LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
A batalha de todos nós na Argentina
O GOVERNO argentino está enfrentando há três meses uma batalha decisiva não apenas para o seu próprio desenvolvimento econômico mas para o de todos os países latino-americanos que ainda não compreenderam que a doença holandesa não neutralizada é o mais grave obstáculo econômico que enfrentam.
A retenção variável sobre as exportações, existente na Argentina, é o segredo por trás do fato de que a economia daquele país cresceu, em média, 8,8% ao ano entre 2003 e 2007. Essa retenção duplamente variável -de commodity para commodity e conforme a variação do preço internacional do bem- desloca a curva de oferta desses bens para cima na proporção da gravidade da doença holandesa que esse bem causa.
Torna, assim, não lucrativa a exportação do bem a uma taxa de câmbio menor -o que impede, do lado da oferta, que essa taxa se aprecie. Ao impedir a sobreapreciação do peso, o governo argentino garante, de um lado, a lucratividade dos agricultores, e, de outro, a demanda agregada para investimentos voltados para a produção de bens comercializáveis (que podem ser exportados ou importados); e, assim, a economia cresce aceleradamente.
Os agricultores argentinos, vítimas de uma ilusão, rejeitam o aumento da retenção sobre a soja para 44%, pensando que são eles que a pagam. Não são. A não ser que os cálculos do governo estejam errados, isso só é aparentemente verdadeiro. Se o governo retirar a retenção desse e dos demais bens que dão origem à doença holandesa, o mercado provocará a apreciação da taxa de câmbio na exata proporção da retenção retirada, e o agricultor nada ganhará; sua receita ficará igual à que tinha com a retenção.
Ganharão, no curto prazo, os consumidores argentinos, cujos salários reais crescerão, mas perderá toda a economia argentina, que voltará a crescer a taxas modestas e ficará sujeita a crises do balanço de pagamentos. E, se o governo argentino houvesse criado um fundo de estabilização para os preços agrícolas com o uso de parte dos recursos da retenção, sua eliminação ou redução causaria perda aos próprios agricultores, que voltariam a ficar sujeitos às variações dos preços internacionais das commodities.
Logo, o racional, do ponto de vista econômico, era lutar por esse fundo de estabilização -não pela diminuição da retenção. Sua luta atual só faria sentido se todas as demais retenções fossem mantidas e, em conseqüência, a taxa de câmbio não se apreciasse, mas, nesse caso, estaríamos diante de um caso clássico de oportunismo ou de comportamento "free rider".
Se o governo de Cristina Kirchner vencer essa batalha, não estará apenas defendendo o interesse nacional da Argentina. Estará abrindo um caminho para que os países latino-americanos e africanos comecem a racionalmente reconhecer a existência dessa terrível falha de mercado -a doença holandesa- e a neutralizá-la.
Uma falha que tem conseqüências diferentes dependendo de se o país:
1) ainda não se desindustrializou mas tem condições para isso, desde que neutralize a doença (é o caso de vários países produtores de petróleo); ou 2) já se industrializou mas deixou de neutralizar a doença (é o caso da Argentina e do Brasil). No primeiro caso, o país não se industrializa; no segundo, entra em processo gradual de desindustrialização.
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LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
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