7. Aula de ética
Polícia que mais mata no Brasil, freqüentemente acusada de abuso de violência e corrupção, a PM do Rio só oferece 12 horas de "Ética e Direitos Humanos" na formação básica.A cadeira ocupa 1% das 1.160 horas de instrução, embora seja uma das 20 matérias avaliadas com prova. "São 12 horas: é pouco. E vocês sentirão falta, porque é a única aula em que podem falar", reconhece o professor, civil. No primeiro dia, debate-se "a ética no país" e as instituições. "Ainda estou verificando qual será o conteúdo."O instrutor ensina: "Se alguém vier alegar que é representante dos direitos humanos, o PM pode se colocar também como profissional dos direitos humanos."Em outra aula, diz que "não posso cobrar do PM ética e moral se sou o primeiro a oferecer R$ 10 quando sou parado." Diz que os políticos mudam leis para se favorecerem e questiona quem defende a descriminalização da maconha. "É porque "meu filho não pode ser preso"."
Fim do mundo
Em outra aula, propõe um exercício: o mundo acabará e é preciso escolher três pessoas que ficarão em um abrigo por 20 anos, para perpetuar a humanidade, entre as seguintes: uma menina de 14 anos; uma prostituta de 18; um cadeirante de 19; uma homossexual de 17; uma religiosa extremista de 18; um soropositivo, também de 18; um PM de 22, condenado por estupro; um homem de 60; um traficante e usuário de 18; um ditador e genocida de 19.Todos escolheram a menina, em idade reprodutiva e com "poucos vícios"; muitos optaram pelo PM; pelo homem de 60, por "ter experiência" e "sabedoria"; outros elegeram a religiosa, de "valores"; o traficante teve votação, crença na regeneração; poucos escolheram o cadeirante e nenhum grupo incluiu o genocida, embora um aluno o tenha defendido para "organizar".Ninguém quis o soropositivo. A prostituta foi selecionada para "divertir" os homens e "reproduzir".
8. Imagem negativa
Na primeira semana, recrutas saíam do quartel quando uma jovem no carro gritou: "Seus vermes! Vermes!".Regida pelo lema "servir e proteger", a PM tem relação tensa com a sociedade. Há latente rancor por parte dos policiais, que julgam não ter o reconhecimento daqueles por quem se arriscam. "A população é mal-educada. Vocês colaborarão para a rejeição cair. É um câncer, que não mudaremos. A sociedade descasca a PM. Wagner Montes [apresentador de programa na TV Record do Rio] descasca bandido. Bandido dá tiro pra caramba. Mas quem matou? A PM! Só Wagner Montes defende a PM", lamenta um sargento.Um aspirante critica. "O playboy é parado e a primeira coisa que faz é: "Quanto é o café [propina]?" Dá R$ 10 e, quando vai embora, xinga o PM: "Safado, corrupto!" E ele? A sociedade tem a polícia que merece? Tem. A mídia só dá porrada, mas esta é uma boa casa."Há inquietação com a imagem negativa, e o inconformismo reforça o corporativismo."O código 800 [auxílio a policial, prioridade] é o mais importante. Tem a velhinha assaltada e o 800; esquece a velha e socorre o PM. Primeiro o colega. Ninguém gosta de vocês, só seu cachorro. A cidade vai odiar vocês: o porteiro dá café, a mulher dá lanche, mas todo mundo te odeia, só dá porque está de farda." Outro aspirante resume. "Hoje, tudo o que o PM faz incorre em erro, mesmo quando não é."Um sargento ataca. "A sociedade quer paz social? Faz blitz, pega o filho do juiz com droga... Entra na favela, mata 15 bandidos e uma velhinha. Aí fazem passeata pela velha."Um instrutor diz que o PM que a sociedade quer não fuma, não bebe e não pega dinheiro. "Esse PM de cordão de ouro, pochete [com arma], acabou, ficou no tempo. Na última turma, morreu um aluno, vindo para cá, de pochete, com uma saraivada de tiros. Não quero ninguém morto na minha companhia. É horrível." Em fevereiro, um aspirante foi assassinado ao sair do quartel.Ao assumir o comando do Centro de Formação, o coronel Ivan Muniz tinha como meta recuperar a imagem da corporação -"mudar o rosto da PM", em suas palavras."Muitos querem pisar este solo sagrado. Alguns terão a honra e a glória de ser PMs, heróis sociais, na luta, enquanto outros se omitem. Se não houvesse sacrifício, não haveria heroísmo, heróis sociais. Não tenho dúvida de que aqui há heróis sociais, que os senhores farão diferença e darão um novo rosto à PM", disse.Sereno e cordial, ia diariamente ao rancho. "Boa tarde! Está boa a comida?", perguntava. Em 30 de janeiro passado, no auge de crise da PM no Rio, o coronel Muniz entregou o cargo, com mais de 40 comandantes da corporação, em protesto contra os salários e a exoneração do comandante-geral Ubiratan Ângelo.
