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Comunidade, utopia e realidade: uma reflexão a partir do pensamento de Zygmunt BaumanDaniel Soczek BAUMAN, Zygmunt. 2003. Comunidade : a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro : J. Zahar.A discussão de algum tema ou conceito em trabalhos eminentemente teóricos nas Ciências Sociais circunscreve-se a duas ordens de dificuldades. A primeira, relativa à revisão da discussão clássica a respeito do tema a ser debatido, necessita da retomada do pensamento dos autores clássicos, bem como de seus comentadores que discutiram, aprofundaram e propuseram desdobramentos diversos. Todos sabemos: uma boa revisão teórica exige um esforço considerável. A segunda ordem de dificuldades é realizar uma interlocução entre os clássicos e seus comentadores com os autores contemporâneos, de modo a explorar suas idéias, ponderar seus avanços e demonstrar seus limites, testando e avaliando a capacidade explicativa do argumento em termos práticos, o que exige uma apurada leitura crítica. Esses dois momentos, por si sós, constituem um importante progresso no debate teórico e como princípio para uma intervenção na prática social. Passar deles para um terceiro, sugerindo ou propondo novas formas de pensar um determinado recorte da realidade, é algo que poucos conseguem realizar e esse é o grande mérito de Bauman em sua mais recente obra traduzida no Brasil, intitulada Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.Raros pensadores conseguem dialogar com profundidade, coerência e simplicidade estilística com autores tão díspares como Kant, Heidegger, Tönnies, Rorty, Habermas, Beck e Hobsbawm – só para citar alguns nomes. Sem perder em profundidade e consistência lógica seu horizonte analítico, em pouco mais de cem páginas o autor traça, sob o pano de fundo teórico da tensão entre modernidade e pós-modernidade, uma importante reflexão sobre o senso de convivência em comunidade na alvorada do século XXI.O objetivo de sua discussão, expresso no título de sua obra, é oferecer luzes sobre as dinâmicas de convivências humanas em tempos de globalização, de modo inteligente, persuasivo e criativo. Já em suas primeiras linhas somos convidados a refletir a respeito do principal conceito de sua obra – a idéia de comunidade – não apenas e restritivamente em termos semânticos, mas também a partir da ideologia que o envolve, ou seja, a partir da pré-concepção acrítica desse conceito, que nos remete sempre à idéia de uma "coisa boa". Essa definição positiva a priori, sempre reafirmada e raras vezes questionada, é também expressa, na definição de Rosenberg citado no texto, como "círculo aconchegante", talvez por nos remeter, segundo a definição de Redfield, a um agrupamento "distinto, pequeno e auto-suficiente". Em uma concepção mais elaborada teoricamente, a concepção de comunidade segundo Tönnies e Heidegger relaciona-se à idéia de entendimento, não à de consenso, como bem frisado pelo autor.Entretanto, de onde viria essa percepção a priori positiva e positivada do conceito de comunidade? Seja na mitologia grega, seja na bíblica, a idéia de paraíso está ligada à idéia de inocência, de pertencimento a um grupo sem interesses individualistas. A perda desse paraíso está guardada em nossa memória; temos uma memória da felicidade que tínhamos e que não é mais passível de aceder e que se transformou em utopia. Existe em nós, se assim podemos dizer, portanto, um saudosismo atávico que reproduz e reinventa, no conceito de comunidade, a idéia do paraíso perdido, em que o senso de pertencimento fazia-nos sentir-nos "dentro do ninho", confortáveis e seguros. Por outro lado, comenta o autor, existe uma tensão entre essa utópica e almejada segurança com a idéia de liberdade, ainda que o último conceito não seja devidamente explorado pelo autor, permanecendo uma concepção de liberdade excessivamente imprecisa. Na medida em que a vivência em comunidade significa a perda da liberdade, esse processo acaba gerando uns dos dilemas mais significativos para compreensão das dinâmicas sociais da contemporaneidade. Paradoxalmente, almejamos e resistimos à segurança