Notas sobre a dívida pública no novo período de acumulação brasileiro Introdução
O novo período de acumulação brasileiro iniciado em 1990, moldado pela abertura financeira, comercial e privatizações, reincorporou, após a crise da dívida externa da década de 1980, o sistema financeiro nacional aos mercados financeiros globalizados. Isto permitiu um intenso processo de integração econômica pela troca de investimentos diretos e de portifólio (ações e títulos) entre a burguesia local e a internacional, que não só ampliou a aliança entre elas, mas também consolidou a fração ligada diretamente às finanças como o setor hegemônico da burguesia local.
O objetivo desta reflexão é apontar alguns elementos que permitam entender como a dívida pública tornou-se um dos pilares da dominação burguesa no novo período de acumulação brasileiro.
Para tanto, esboçaremos alguns traços da evolução e do papel do sistema financeiro no capitalismo. Em seguida, analisaremos a trajetória, a composição e a ordem de transferência de recursos da dívida pública brasileira. Passaremos então a analisar mais detidamente o perfil dos detentores da dívida pública e algumas modificações que a administração da dívida provocou no Estado brasileiro. Finalizaremos apontando as estratégias usadas pela burguesia para a ampliação do apoio político à manutenção da dívida púbica.
Globalização e o capital portador de juro
Se um capitalista empresta dinheiro para colocar em curso um processo de produção que extrairá mais-valia da mão-de-obra empregada, passa a ter que destinar parte desta mais-valia ao capitalista que emprestou o dinheiro, a título de pagamento de juro.
A possibilidade de se apropriar de parte da mais-valia por meio do juro passa, com o desenvolvimento do sistema financeiro, a dar o parâmetro básico para as decisões da forma de valorização do capital.
As decisões de investimento e produção, segundo KEYNES (1982), são tomadas ao se comparar a chamada eficiência marginal do capital (expectativa de receita da produção de um bem durante um período de tempo) com a taxa de juros (expectativa de recebimento de juros de uma aplicação financeira durante o mesmo período de tempo). Com isso, o capitalista valorizaria seu capital na forma produtiva, colocando suas máquinas e mão-de-obra em funcionamento, apenas se a eficiência marginal daquela produção superasse a taxa de juros a ser recebida da aplicação financeira comparada [1].
A forte influência no estabelecimento deste parâmetro básico para o funcionamento do capitalismo confere, por si só, grande poder à fração da burguesia que negocia o próprio dinheiro. Historicamente este poder foi reforçado pelo volume de recursos que passa a controlar com a expansão internacional dos mercados financeiros (títulos) e das Bolsas de Valores (ações); pelas relações políticas advindas de empréstimo aos Estados nacionais (POLANYI,1996) e a todo o sistema produtivo capitalista; e, por fim, pelo aumento da participação de títulos e ações na composição da riqueza das famílias e empresas, processo conhecido por financeirização (BRAGA,1993 e 2000) , envolvendo outros segmentos da sociedade nos ganhos financeiros.
Na estruturação e desenvolvimento do capitalismo, a dívida pública assume especial importância (NAKATANI, 1999 e 2006). Para os estados nacionais emissores, a exemplo da dominação imperialista inglesa e norte-americana (BELLUZZO, 1995), a dívida pública torna-se uma fonte de poder político quando conseguem impor internacionalmente sua moeda como referência de toda e qualquer forma de riqueza. Já para os detentores da dívida, esta assume o papel de uma inesgotável fonte de acumulação privada e de pressão política sobre os emissores. É sobre a ótica dos detentores que passaremos a analisar a importância da dívida pública brasileira para a burguesia local e internacional.
Trajetória e composição da dívida pública no Brasil no novo período de acumulação
Qual foi o comportamento da dívida pública brasileira no período de acumulação iniciado em 1990? Quem foram seus emissores e qual foi a ordem de valores envolvidos?
Tomando como referência o conceito de Dívida Líquida do Setor Público [2] (DLSP), constatamos que a dívida pública brasileira saltou de US$ 144 bi, em 1991, para US$ 428 bi em 2005 [3]. Este extraordinário crescimento é derivado da constante elevação da dívida interna.
A dívida externa cai de US$ 91 bilhões, em 1991, para apenas US$ 21 bi em 2005. Sua trajetória é marcada pela brusca elevação de patamar em 1998, devido ao programa de ajuda do FMI, e pela diminuição em 2005 com o pagamento antecipado do mesmo.