9. Favela X zona sul
Apenas a minoria mora em favelas. Os recrutas são aprovados em concurso que exige ensino médio e tem dez candidatos por vaga, mais que muitos vestibulares.Único morador da zona sul no pelotão -talvez na companhia-, sou apelidado de "Zona Sul". "É outra realidade, outro mundo. O PM na zona sul dá até "boa noite, senhor". Aqui na zona oeste é: "Vai dando logo, entrega logo que, se eu achar, tá fodido! Sai do carro, sai, sai!"", brinca um colega."A PM é malvista na zona sul, né? Fui taxista e ouvia falarem muito mal", ri um rapaz que ficou amigo.Os instrutores reconhecem a atuação distinta da PM, de acordo com a área. "Vai abordar do mesmo jeito na Vieira Souto [Ipanema] e no Jacaré [favela da zona norte]? Depende da situação, da área de risco, do padrão social. Na favela, se der as costas, leva rajada."Eu vivia situação dúbia: era militar sem ser e tinha jornada dupla, de PM e jornalista.Além da rotina militar, tinha de prestar atenção a tudo. "Quer ser o 01 mesmo, hein? Anota tudo..." Tinha bom relacionamento no pelotão. Emprestei caderno para colegas copiarem e ajudei a escrever bilhetes e documentos.Brincava, fiz amizades -gostei de muitos e mantive contato com alguns. Não podia revelar minha atividade, mas às vezes desconfiavam. "Você é muito calmo, não tem cara de soldado. É "moita", na sua. Fica só ouvindo tudo, quietinho. Vai ser da P2 [serviço reservado da PM]", dizia um colega.
10. Desistência
Por volta de 10h do dia 25 de janeiro, fui à companhia pedir dispensa. Apresentei-me a dois sargentos -um homem e uma mulher: "Aluno CFSd Gomide, primeiro pelotão: permissão para falar". "Com licença, gostaria de pedir baixa.""Desistir? Você quer ir embora?", perguntou a sargenteante (serviço administrativo), conhecida pelo rigor (na véspera, entregara-lhe um documento. Sem me olhar, envolveu com caneta vermelha a palavra "atenciosamente" e mandou reescrever as duas vias. "Não existe isso no militarismo." Deu uma bronca em um aluno que pedira dois dias de dispensa para casar. "Aqui tem regulamento! São oito dias!")."Quer ir embora, aluno?", perguntou o outro, careca e brincalhão, surpreso."Sim, senhor.""Tem certeza?"O tom dos dois era de atenção e respeito. Queriam me ajudar e me convencer a ficar."Sim, senhora.""Pensa bem... Mas por quê?", insistiram."Tenho uma proposta de trabalho melhor.""Por que não espera publicar seu nome incorporado e tranca matrícula? Pode voltar em até dois anos... Deus queira que isso não aconteça, não vai acontecer, mas vai que o trabalho aí fora dá para trás, você vai ficar com o quê?... Vai fazer o quê com o mês que ficou aqui? Espera publicar e aí tranca. Não é melhor assim?", perguntou o sargento, com boa vontade. "Sim, senhor.""Então, vai lá, sai daqui, seu narigudo!", disse, rindo.Voltei ao pelotão e fomos distribuídos pelo quartel para faxina. Coube-me recolher lixeiras de plástico, subir e jogar o lixo na caçamba de um caminhão. Recolhemos 13. De algumas, escorria chorume. "Você está fazendo o quê aqui? Vem da zona sul, podia estar na praia agora. Nunca viu lixo de perto, hein? A empregada é que limpava...", ria um colega.Quando voltei à sargenteante, um aluno esperava para ser atendido. "Deixa eu resolver a situação do "defunto" aqui... Você sabe que agora é defunto, né?", e apontou um quadro-negro. Sob o título "Cemitério", havia o desenho de um crânio, e os números de quatro desistentes do curso, ao lado de uma cruz, simbolizando a "morte".Eu era o quinto. Um ex-fuzileiro naval, forte e com quase dois metros de altura, acompanhou-me até o recrutamento.
