Entrevista publicada na(falecida) Revista das Religiões,Outubro de 2004,páginas 62 e 63.Texto de Lara Silbiger
A fala tranqüila do pensador Angel Alvarez combina bem com o clima da mística cidade de Santiago de Compostela, onde vive. Contudo, por trás deste véu de serenidade, fervilha um homem cheio de inquietações, que faz da dúvida e do questionamento seus companheiros inseparáveis na busca pelo saber. E essa sede por conhecimento acabou colocando-o diante de uma certeza: Deus não está mais entre nós. Certamente, uma das afirmações mais controversas em seu percurso pelo campo da investigação humanística.
Doutor em Filosofia, há 15 anos leciona na Universidade de Santiago de Compostela. Antes disso, trabalhara como professor em escolas do ensino médio. Aliás, foi justamente nessa fase, em meio a adolescentes, que aconteceu um dos eventos mais marcantes da vida do filósofo. Durante a ditadura franquista, decidiu organizar um recital baseado nas obras do poeta Miguel Hernández, preso pelo Exército Nacional durante a Guerra Civil Espanhola, que aconteceu na década de 30 e culminou com a vitória do General Franco sobre os socialistas e os comunistas. A atividade escolar, como era de esperar, despertou a ira do governo, que tentou impedi-la. E como Álvarez não se submeteu às pressões, logo veio a perseguição. O caso, porém, foi parar no tribunal do Ministério de Educação e, para surpresa geral, o juiz que cuidava do processo deu um veredicto favorável ao professor.
Hoje, aos 59 anos de idade, não perdeu a ousadia. No mês de abril, por ocasião das celebrações do segundo centenário da morte do filósofo Emmanuel Kant, diante de um auditório repleto de padres e seminaristas no Instituto Teológico Compostelano, atreveu-se a questionar a existência de Deus entre nós. Este era o tema de sua palestra, na qual, citando o próprio homenageado, disse: "Tive que suprimir o saber para deixar lugar à fé." Católico, com essas palavras o professor expressava a conflituosa relação entre a razão e a fé, foco constante das indagações da mente huumana. "A reflexão filosófica sempre tropeça com a questão do sagrado. Desde suas origens, porém, a filosofia ocidental, que convive com religiões monoteístas, tenta aliar a busca do homem por respostas racionais com a proposição de que Deus está vindo ao encontro de Suas criaturas para satisfazê-las", afirma Álvarez. "Mas essa é uma inquietaação que vai além de conceitos, materializando-se numa pergunta: 'Se Deus não existe, o que nos resta fazer?'."
Como falar na exístência de Deus num mundo repleto de guerras, atentados terroristas e fome, entre outros males?
Desde que o conhecemos, o mundo tem sido assim. Sempre houve guerras, violência, perseguição e estupros. No máximo, podemos falar que passamos por um agravamento das formas de destruição mútua. Portanto, se em outras épocas não havia contradição entre a presença de desarmonias terríveis e a existência de Deus, agora também não haverá. O que acontece, na verdade, é que estamos vivendo um momento bastante peculiar, um período de ausência de Deus.
A que o senhor se refere quando cita a palavra "ausência"?
Refiro-me, literalmente, à falta de Deus na sociedade. Por exemplo, houve tempos em que havia um ambiente onde simplesmente se respirava a existência de Deus. Por mais que sofrêssemos dos mesmos problemas em relação à vida e ao destino humano, estávamos seguros de que Ele estava ali. Por outro lado, hoje em dia temos a sensação de que não está. Vivemos num tempo nilista, que priva de validez os princípios morais, dando aos homens a noção de serem independentes das leis. O cético se guia pela natureza dos instintos e segue simplesmente o que já está estabelecido, o que, segundo o pensador Emmanuel Kant, é uma forma de comodidade.
Essa inexistência de Deus: é fruto da falta de fé ou Ele resolveu afastar-se?
Nietzsche disse que Deus está morto pois nós o matamos. Mas, como ressaltou, esta ausência divina será transitória. O que virá depois não sabemos, porque ainda vivemos nesse tempo de escuridão. Deus, em última instância, é o referencial primeiro de nossas ações. Ao retirar esse ponto de referência, é como se perdêssemos o horizonte. Já não sabemos em que direção caminhar.
Mas é inegável que ainda há muitas pessoas que acreditam em Deus.
Sim, mas é como nadar contra a correnteza. Quero dizer, se este é um tempo de ausência de Deus, os que têm fé estão fora de contexto. Estamos num momento de secularização, ou seja, de ausência de valores, e a manutenção da fé requer um esforço especial do fiel.
Por outro lado, vê-se crescer o fundamentalismo no mundo, com a pregação da violência em nome de Deus.
O fundamentalismo, na verdade, pode ser considerado uma forma disfarçada de incredulidade, pois suas ações se apóiam em uma visão radical e equivocada do Criador. Um deus excludente não é Deus. E um deus do terror também não é Deus. O deus do fundamentalismo é fruto de uma idolatria nefasta, cujas conseqüências têm se mostrado desastrosas.
Qual a origem da radicalização da fé?
O deus fundamentalista é um produto de mentes humanas. Percebendo que Deus está ausente, os homens fabricam um ser para responder à inquietude inerente a todos nós, de poder contar com um ente ideal e soberano. Ou seja, tem explicação, mas não justificativa.
Mas a busca por Deus é decorrente apenas da necessidade de satisfazermos nossa inquietação pessoal?
Sim, porque o homem é prisioneiro de profundas dúvidas, alimentadas pela perplexidade da razão: "Existe Deus? Haverá uma vida futura? O que me cabe esperar?" Busca-se o que não se pode alcançar. E todas as respostas não passam de meras especulações. Hoje a filosofia está marcada pelo criticismo, pois nossos esforços destinam-se a questionar certezas que antes tínhamos.
Por que tanta inquietude?
Segundo Santo Agostinho, o homem tem um coração inquieto, que o mundo não satisfaz. Sua razão pode ditar leis, mas elas diferem muito das leis da natureza, que, em suma, são as que carecem de entendimento. Assim, os homens criaram a figura de Deus. Mas, ao contrário das tradições mitológicas, em que os homens fabricavam seus deuses, as grandes religiões monoteístas aguardam por um Deus que venha ao encontro do homem.
Com a ausência de Deus, como se dá essa espera pela divindade?
Agora essa espera está interrompida, mas não por causa de Deus. É fruto da postura dos próprios homens, que deixaram de se ligar ao divino por não serem capazes de escutar Seus sinais. Mas chegará o dia em que escutarão. Como Nietzsche disse, o niilismo é um estado transitório.
Diante deste cenário, o senhor crê que exista um caminho para a paz?
Sim, e o caminho é Deus. Quando tivermos a volta da paz, teremos o retorno de Deus. Mas não é uma relação causal, são fenômenos simultâneos. A vinda do Criador traz como signos a paz e a concórdia. Deus é um princípio de esperança que a própria razão huumana nos impôs. Sem Ele, viveremos todos perpetuamente num estado de ilusão, em uma existência cujos signos são a guerra e a destruição.
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