coletiva, em prol da liberdade individual.Entender as origens dessa tensão no contexto pós-moderno na tentativa de sugerir alternativa(s) a esse processo é o fio condutor dessa interessante obra. Em seus livros anteriores, Bauman tinha como preocupação entender e diagnosticar o século XX, em especial os últimos 50 ou 60 anos, ou seja, uma condição de vida pós-moderna destituída ainda, segundo ele, de uma visão de mundo pós-moderna. Em função de problemas de distinção desses dois termos, suas reflexões neste livro utilizam o conceito mais restrito de "modernidade líquida" – idéia que Bauman utiliza para expressar sua concepção de modernidade, que, para ele, adquiriu uma perspectiva "transbordante", "esvaída", em oposição ao conceito de "sólido" enquanto duradouro, dada a fluidez do mundo contemporâneo1. O avanço das discussões de Bauman neste livro – isso é importante frisar – está no fato de o autor localizar na Revolução Industrial e na formação do Estado-nação o processo de desconstrução da idéia de comunidade, estabelecendo com esses processos sociais, resultados e ápices do projeto da modernidade uma relação causal com os dilemas com que nos confrontamos hoje.Tomando de empréstimo as reflexões de Weber e Marx, Bauman vê como esses autores pensaram a separação e a conseqüente tensão entre os produtores e as fontes de sobrevivência, os negócios e o lar, que resultaram por um lado na busca livre pelo lucro, mas também, por outro, o rompimento dos laços morais e emocionais. Como conseqüência, temos, segundo o autor, duas tendências que acompanharam o capitalismo moderno: por um lado, "o esforço de substituir o entendimento natural pelo ritmo regulado da natureza, tradição personificada nas rotinas artificialmente projetadas e coercitivamente impostas e monitoradas" (p. 36). Por outro, a tendência de criar do nada um sentido de comunidade dentro do quadro de uma nova estrutura de poder, ou seja, a busca pela naturalização dos padrões de conduta impostos pelo processo de racionalização, "abstratamente projetados e ostensivamente artificiais" (p. 39). Temos, assim a exigência de um controle forte, porém difícil de realizar, cuja figuras emblemáticas, com relativo sucesso, são Ford e Taylor. Face às insuficiências das tentativas de manipulação e adequação dos trabalhadores às tendências mencionadas acima, oriundas do início do século XX, temos a emergência da idéia de desregulamentação sob uma dupla possibilidade. Normalmente analisada como uma relação única entre mercado e Estado, Bauman lança um novo olhar sobre o tema, vendo nele uma dupla mão: ele é também um processo entre mercado e trabalhadores. Como os custos da regulação dos trabalhadores é alto (necessidade de instrumentos de controle e capatazes), o sentimento de incerteza torna-se o mecanismo mais simples de dominação da classe trabalhadora. A incerteza quanto ao futuro do emprego, sua precariedade, faz com que a empregabilidade não seja assegurada nem pelo cargo que se exerce nem pela qualificação do trabalhador, nem por qualquer outro motivo. Em uma sociedade de risco, o medo vem "de dentro" das pessoas e não é mais necessário um panóptico externo.As conseqüências desses refinamentos históricos das formas de exploração, perpetuação e aprofundamento da divisão da sociedade em classes econômicas tem como resultado a formação de guetos, expressão extrema da negação do conceito de comunidade. Como afirma Bauman, se a idéia de comunidade foi destruída, a de comunitarismo como "pertencer a" continua uma demanda em nossa sociedade. Essa demanda estaria orientada, segundo o autor, nas duas formas de autoridades possíveis no mundo contemporâneo: a autoridade dos especialistas – geralmente a classe que tem acesso aos bens culturais – e a autoridade numérica – em que o conceito de identidade como categoria "mental", por oposição a uma categorização econômica que já não dá mais conta de explicar a realidade, procura estabelecer marcos explicativos que dêem conta da multiplicidade dos entes sociais.Essas grandes massas, indica o autor a partir de Hobsbawm, resultantes da desarticulação de sua organização em termos