Já a dívida interna salta de US$ 53 bilhões, em 1991, para nada menos que US$ 407 bilhões em 2005. Sua trajetória apresenta três sub períodos: o primeiro é o do aumento constante entre 1991 e 1998, devido ao elevado patamar de juros internos; o segundo, de relativa estabilização, vai de 1999 a 2002; o terceiro inicia-se em 2003, onde a manutenção de elevado patamar de juros volta a imprimir uma trajetória de crescimento à dívida interna.
Neste ponto cabe analisarmos quais foram as instâncias públicas responsáveis pela crescente elevação do patamar da DLSP.
Analisando a composição da dívida interna pela ótica de seus emissores, notamos que, em 1991, as estatais e os governos subnacionais (estados e municípios) tinham maior participação no estoque da dívida pública, reflexo dos ajustes da política econômica recessiva da década de 1980.
A partir de 1995, o âmbito federal passa a liderar e elevar sua participação na dívida pública interna. Seu estoque decresce entre 1998 e 2002, devido a desvalorização cambial, e volta a se elevar a partir de 2003. Estados e municípios mantiveram, em menor grau, a mesma trajetória do âmbito federal (a despeito da transferência de suas dívidas para o governo federal na renegociação que envolveu a aprovação da emenda constitucional para a reeleição em 1997). Já as empresas estatais apresentaram uma trajetória decrescente durante todo o período, fruto de seus ajustes patrimoniais decorrentes do processo das privatizações.
Portanto, a análise da trajetória da dívida pública mostra a determinação da dívida interna, cujo principal componente foi a dívida emitida pelo governo federal.
Transferência de recursos pela dívida pública
Se partirmos do fato de que a dívida pública é paga com a arrecadação de impostos e tributos que o Estado faz sobre toda a sociedade (sem entrar no mérito de quais classes ou extratos de renda são mais intensamente atingidos pela tributação), surgem imediatamente dois importantes questionamentos. O primeiro seria sobre a dimensão da transferência de renda que a dívida pública no Brasil promoveu. O segundo seria sobre quem se beneficiou do aumento e da transferência de renda da dívida pública. Neste tópico abordaremos o primeiro questionamento.
Ao analisarmos o pagamento de juros nominais acrescidos da variação cambial pelo conceito de Necessidade de Financiamento do Setor Público [4] (NFSP), constata-se que, a partir de 1998, o pagamento de juros assume um patamar anual acima de R$ 100 bilhões, com os picos de 1999 (R$ 144 bilhões), 2002 (R$ 224 bilhões) e 2005 (R$ 153 bilhões). Somados, os pagamentos de juros entre 1995 e 2005 passam de um trilhão de reais (mais precisamente R$ 1,20 trilhões).
Outro método de dimensionarmos a intensidade da transferência de recursos através da dívida pública é analisar o pagamento de juros como proporção do PIB. Entre 1995 e 2005, pagou-se uma média anual de 8,56% do PIB brasileiro para os detentores da dívida pública. Nos anos de pico da dívida pública, 1999 e 2002, o pagamento de juros chegou à estratosférica cifra de 13,76% e 14,25% do PIB, respectivamente.
Portanto, a dívida pública brasileira desempenhou o papel de um mecanismo que promoveu uma gigantesca transferência de recursos para os detentores da dívida. Passemos a abordar a questão de quem controla e se beneficia da dívida pública no Brasil.
Perfil dos detentores da Dívida Pública
Quem são os detentores da dívida pública brasileira? Qual a importância ou participação relativa desta última no ativo total de seus detentores?
Uma primeira aproximação para identificar aqueles que se beneficiam da dívida pública pode ser feita analisando o perfil dos compradores dos títulos federais em ofertas públicas. Tomando o critério de nacionalidade, percebemos a predominância das instituições financeiras nacionais diante das internacionais. Entre novembro de 2000 e agosto de 2006, as instituições financeiras nacionais responderam por uma média de compra da ordem de 67,6% das ofertas públicas.
Na análise dos compradores nacionais de títulos, percebe-se a esmagadora participação dos bancos comerciais (responsáveis pela média de compra de 55,3% do total das ofertas públicas de títulos), seguido ao longe pelas corretoras (média de 7,84%) e pelos bancos de investimentos (média de 4,46%).