Sem computadores
Reparei que a sala tinha infiltrações nas paredes e no teto, rebocos caindo e teias de aranha. Vislumbrei uma barata na pilha de documentos e três cadeiras quebradas -o estofamento estava rasgado. Ouvi a voz de uma tenente, irritada. "Como tantas pessoas ficaram nessa imundície? Me admira a coronel ficar tanto tempo nessa podridão!"Sem computadores, fiz a declaração de desistência de próprio punho. Um residente de enfermagem, aprovado no concurso para a segunda turma, entrou na sala e perguntou se poderia começar o curso e trancar matrícula, para concluir a especialização. "Quero muito ser policial", explicou. "É querer muito, você é louco, mesmo", riu uma sargento.O rapaz vai embora. Termino a declaração e recebo meus documentos de volta. "Viu lá, os PMs da cerveja? Que vergonha! Aí a gente fala que é PM e todo mundo olha torto, acha que é safado. Chega com carro novo, comprado em mil prestações, já olham: "Ladrão'!", comenta a policial. "Boa sorte!"De volta à companhia, passei por seis colegas de pelotão, que limpavam a área perto do campo. "É sério mesmo, cara, vai sair?" Deram-me um abraço e falaram para não perdermos contato. Na companhia, despedi-me dos dois sargentos."Vai com Deus e sucesso", desejou a sargenteante, batendo de leve em meu ombro."Meu amigo, boa sorte, vai com Deus! Lembre só das coisas boas da PM, esqueça as ruins. Não fale mal da PM, fale só as coisas boas, as ruins esqueça!", disse o sargento careca, sorrindo, como sempre. Eu estava em posição de sentido. "Pára com isso, você não é mais militar, não!""Defunto" encomendado, senti-me livre. Durante 23 dias, vivi como PM. Quando saí da companhia, pelo atalho antes proibido, restavam 454 alunos na turma do Curso de Formação de Soldados 2008.
11 - "A gente sabe tudo!"
Candidato passa por investigação minuciosa, e polícia pergunta sobre seus antecedentes até a porteiro
DA SUCURSAL DO RIO
Raphael, um sargento veio perguntar por você. Vai entrar para a PM, é?", questionou o porteiro, quando cheguei de viagem em setembro. "Fique tranqüilo: falei que você é jornalista conceituado."Achei que estava encerrada minha chance de fazer o curso de formação da PM. No "Inventário de Pesquisa Social", 15 folhas, escrevi ser formado em Comunicação e trabalhar na "Folha da Manhã S.A.", mas evitara o termo "repórter".Com uma foto ampliada, o PM à paisana perguntara sobre mim na rua. A diligência visa a identificar a "ambiência social" e se o candidato é criminoso, encrenqueiro ou usa drogas. Só meu irmão estava em casa. Em certos casos, falam com os pais e vêem até o quarto.Outro porteiro, José, tentou me demover. "Vai ser mesmo PM, é? Tá maluco, homem?" Tinha certeza de que me interrogariam sobre a profissão. Mas, na entrevista rápida, o sargento só confirmou dados e fez uma ou outra pergunta, nada sobre eu ser jornalista.Tive mais duas entrevistas: "Por que quer ser PM? Vai a baile funk? Alguém na família preso? Parentes na PM? Drogas? Nunca? Nunca mesmo? Tem arma de fogo?"
