota, pois a lei foi aprovada por 81 a 15 no Senado e 318 a 106 na Câmara - votação suficiente para derrubar o veto de Bush. Democratas e republicanos do partido de Bush aprovaram uma lei que turva o horizonte do comércio global e dos biocombustíveis. Os subsídios ao álcool de milho, base local do etanol, foram mantidos - e ampliadas as barreiras ao acesso ao mercado americano da produção competitiva das usinas brasileiras.
Já se pode inferir o que virá da sucessão de Bush, seja Hillary Clinton ou Barak Obama, pelos democratas, ou John McCain, pelos republicanos, o eleito em 4 de novembro: muito mais protecionismo. Doha apodreceu, e Lula fará melhor se partir para outra, elegendo o pragmatismo sobre a diplomacia sem saída do multilateralismo.
Golpe no mundo pobreO projeto original de Bush, por exemplo, propunha alterar a regra da assistência humanitária aos países mais pobres, que condiciona as doações de alimentos a que sejam comprados de agricultores dos EUA. Bush propôs que 25% dos alimentos doados fossem comprados dos fazendeiros dos países em que há fome, desgraça agravada pela alta dos preços das commodities agrícolas e do petróleo.
A intenção era encorajar a infra-estrutura agrícola local e evitar o pesado custo de transporte dos EUA aos países ajudados e dos portos à população assistida. O Congresso recusou. Na prática, fez a opção pela taxa cobrada à população mundial pelos exportadores de petróleo.
Álcool só o delesO capítulo do álcool da Farm Bill desmonta as ilusões alimentadas pelo governo e usineiros brasileiros de criar uma espécie de OPEP dos biocombustíveis. Ela pode até surgir, mas sob a asa da águia americana. A lei fará o governo comprar açúcar de milho pelo dobro do preço mundial, estocá-lo e vendê-lo com desconto, que pode ir a 80%, para as usinas de álcool.
Foi mantida a tarifa de importação de etanol de US$ 0,54 por galão (US$ 2,04 por litro) e imposta a compra de até 85% do insumo no mercado doméstico. Ou seja: além da tarifa, agora passará a haver também cota de importação.
Doação a milionáriosNa terra do livre mercado, a Farm Bill aprisiona a concorrência e submete o contribuinte – néscio tanto lá como aqui – e pagar pelo melhor dos mundos do agricultor: subsídio para vender a produção a preço alto ao governo quando o mercado cai, e retê-la quando sobe.
Bush propôs reformar o chamado “escolha o seu preço”. Perdeu. Quis limitar o subsídio a fazendeiros com renda agrícola de até US$ 200 mil. Também perdeu. Ela cobrirá até US$ 1,5 milhão, se casado, e a metade, se solteiro. E querem denunciar nossa política industrial.
O governo Bush, certamente pressionado pelo empresariado dos EUA, instruiu o escritório
antidumping a esmiuçar o recente programa de ajuda ao investimento e exportação das indústrias brasileiras, uma primeira medida para o ingresso de eventual contestação no âmbito da Organização Mundial do Comércio, OMC, que patrocina a rodada de Doha e já condenou os EUA por subsidiar o algodão. Foi uma ação do Brasil. E daí? Os cotonicultores americanos continuam na boa.
Não se deve esperar do comércio nenhuma boa ação, só interesses. Lula faz papel de bobo, ainda que só para marcar posição, quando declara, como fez ao semanário
Der Spiegel, que quer “participar da OPEP e tentar fazer o petróleo barato”. Não com apoio dos EUA, onda a Farm Bill subsidia agricultor com renda 107 vezes maior que o nível de pobreza do país. Nem de países petroleiros, que parecem acreditar que se assiste ao último sopro dessa riqueza finita.
http://cidadebiz.oi.com.br/paginas/43001_44000/43585-1.html