O problema destes exemplos (quer dizer, o problema não está no exemplo, mas em quem lê o exemplo e acha uma boa oportunidade de fazer um discurso simplista e generalista a partir dele) é que dão margem para quem queira fazer da excessão a regra.
Eu conheço bem de perto um caso por demais parecido com este: um cara que nunca morou na rua, mas que já morou em um barraco no qual as paredes eram de madeira e as telhas de amianto forrado com saco de lixo. Que foi expulso de casa pelo pai aos 9 anos e obrigado a abandonar a escola (ficando fora dela por nove anos) e que vendia bala nos ônibus do Rio, tirava 20 reais de lucro num dia, 5 reais no outro, prejuízo de 15 no seguinte; às vezes tinha sua mercadoria (jujuba, balas de manga, barras de chocolate) apreendida por policiais...
E que lá pelos 21 anos voltou a estudar (tinha parado na sexta série). Se inscreveu numa escola noturna com séries semestrais. Nesta escola as aulas duravam apenas 2 horas por dia e faltavam professores até para matérias curriculares (não teve aulas de História na sexta série, nem de Geografia na sétima, nem de Inglês em ano nenhum). Entretanto dois anos depois ele prestou vestibulinho para a rede de escolas técnicas do Estado e dentre 24000 candidatos ficou em 16º absoluto sendo o 1º do curso que escolheu (Turismo, na Escola Técnica Estadual Juscelino Kubitschek). Poucos anos depois ele resolveu prestar vestibular e passou para três universidades públicas de uma tacada só (UniRio, UERJ e Cefeteq), ficou a um ponto de passar para outra(UFRJ).
Começou a fazer jornalismo, mas abandonou porque o dinheiro que ganhava (ainda vendendo balas) não era suficiente nem para pagar as apostilas. Seis meses antes de desistir do curso tinha prestado concurso para um dos jornais de médio porte do Rio (Folha Dirigida), eram cerca de 300 estudantes disputando 7 vagas, a exigência do edital era que estivessem entre o 4º e o 6º períodos. Ele estava no 3º com matérias do 2º pendentes mas se inscreveu. Mesmo disputando com concorrentes de períodos bem mais adiantados, se classificou. Foi chamado e não teve problemas quanto ao período que cursava, achou que as coisas poderiam dar uma facilitada... mas a bolsa era muito baixa (5/8 de um salário mínimo) e (mesmo com ele tentando completar a renda com os bicos de sempre) não resolveu nada.
Entrou pra UFF, saiu pelo mesmo motivo... resolveu começar a prestar concursos e ficou por um ponto de se classificar em um , por um ponto de se classificar em outro, até que saiu um para o IBGE e se classificou em 2° dentre 2700 candidatos.
Não apareceu em jornal nenhum, talvez até mais por ser muito tímido e não gostar nada de expor suas pessoalidades (muito embora esteja mudando neste quesito, aos poucos, tanto que está escrevendo este post). Fica muito feliz pelo exemplo do Ubirajara. Mas fica muito puto quando casos como estes, de indivíduos que de alguma forma conseguiram ultrapassar os obstáculos absurdos e desumanos por terem alguma habilidade especial inata (no caso do rapaz que eu conheço, um QI de 156, mensurado por dois psicólogos diferentes), são usados para sustentar o discurso de que não há motivos para se falar em desigualdades e modos de saná-las.