Teste de paciência
O inventário que preenchemos nas arquibancadas de um ginásio na seleção tem nossa foto 5 por 7 na capa, com o aviso: "Seja sincero, pois o que responder será investigado posteriormente. [...] Sua honestidade poderá torná-lo um PM".É a primeira etapa da investigação da vida e de antecedentes. Depois, apresentamos certidão de "nada consta" criminal, do Serasa e SPC (serviços de proteção ao crédito), além de oito "declarações de idoneidade (boa conduta)" de pessoas segundo as quais sou "cidadão honesto, trabalhador, de idoneidade inquestionável, acima de qualquer suspeita"."Não ache que vai enganar a pesquisa social. Não invente. A gente sabe tudo! Quem omite, está escondendo, será reprovado. Fumou maconhazinha há quatro anos, escreve! A gente descobre. Seu amigo é que vai te entregar."Cavanhaque, camisa aberta revelando cordão de ouro, o sargento grita. "Quis entrar para a PM? PM é "créu". Fez prova sem carteira de motorista [ríspido]? Está no edital. Não tem, está eliminado."Mostram foto de rapaz com submetralhadora. "Era candidato. Outro foi preso três vezes em Portugal e achou que fosse entrar aqui." Um rapaz me revela: "Apaguei o Orkut (um dos itens) ontem, fiz um novo."O candidato responde, entre outras coisas: se já teve parentes ou vizinhos presos ou envolvidos em contravenção ou drogas; passagem pela polícia; quantas vezes usou droga e o motivo; se tem tatuagem e o significado; por que se inscreveu e a opinião da família; se trabalha em atividade informal ou transporte alternativo."Se tem milícia, ponho?", perguntam. "Milícia e tráfico são iguais, só troca a fantasia."O concurso é um teste de paciência. Do exame intelectual à incorporação foram sete meses de processo e 18 idas ao Centro de Formação, a 45 km da minha casa, na zona sul.Na seleção, tínhamos hora para chegar (entre 7h e 7h30), mas não para sair. Podia demorar duas, três horas ou o dia inteiro, dependendo da burocracia, da fila, da classificação, da parada para almoço dos PMs...Uma vez esperei três horas para tirar impressões digitais, após ir para o fim da fila por dever comprovante de residência. "Não faz essa cara, não! Nem entrou e já está reclamando!", repreendeu-me uma sargento.Muitos se queixavam de faltar ou se atrasar no trabalho. Outros de ter de ir só pelo resultado de uma etapa. "Bastava pôr na internet."Houve atrasos no calendário. Em agosto, a previsão de incorporação era outubro. Depois ouvimos que seria em novembro, em 7 e 20 de dezembro. Em 10 de dezembro, nos avisaram que seria em janeiro, mas ainda voltaríamos no dia 27, para inspeção de barba e cabelo e pegar o RG da PM.
Resistência familiar
O gerente jurídico de uma construtora, advogado de 24 anos, ficou entre os cinco primeiros colocados. Terno e gravata, cabelos louros compridos, chamava a atenção na seleção."Sempre quis ser policial." Pretendia ser oficial ou delegado federal. "Não adianta, não gosto de direito imobiliário." Já não tinha desculpas para o chefe pelas faltas e atrasos. "Carro do pai bateu, dengue..." Convenceu o patrão, mas perdeu a namorada, advogada. "Acha que estou andando para trás. É preconceito." Abandonou o treinamento no segundo mês.Principalmente entre jovens de classe média -mas também entre outros-, a resistência da família é motivo de desistências do curso.Boa parte dos recrutas não pretendia seguir carreira como soldado, vista como emprego provisório. Com salário baixo e alto risco, a PM é trampolim para concursos mais estáveis e bem remunerados. Entre os 450, havia classificados até a 1.700ª colocação, devido a reprovações e desistências.Aprovados no concurso de nível médio, muitos são formados ou cursam faculdade; há grande número de ex-militares e militares temporários.A PM firmou convênio com uma faculdade particular e criou um curso de direito na sede da Academia de Polícia Militar Dom João 6º, no centro de formação. Com desconto de 40%, o custo mensal cai para R$ 211,84.Um ex-fuzileiro, aluno de direito, recomendou: "Não fica nessa não, cara! Eu não vou ficar aqui muito tempo. Quero sair o quanto antes. Estudar, fazer concurso."O uso da carteira policial como salvo-conduto é um "salário indireto". "Tem gente que dá "carteirada" com a identidade do curso e até com a foto 3 por 4 para não pagar boate, é brincadeira? Um do meu concurso não pagava nada: ia ao cinema e jantava de graça com a namorada. Usa-se a carteira muito mais na folga. Com a farda, você é "o cara", ninguém nega nada", diz um cabo. (RG)