de comunidade, inventaram historicamente como substitutivo o conceito de "identidade", em que o pressuposto de ser diferente acaba gerando um processo de distanciamento, separação e divisão cada vez maior entre as pessoas. Argumenta Bauman que a dificuldade de trabalhar com essa categoria (identidade) está no fato de que não podemos, em um processo político, supor a superioridade ou a inferioridade de uns sobre outros. Mas também, tomando de empréstimo as reflexões de Taylor, devemos levar em consideração que o reconhecimento como igual é inaceitável – uma crítica direta à postura multiculturalista. Ainda que essa crítica proceda em termos de argumentação lógica, cremos que o universo identidário que é o ponto de partida para a organização de inúmeras organizações não-governamentais tem sido relevante para constituição de comunidades, ainda que com inúmeras limitações, nos moldes sugeridos por Bauman.Com relação ao primeiro grupo, ao contrário de e em paralelo às grandes massas, temos os poucos bem-sucedidos que não se importam com a idéia de comunidade – preferem o isolamento. Partindo do pressuposto da escolha racional, o autor afirma que o cálculo individual desses afortunados tem como resultado o entendimento de que não ganhariam nada permanecendo na comunidade. A auto-independência econômica contrapõem-se ao espírito de comunidade gerando o novo cosmopolitismo dos bemsucedidos, cuja carência da existência em comunidade é suprimida por uma concepção estética da sociedade em termos kantianos.O guetos constituem-se na materialização desse processo, e não obstante suas múltiplas formas e possibilidades, podem ser ordenados segundo duas macrodistinções: os guetos "voluntários" e os "verdadeiros". Em linhas gerais, lembrando Wacquant, os guetos caracterizam-se pelo confinamento espacial, combinado com a idéia de fechamento social, ou seja, a construção de uma homogeneidade dos "de dentro" e de uma heterogeneidade dos "de fora". A diferença entre ambos está no fato de que, enquanto nos guetos voluntários as pessoas "querem ficar" (condomínios fechados), nos guetos verdadeiros as pessoas "não podem sair" (favelas). O isolamento, em ambos os casos, perpetua e exacerba-se a cada momento. A vida no gueto não sedimenta a comunidade porque no primeiro caso amplia a individualização e no segundo, a partilha do estigma da humilhação –"ficar ao lado de outros sofredores" – só faz aumentar o ódio e vontade de não estar ali.Se esse diagnóstico da realidade é convincente e seus efeitos perversos são perceptíveis em nosso cotidiano, restam duas questões a serem respondidas: se podemos (em termos teóricos e práticos) e se devemos (em termos ético-morais) reconstruir a idéia de comunidade hoje, residindo aqui, talvez, a principal dificuldade teórica do autor neste texto, ou seja, a implementação prática do mesmo. Durante todo o livro, a disjuntiva entre liberdade e segurança (estar ou não em comunidade, com todos os bônus e ônus que isso acarreta) é apresentada taxativamente como uma impossibilidade de conciliação, de volta ao paraíso perdido. Entretanto, em seu último capítulo, quando critica o conceito de multiculturalismo e, mais precisamente, em seu posfácio, o seu discurso aponta para o dever de buscarmos essa conciliação, a partir de um discurso genérico fundado sobre conceitos como "responsabilidade" e "direitos humanos", sem argumentar como isso se realizaria. Entre as políticas de identidade (Taylor) e o Estado constitucional de Direito (Habermas), entre a segurança e a liberdade, existe a tensão, a dificuldade e a necessidade de pensarmos nossa ação orientada para a responsabilidade em relação aos direitos humanos de modo universal e também a ação em comunidade na defesa desses direitos. O problema levantado pelo autor e deixado em nossas mãos é pensar a possibilidade teórico-prática de efetivar essa proposta frente à realidade, a que não estamos determinados, mas condicionados – ou seja, a viabilidade da utopia. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICABAUMAN, Z. 2003. A sociedade líquida de Zygmunt Bauman. Folha de S. Paulo, 19.out., Caderno "Mais!", p. 5.