Entretanto, apesar da análise dos compradores em oferta pública ser uma boa indicação de quem detêm a dívida, faz-se necessário debruçarmo-nos sobre os dados disponíveis de estoque, já que um agente pode adquirir um título na oferta pública e negociá-lo no mercado secundário.
Os dados do Banco Central (Bacen) sobre o estoque da dívida pública federal em poder do público, maior componente da DLSP, mostram um salto de R$ 537,5 bilhões, em junho de 2001, para a casa de R$ 1 trilhão, em agosto de 2006.
Para nossa análise, reagruparemos os detentores dos títulos públicos federais em poder do público em cinco categorias: Bancos (carteira própria), Fundos de Investimento Financeiro [5] (FIF), Demais Clientes (pessoas físicas, pessoas jurídicas não financeiras, etc.), Títulos Vinculados e Títulos Extra-Mercados.
Constatamos que entre junho de 2001 a fevereiro de 2003, Bancos e Fundos de Investimento não só eram os maiores detentores da dívida pública federal, como o eram em montantes similares, na ordem de R$ 213 bilhões cada. A partir de março de 2003, ambos elevam seus estoques de títulos, para R$ 317 bilhões, no caso dos Bancos, e para R$ 497 bilhões, no caso dos Fundos de Investimento.
Mas qual a importância e o peso da dívida pública para a valorização dos maiores detentores da dívida pública brasileira?
Analisando a composição dos ativos dos Bancos brasileiros [6], constatamos que a categoria que engloba os títulos da dívida pública (Títulos de Valores Mobiliários – TVM e derivativos), segundo dados do Bacen, salta de R$ 76 bilhões em 1995 para 413 bilhões em 2005, perdendo, em termos absolutos, apenas para as de créditos e arrendamentos mercantis.
Em termos relativos, a categoria que abarca os títulos públicos passa de 16,4% do ativo total dos bancos para nada menos que 26,5%, um salto de 10 pontos percentuais entre 1995 e 2006, a única categoria relevante de seus ativos que aumentou a participação relativa, sugerindo uma importância razoável da dívida pública nos ganhos do sistema bancário.
Tabela 1 – Fundos de Investimento - Composição da carteira como % do PL - anual
Já análise da distribuição das aplicações dos Fundos de Investimento, a partir de dados da Associação Nacional dos Bancos de Investimento – ANBID (Tabela 1), mostra que a soma da participação de todas as categorias de aplicações que envolvam títulos da dívida pública (operações compromissadas lastreadas em títulos públicos, títulos públicos federais, estaduais e municipais) representam, em média, mais de 73% do total de suas aplicações como proporção de seu Patrimônio Líquido entre 2000 e 2007.
Portanto, os dois maiores detentores da dívida pública brasileira são o sistema bancário nacional e os Fundos de Investimento, sendo que a participação relativa nos ativos dos Fundos de Investimento é muito mais acentuada (média de 73% entre 2000 e 2006) do que a do sistema bancário (média de 27% entre 1995 e 2006).
Estratégia de ampliação de apoio político e o direcionamento do Estado brasileiro
Após apontarmos que o crescimento da dívida pública federal se deu a favor do sistema bancário e dos Fundos de Investimentos, podemos nos debruçar na análise de algumas das estratégias desta fração da burguesia local na ampliação do apoio político na sociedade e na modelagem do Estado para garantir o crescimento e pagamento da dívida pública.
No que cabe às mudanças sofridas pelo Estado brasileiro, a fim de atender aos interesses da fração burguesa que controla a dívida pública, a primeira estratégia implementada foi a mudança no perfil dos quadros dirigentes da instituição chave na administração da dívida pública, o Banco Central. Nos últimos 15 anos, seus presidentes passaram de eminentes acadêmicos (Pedro Malan, Pérsio Arida e Gustavo Franco) para grandes operadores do mercado financeiro internacional, como foi o caso de Armínio Fraga (03/1999 a 12/2002), durante seis anos Diretor Gerente do Soros Fund Management LLC em Nova York, e Henrique Meirelles (2003 até a atualidade), ex-presidente do FleetBoston Global Bank e ex-presidente mundial do BankBoston entre 1996 e 2002.