12 - PM de algemas
Para antropóloga, sociedade vê corporação como "a Geni do serviço público", mas mandatos dos policiais são um "cheque em branco"
DA SUCURSAL DO RIO
Estado ambulante" e principal tomador de decisões, o policial militar vive a insegurança de ter um "mandato" indefinido, "um cheque em branco", ao mesmo tempo em que é submetido a pressões e desautorizado a todo momento. A avaliação é da antropóloga Jaqueline Muniz, professora do mestrado em direito da Universidade Cândido Mendes, no Rio, e autora da tese de doutorado "Ser Policial É Sobretudo uma Razão de Ser" (trecho da "Canção do Policial Militar").Para ela, o policial vive no "limbo", na indefinição do que pode ou não pode fazer, e o saber aprendido no cotidiano da rua não é levado à escola.Muniz considera que comentários de PMs do curso demonstram "sensibilidade crítica e política, lucidez".Para ela, o problema está no "mandato em aberto, que torna o PM mais vulnerável que o bandido". A ausência de regras aumenta a violência e dificulta o controle da polícia."É um cheque em branco, de que cada um se apropria e preenche como deseja, porque o mandato não está normatizado de maneira clara.""Até onde vai o mandato do policial? O PM é o tempo todo desautorizado e não está preparado para tomar decisões. Na ausência de clareza, ele se sabe inseguro, e todo uso de força é considerado violência. Aí tende a agir com mais força que o necessário. Quanto menor a confiança, mais violência. O mandato do policial está foragido."Para ela, os PMs são violentos "não por serem facínoras", mas porque não há política de uso da força. "A violência é uma resposta. Quem se responsabiliza? O que aceitamos? Achamos que o PM é faxineiro social, a "Geni" do serviço público. A corrupção acontece, na definição sociológica, que é de desvio do mandato público."As pressões políticas e o assédio, diz, empurram os policiais para a irregularidade, a barganha e os negócios informais. "Não há "accountability" [prestação de contas]. Como posso responsabilizar alguém se as regras do jogo estão abertas? O policial tem vários patrões, e cada procurador foge com sua procuração. Estão abertos ao improviso. O PM se preocupa se está agradando ao coronel, à milícia, ao político. Vive entre a cruz e a caldeira. Indigente, mendicante, a polícia recebe migalhas para continuar dependente."
Descontrole
A antropóloga afirma que a situação deixa os PMs "algemados" e gera descontrole."Quem tem controle? O secretário? O governador de fato manda? É a privatização do mandato: o PM é o Estado ambulante nas ruas. Quando atira, é o governador atirando. Tem de ter autonomia diante dos grupos de pressão para prestar contas e não ser vulnerável. Ou fabrica saldos operacionais para salvar a carreira. Alguém nega o pedido de um policial? Ninguém melhor que o agente da lei para o governo paralelo."Pela ausência de regras objetivas, explica Muniz, os mecanismos de controle interno da corporação "são muito mais decorativos que funcionais". "Não tem termos concretos. Por mais que a Corregedoria e a Ouvidoria possam agir, esbarram na ausência de regras."Na opinião da pesquisadora, "ignora-se que o policial da esquina é o principal tomador de decisões". "É visto como soldado, e não como executivo de Segurança Pública. Negamos sua autoridade e discricionariedade. Tem de decidir instantaneamente: "Atiro ou não, recuo ou avanço?". São decisões que não se adiam. E, quando se nega essa autoridade, esse PM é o mais frágil, inseguro."
