Governo não entendeu que imagem de pobre dos ricos emergentes Índia e China é só retóricaO mundo bipolar se fragmentou, e “novos imperialistas” despontam como potências em ascensãoO fracasso da Rodada Doha ficou entalado na garganta do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, acusado pelo que deixou de fazer antes e pelo que fez, no instante final das reuniões, para impedir o colapso de sete anos de negociações no âmbito da OMC, Organização Mundial do Comércio, para a redução do protecionismo.
A diplomacia comercial brasileira há anos é devedora de um melhor desempenho como coadjuvante do empenho exportador do setor privado - mais tratado como resultante das diretrizes de política externa que como peça fundamental de sua execução. Mas jogar nas costas de Amorim a frustração pelas desavenças entre a Índia e China, de um lado, e EUA, de outro, o motivo final da ruína de Doha, é não só uma injustiça com o ministro, como também um erro de escala.
Injustiça por que Amorim teceu a política para a Rodada Doha sob orientação do presidente Lula, por sua vez influenciado pelo que a entourage petista vislumbra da política internacional: um campo de luta entre ricos do Norte e pobres do Sul. Decorre daí a alegoria da “nova geografia comercial”, que Lula imagina desenhar em suas muitas viagens ao exterior e com retórica pedagógica no fórum das grandes multinacionais de Davos e nas Nações Unidas.
O mundo bipolar se fragmentou, com China e Índia despontando, e se vendo, como potências em ascensão, sem nenhum receio de exigir contrapartidas de parceiros e tratar vizinhos como tributários de seu poder. Não se põem como países marginais disputando migalhas, como o Brasil sugere ao pisar em ovos na relação com os vizinhos meio que receoso da sombra projetada sobre eles pelo tamanho da economia e a imensidão geográfica. É o gigante que quer ser amado.
Perdoa a dívida externa de alguns, justifica que outros tomem na mão grande bens da Petrobras, cede em acordos de tarifas. E o que ganha em troca? Exigências da Bolívia por investimentos. Críticas da Venezuela ao programa do álcool.
Ressentimento do chanceler da Argentina em Genebra, levando-o a saltar para a banda da Índia e China ao saber que o Brasil aceitara a oferta dos EUA e da União Européia de corte parcial de seus subsídios agrícolas em troca de maior facilidade para a sua indústria exportar para os mercados emergentes. E Amorim? Sugeriu compensar a Argentina no Mercosul.
Novos imperialistasO erro de escala tem a ver com esta fieira de atitudes e visões, simbolizada na manifestação de Amorim numa das entrevistas pós-Doha ao dizer que tinha dificuldade com a expressão “economias emergentes”, preferindo a antiga, “economias em desenvolvimento”. Coisa do tempo em que todas integravam a ficção do Terceiro Mundo.
No grupo dos 20 que ele e Lula se empenharam em consolidar, com China e Índia, para negociar em bloco com a Europa e EUA, pensar pela ótica do menos favorecido pode ter sido fatal na hora em que as cartas foram postas sobre a mesa em Genebra. Passar por fraco para os “novos imperialistas” do mundo é tática, não ideologia.
Festival de traiçõesAmorim foi criticado pela esquerda por ter aderido à proposta dos ricos, que poderia ter salvado Doha do limbo em que foi enfiada e, contudo, foi o melhor lance do governo Lula, até porque tomado com a concordância dos diretamente afetados, o empresariado industrial e agrícola.
Foi acusado de traição pelo chanceler argentino, mas as lideranças rurais do vizinho o apoiaram, enquanto deputados do PT com assento no Parlamento do Mercosul soltaram nota censurando-o por divergir do G-20.
Em suma, um festival de traições aos olhos de quem enxerga tudo em preto e branco, incapazes de distinguir as nuances sob a capa da ingênua solidariedade entre “povos irmãos”.
Era muita pretensãoComo exportador de comida e minérios, Brasil é tão rival da Índia como EUA e Canadá - países desenvolvidos também ricos em recursos naturais. A Índia batalha para derrubar as barreiras em serviços, em que são fortes. Mas o Brasil não fica muito atrás.
Eles roeram a corda no G-20 para proteger sua agricultura basicamente familiar e improdutiva. Mas são 630 milhões - cruciais em qualquer eleição, como os ruralistas brasileiros e dos EUA, o que explica a timidez americana em escancarar o mercado agrícola, embora não proteja sua indústria, para júbilo da China. Que se volta para América Latina e África, dando um chega pra lá em nossos produtos.
O governo Lula se via liderando essa gente. Quanta pretensão.
Dar tempo ao MercosulNunca é tarde para correr atrás do prejuízo, depois de estampado o equívoco de Lula-Amorim de pôr todas as fichas no pano verde do multilateralismo. Dispensou desde 2003 ofertas da União Européia e dos EUA de tratados bilaterais de livre comércio. Depois, amenizou a resistência, mas levou a tiracolo os interesses heterogêneos do Mercosul, bloquinho de quatro países que mal se entendem e fica de pé graças ao tratamento de nação mais favorecida dado pelo Brasil.
A adesão da Venezuela, cujo governo se diz socialista e esforça-se em estatizar a economia, é outro complicador para sincronizar tarifas e convergir as práticas econômicas. Talvez o melhor seja dar um tempo ao Mercosul como união aduaneira e azeitar o comércio bilateral antes de atar o Brasil a economias ainda verdes para cogitar qualquer grau de abertura comercial.
A verdadeira integração virá por gravidade, com a nação mais forte atraindo as outras, como a Alemanha foi para a União Européia.
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