2004-06-01 - 00:00:00
MIGUEL ÂNGELO ERA AUTISTA?
D.R.
O pintor era irritável, sarcástico, obcecado pelo trabalho e pelo controlo de todos os aspectos da sua vida
O génio do Renascimento apresentava dificuldades de comunicação e tinha tendência para o isolamento. As suas características levaram um investigador britânico a lançar uma nova e audaz tese, associando-o ao autismo
O génio renascentista Miguel Ângelo, autor dos frescos da Capela Sistina e da estátua de David, entre muitas outras obras-primas, pode ter sofrido de autismo, segundo sugerem investigações recentes.
O estudo em causa, publicado no ‘Journal of Medical Biography’, fornece uma síntese de novos factos sobre o famoso pintor, escultor e arquitecto, cuja obra marcou o século XVI e ficou associada para sempre ao génio do Homem. O psiquiatra britânico e autor principal da pesquisa, Muhammad Arshad, defende que Miguel Ângelo “era solitário, absorvido em si mesmo e concentrava toda a atenção nas suas obras-primas”. Tudo características típicas do autismo.
O estudioso sustenta que o comportamento de Miguel Ângelo é conforme aos critérios definidores da síndroma de Asperger, também chamada autismo de elevado funcionamento.
O autismo é uma desordem complexa que pode não afectar a inteligência, mas influencia o modo como se recebe e absorve informação. Entre os sinais que permitem identificá-lo contam-se a dificuldade na comunicação, o isolamento social, a necessidade de controlo e a obsessão por interesses muito específicos. Tudo isto torna a vida diária difícil à maior parte dos autistas, embora alguns consigam viver relativamente bem e até frequentar o ensino regular.
NÃO TIRAVA OS SAPATOS
Mas em que se baseia, afinal, Arshad para afirmar que Miguel Ângelo era autista? O investigador nota, antes de mais, que os homens da família dele apresentam “traços autistas” e perturbações de humor. A própria família de Miguel Ângelo considerava que ele era complicado e tinha problemas em aplicar-se a fazer fosse o que fosse.
Arshad pinta ainda Miguel Ângelo como distante e solitário, afirmando que o mentor do artista chegou a descrevê-lo mesmo como incapaz de fazer amigos ou manter qualquer relação. Num exemplo concreto, Arshad conta que o famoso pintor não foi ao funeral do irmão, o que, garante, revela “incapacidade para mostrar emoções”.
A fama que perdurou através da História, descreve Miguel Ângelo como um homem obcecado pelo trabalho e pelo controlo de todos os aspectos da sua vida – família, dinheiro e tempo. Perder o controlo causava-lhe enorme frustração. Ao mesmo tempo, era capaz de criar em pouco tempo muitas centenas de cenas para o tecto da Capela Sistina, nenhuma delas igual, nem repetindo qualquer pose.
Sustenta ainda o investigador que Miguel Ângelo tinha dificuldade em manter uma conversa e, frequentemente, abandonava a meio uma situação de interacção social. Considera-o, além disso, irritável, sarcástico e, às vezes, paranóico. Também é descrito como tendo mau génio e violentos acessos de fúria. Miguel Ângelo raramente tomava banho, dormia frequentemente vestido e nem se descalçava. “Passava tanto tempo sem tirar os sapatos que, quando o fazia, a pele vinha atrás, como a pele de uma cobra.”
A concluir, Muhammad Arshad expõe o resumo da sua investigação: “A rotina de trabalho, o estilo de vida invulgar, o facto de ter interesses limitados, a falta de habilidade social e de comunicação e vários aspectos relacionados com o controlo são traços do autismo de alto funcionamento”.
O QUE É?
Uma criança autista é incapaz de desenvolver relações sociais normais. O seu comportamento revela-se de maneira compulsiva, onde o padrão são
os constantes rituais. O autismo é, no entanto, uma doença completamente diferente do atraso mental ou da lesão cerebral, embora, ressalve-se, haja autistas com estes traços.
QUANDO SURGE
Os sinais do autismo aparecem normalmente no primeiro ano de vida do ser humano. Nas ocasiões em que isso não acontece, é certo que se manifesta sempre antes dos três anos. A doença atinge muito mais os elementos do sexo masculino – é duas a quatro vezes mais frequente nos rapazes do que nas raparigas.
CAUSAS
Aquilo que provoca o autismo permanece desconhecido. Há várias teorias que tentam explicar as causas da doença, mas nenhuma foi conclusiva. Estudos de gémeos idênticos indicam que a doença pode ser, em parte, genética, porque tende a afectar ambos os gémeos se um deles a tiver. Mas certezas, neste caso, são poucas.
AUTISMO E SÍNDROMA DE ASPERGER
Uma criança autista prefere estar só, não forma relações pessoais íntimas, não abraça, evita olhar nos olhos das pessoas, resiste às mudanças, é excessivamente presa a objectos familiares e repete continuamente certos actos e rituais.
A criança pode começar a falar depois das outras crianças da mesma idade e usar a língua de um modo estranho. Há também a possibilidade de não falar, porque não quer ou não pode.
Ao falar com uma criança autista, o interlocutor tem frequentemente dificuldade em entendê-la. É possível que repita as palavras que lhe são ditas (ecolalia) e inverta o uso normal de pronomes, principalmente usando o “tu” em vez do “eu” ou o “mim” quando se refere a si própria.
O autismo foi originalmente descrito por Leo Kanner (1894-1981). Kanner nasceu na Áustria e emigrou para os Estados Unidos em 1924. Publicou o primeiro trabalho sobre crianças autistas em 1943. Antes de ter identificado os sintomas do autismo, estas crianças eram consideradas perturbadas emocionalmente ou atrasadas mentais.
O pediatra austríaco Hans Asperger (1906-1980) fez a descoberta de Kanner praticamente ao mesmo tempo que ele, só que todos os doentes de Asperger podiam falar. Por isso, o termo síndroma de Asperger é usado com regularidade para designar pessoas autistas capazes de falar.
GÉNIO É QUASE IMPOSSÍVEL
O autismo relaciona-se, de algum modo, com a genialidade? A pergunta é legítima, atendendo a que também Albert Einstein, que descobriu a Teoria da Relatividade, e Isaac Newton, pai da Lei da Gravidade, foram, em 2003, considerados ‘Aspergers’ por cientistas das universidades britânicas de Oxford e Cambridge.
Isabel Cottinelli Telmo, presidente da Federação Portuguesa de Autismo, rebela-se contra tal associação, pois sabe das expectativas que gera nos pais das crianças autistas.
“Entre os ‘Aspergers’, dois ou três podem ser génios, mas a esmagadora maioria não é”, afirma ao Correio da Manhã.
A prevalência do autismo severo é de uma para 10 mil crianças e estima-se que a síndroma de Asperger afecte 15 em cada 100.
Segundo Isabel Cottinelli, “há casos gravíssimos, em que o bebé não come, não dorme, só grita e ninguém sabe porque razão”.
A detecção nem sempre acontece precocemente: “Há crianças que já estão na escola primária e nunca ninguém percebeu que eram autistas.”
A mesma responsável nota que a maioria dos autistas não é capaz de viver de forma autónoma, “tem de ser ajudada a aprender e a interagir”.
A síndroma de Asperger permite maior autonomia, mas, mesmo assim, “estamos a falar de pessoas com comportamento irregular, que, por exemplo, muito facilmente abandonam o emprego”.
Isabel Ramos
http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=112179&idCanal=9