13 - Sprint final
Em meio a pistas esburacadas, saltos, corridas e flexões surtem efeito e mostram evolução física do repórter
DA REDAÇÃO
A rotina de ordem-unida e exercícios faz efeito, mostraram avaliações físicas feitas com intervalo de 22 dias. Embora resultados sejam mais precisos após três meses, evoluí em quase todos os quesitos. Meu percentual de gordura caiu de 21,5% para 17%; perdi 4,4 kg de gordura e ganhei 3 kg de músculos; diminuí 16 cm na soma de 12 medidas, sendo 4 cm no abdome e 2,5 cm no tórax. Os 700 g a mais foram em peso magro, explicou Tércio de Faria Martin, responsável pela avaliação. Passei de 28 para 40 flexões, elevando a resistência muscular de "regular" para "boa" -excelente, só 45. A força abdominal se manteve no grau máximo, e a flexibilidade evoluiu de "média" para "grande". Na primeira aula de educação física, fizemos alongamentos, cem polichinelos, 30 flexões e 90 abdominais antes de correr 35 minutos -de 4 km a 5 km. Foi a primeira vez em que corri tanto tempo na vida e cansei, mas completei. O tenente instrutor, ex-fuzileiro naval, ganhou apelido de He-Man, pelo abdome definido como o do personagem. As corridas aumentaram para 40 minutos. Aquele que parava sem motivo de contusão era "anotado", para eventual punição. Uma vez, o comandante do Corpo de Alunos do centro, um jovem major, juntou-se à tropa. "Não corro isso há cinco anos." Pediu a um ex-militar para não puxar canções do Exército -com alusão a morte e destruição-, só da polícia. "Sem ressentimentos, mas não é conveniente." Começáramos a entrar em forma para a prova física, no concurso. "Bem-vindos! Vamos comemorar a aprovação com flexões." Tinha sido preciso superar idiossincrasias, a pista esburacada e a agressividade da vira-lata Pretinha. O sargento prometera "esculachar" quem não fizesse duas barras e deu dica para correr 100 metros em 16 segundos. "Pensa que a mulher está te chifrando lá." Suspensos na barra, braços esticados, são duas repetições, sem impulso, na primeira prova. Parece fácil, mas muitos reprovados ficam nessa fase. Treinara uma vez, na véspera, e conseguira. Na hora, porém, diante de três PMs, fiquei tenso e fiz a segunda esticando o pescoço. "Aprovado!" Vêm as 15 flexões, "cotovelos colados ao corpo", muitas vezes ignoradas. "Faz direito, cotovelo junto ao corpo! 12, 12, 12..." Um aluno desistiu após 23 flexões -refez todos os exercícios, 20 dias depois. "Pô, sargento!" "Candidato, não conteste!" Fiz 21 flexões para ser aprovado. A concentração é difícil com Pretinha avançando nos candidatos durante flexões. "Cachorro maluco!" O salto em altura foi drama dos baixinhos e incógnita para a maioria. O 1,10 metro parecia mais alto que imaginávamos, mas, com alguma coordenação, eu e a maioria passamos de primeira. Torcíamos pelo sucesso alheio. "Sem vibração!", reclamavam os PMs. Alguns ficam até a terceira tentativa. Ruço derrubou o sarrafo duas vezes. "Porra, caralho!", vibra, ao passar na terceira, aplaudido. "Tá maluco? Palavrão?", repreende o major. "Desculpe...", respondeu. "Não tem desculpa, não!" Sem saber o que fazer, prestou continência. "Tu é [sic] militar pra prestar continência? Pára com essa porra!"
"Se vira!"