A segunda estratégia de modificação estatal foi a definição da administração da dívida pública (trajetória como proporção do PIB [7]) como parâmetro para a definição da política econômica brasileira (BUENO, 2006). O superávit primário é institucionalizado no processo orçamentário do Governo Federal, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), a qual passa a definir os gastos sociais somente após separar a parcela que será usada para o pagamento da dívida pública. Além disso, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, aponta no mesmo sentido, ameaçando estados e municípios, bem como seus responsáveis, com penalidades que vão da retenção de repasses federais à prisão, caso não produzam superávits.
Uma mescla de mudança no Estado e ampliação do apoio político à dívida pública veio da questão inflacionária. Na década de 1980 e início da de 1990, o processo inflacionário acarretava a transferência de renda dos trabalhadores (salários não convenientemente indexados) para a burguesia que aumentava constantemente os preços de seus produtos e serviços.
O Plano Real, grande trunfo da eleição de FHC em 1994, controlou a inflação pela estabilização da taxa de câmbio (cuja variação até então se transmitia ao conjunto dos preços internos), apoiada na atração de capitais internacionais com o pagamento de elevadas taxas de juros que aumentou o estoque da dívida pública. Esta arquitetura alterou o mecanismo de transferência de renda da inflação para o pagamento vultuoso de juros [8].
No que tange à estratégia da burguesia local para ampliar a sustentação política do crescimento e centralidade da dívida pública, destaca-se a incorporação de parte da sociedade na dependência do bom funcionamento do mercado financeiro e dos ganhos com a dívida pública.
A mais abrangente forma de solidariedade imposta aos trabalhadores para com a dívida pública foi o desenvolvimento do sistema privado de previdência complementar, na figura dos chamados Fundos de Pensão. Atualmente, segundo dados da Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social, mais de seis milhões de pessoas têm suas aposentadorias ligadas diretamente ao desempenho financeiro dos Fundos. Estes, por sua vez, ligam-se à dívida pública, diretamente, com mais de 12% de seus ativos totais nestes títulos e, indiretamente, com mais 10% de seus ativos em Fundos de Investimentos. Ademais, em torno de 47% das aplicações encontram-se em instituições financeiras, as quais também se valem da dívida pública.
Outra estratégia ainda incipiente em número de participantes, mas com grande potencial de ampliação, devido a seus baixos custos, é a venda direta de títulos da dívida a pessoas físicas, iniciada no ano de 2002, quando o Tesouro Nacional, em conjunto com a Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC), implementaram o programa Tesouro Direto.
Em setembro de 2006, segundo dados do próprio Tesouro Nacional, haviam 67.613 pessoas cadastradas para a compra de títulos via Internet, sendo que de janeiro de 2002 a agosto de 2006 os mesmo adquiriram um total de R$ 1,92 bilhões em títulos, com vendas concentradas (49,1% em setembro de 2006) na faixa de até R$ 2000 por operação. Se dentro do estoque da dívida pública, os títulos pertencentes à pessoa física são irrelevantes, no plano político abre uma sólida base de solidariedade com os interesses do mercado financeiro.
Conclusão
O governo federal foi o maior responsável pela ampliação da dívida pública brasileira, sendo que Bancos e Fundos de Investimento foram aqueles que mais participaram (com elevada dependência na composição de seus ativos) da aquisição e da transferência de recursos da dívida pública.
A considerável elevação do estoque da dívida púbica e o perfil de seus credores permitem explicar como e porque as políticas públicas foram direcionadas pelos interesses da fração burguesa que controla a dívida interna pública, bem como nos dá elementos para analisar as mudanças institucionais no Estado brasileiro dos últimos anos, a expansão dos Fundos de Pensão e a venda direta de títulos a pessoas físicas.
Qualquer perspectiva de mudança na ordem política brasileira implicará no enfrentamento direto dos interesses desta fração da burguesia local, e mudanças de prazo, remuneração e garantia de pagamento da dívida pública se colocam como itens obrigatórios neste enfrentamento político.
http://www.espacoacademico.com.br/074/74buenofabio.htm#_ftnref2--------------------------------------------
O aumento explosivo da dívida pública interna no período de 1993 a 2002 foi seguido por um grande aumento da carga tributária !
O custo de rolagem da dívida pública é o principal responsável pela alta carga tributária que os brasileiros pagam.
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