Um rapaz balbucia algo. "O problema é seu! Se vira!" Salta o sarrafo, na terceira vez, pés juntos, mas o sargento grita, quase satisfeito: "Reprovado! Na terceira tentativa! Tá de sacanagem!" As etapas finais eram 100 metros em 16 segundos e 2 km em 12 minutos, minha preocupação. Treinara quatro vezes e conseguira. Fiz os 100 metros em 13s80, mas forcei e senti as pernas pesadas. Descansei menos de cinco minutos antes dos 2 km. Aí foi um sofrimento. Corremos em forma, em meio a um vendaval. O voluntário para liderar o grupo fez a primeira volta de 400 metros em 1min45s, em vez de 2min15s, como sugerido. Foi demais para meu precário preparo físico: fiquei para trás e achei que não completaria a tempo. Caminhei duas vezes para retomar fôlego rumo ao "sprint" final. Fui o penúltimo a terminar, aliviado, logo atrás de cinco outros, em 11min29s, a 31 segundos do limite. Por último, chegou um professor de matemática, em 11min58s. A ambulância e os paramédicos não foram acionados. Suados e cansados após os exercícios, só 20 tomaram banho: a água do único e malcheiroso banheiro acabou. Estirados no chão, esperando mais uma burocracia, alguns cochilavam. O major acorda um: "Monstro, tá babando!". Para um barbudo, pergunta: "Quantos anos você tem? 28? Parece 40!". Passa por rapaz com cabelo curto e topete. "Fala, alça de boquete!" "Esse major é maluco. Veja o olhar dele, sinistro, cara de maluco. Falou que já ficou no "psicodoido"." (RG)
14 - Corporação não atende reportagem
DA SUCURSAL DO RIO
A Polícia Militar do Rio não comentou a reportagem até o fechamento desta edição, na quinta-feira. A Folha fez o primeiro pedido de informações sobre a formação de policiais à assessoria de comunicação da PM em 12/3 e foi orientada a enviar e-mail.Embora sem informar a participação no treinamento, foi explicado que o jornal preparava reportagem sobre o tema. As 11 questões diziam respeito ao curso, à carreira na corporação, ao "bico", a números da Corregedoria sobre prisões, expulsões e punições de PMs.Desde então, sob diferentes razões, a reportagem recebeu sucessivamente novos prazos quando telefonava para pedir as respostas.Tentou obter os dados diretamente com cada setor da corporação, sem sucesso.Na segunda passada, novos contatos por telefone e e-mail foram feitos, falando do interesse e da urgência. Acrescentou-se solicitação de entrevista com o comandante-geral da PM. Os pedidos foram feitos diariamente até a quinta passada. Nesse dia, o repórter falou com o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, que determinou a assessores contactar o Estado-Maior da PM, pedindo resposta e entrevista.Sete perguntas foram respondidas por e-mail. A assessoria da Secretaria de Segurança pediu o nome completo do repórter e informou que o comandante-geral da PM, coronel Gilson Pitta, concederia entrevista, após verificar a ficha e os dados do jornalista na PM, o que não aconteceu até o fechamento da edição.
15 - "DECÁLOGO" POLICIAL É LIDO AO MICROFONE DA SUCURSAL DO RIO
O "decálogo" é um conjunto de normas básicas de policiamento ostensivo. Foi uma das primeiras aulas que tivemos, no segundo dia. Em muitas manhãs, no início da formatura, um aspirante ou aluno o lia ao microfone. (RG)
1. Verifique as condições de funcionamento da viatura (manutenção de primeiro escalão)
2. Atente para o funcionamento e a perfeita utilização dos aparelhos de comunicação
3. Examine o armamento e o equipamento e tenha responsabilidade em seu emprego
4. Aborde e reviste quaisquer suspeitos, observando sempre as normas de segurança
5. Utilize as técnicas de abordagem de pessoas, veículos e de ações em edificações
6. Comunique abordagens, revistas, deslocamentos e assunção de ocorrências ao Comando de Operações
7. Permaneça atento a toda movimentação ao seu redor, principalmente quando for necessário estar no interior de cabines, DPOs [destacamentos de polícia ostensiva], PPCs [postos de policiamento comunitário]; se em viaturas, um companheiro deve proporcionar a devida segurança ao outro
8. Efetue acompanhamento de veículos suspeitos de forma técnica e tranqüila. Utilize o rádio da viatura para possibilitar o cerco
9. Seja educado e cortês no tratamento com as pessoas. Atitude não é sinônimo de grosseria
10. Lembre-se de que a perfeita execução do serviço refletirá no seio da sociedade, de sua família, perante seus superiores hierárquicos e no círculo de seus pares