Autor Tópico: E se Adão e Eva tivessem um advogado?  (Lida 902 vezes)

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Offline Fernando Silva

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E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Online: 07 de Setembro de 2008, 12:05:17 »
É de Paulo Coelho, mas ... é interessante.

"O Globo"   07/09/08
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O direito como metáfora
Paulo Coelho

Sou uma pessoa que crê no sistema judiciário. Apesar de todos os percalços, vemos — por exemplo — a Suprema Corte dos Estados Unidos desqualificando a tortura como método de interrogatório, mesmo que o presidente da República e seu vice tenham, através de artimanhas legais, tentado justificá-la.

Entretanto, minha crença não é compartilhada por muita gente. Um amigo advogado disse-me que “o direito não foi feito para resolver problemas, mas para prolongá-los indefinidamente”.

Apenas como exercício de imaginação, resolvi usar sua tese analisando o Gênesis, primeiro livro da Bíblia.

Se Deus vivesse hoje, nós todos ainda estaríamos no Paraíso, enquanto Ele estaria ainda respondendo a recursos, apelos, rogatórias, precatórias, mandados de segurança, liminares.

E teria que explicar em inúmeras audiências sua decisão de expulsar Adão e Eva do Paraíso, apenas por transgredir uma lei arbitrária, sem nenhum fundamento jurídico: não comer o fruto do Bem e do Mal.

Se Ele não queria que isso acontecesse, por que colocou a tal árvore no meio do jardim — e não fora dos muros do Paraíso? Se fosse chamado para defender o casal, um advogado experiente podia argumentar a tese de “omissão administrativa”: além de colocar a árvore em lugar errado, não a cercou com avisos ou barreiras, deixando de adotar os mínimos requisitos de segurança e expondo todos que passavam ao perigo.

Outro advogado o acusaria de “indução ao crime”: chamou a atenção de Adão e Eva para o exato local onde se encontrava. Se não tivesse dito nada, gerações e gerações passariam pela Terra sem que ninguém se interessasse pelo fruto proibido — já que devia estar numa floresta cheia de árvores iguais, e, portanto, sem nenhum valor específico.

Mas o Gênesis aconteceu antes do sistema judiciário e, portanto, permitiu que Deus tivesse completa liberdade de ação. Escreveu uma única lei e encontrou uma maneira de convencer alguém a transgredi-la, só para poder inventar o Castigo. Sabia que Adão e Eva terminariam entediados com tanta coisa perfeita e — mais cedo ou mais tarde — iriam testar Sua paciência. Ficou ali esperando, porque também Ele — Deus Todo-Poderoso — estava entediado com as coisas funcionando perfeitamente: se Eva não tivesse comido a maçã, o que teria acontecido de interessante nesses bilhões de anos? Nada.

Quando a lei foi violada, Deus — o Juiz Todo-Poderoso — ainda simulou uma perseguição, como se não conhecesse todos os esconderijos possíveis.

Com os anjos olhando e divertindose com a brincadeira (a vida para eles também devia ser muito aborrecida, desde que Lúcifer deixara o Céu), Ele encontra Adão.

“Onde estás?”, perguntara Deus, que já sabia a resposta. Não o alertou para as conseqüências dela. Não disse a famosa frase que tanto ouvimos nos filmes: “Tudo o que disser pode ser usado contra você.” “Ouvi seu passo no jardim, tive medo e me escondi, porque estou nu”, respondera Adão, sem saber que, a partir dessa afirmação, passava a ser réu confesso de um crime.

Pronto. Através de um simples truque, em que aparentava não saber onde Adão estava, nem o motivo de sua fuga, Deus conseguira o que desejava.

Expulsou o casal, seus filhos terminaram pagando também pelo crime (como acontece até hoje com os filhos de criminosos) e o sistema judiciário fora inventado: lei, transgressão da lei, julgamento e castigo.

Offline JUS EST ARS

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #1 Online: 07 de Setembro de 2008, 21:56:53 »


Se um juiz brasileiro fosse analisar hoje a conduta de Adão e Eva, a sentença seria mais ou menos assim:



"Trata-se de ação visando a condenação de Adão e Eva, consistente na expulsão do Paraíso, em razão de terem os réus comido da fruta proibida, após proibição já declarada na Lei.

Confessam os réus a realização da conduta proibida, afirmando que o ato só foi levado a cabo em razão da instigação determinante de Serpente, e se dizem arrependidos.

A conduta criminosa, da qual os réus deveriam se abster de realizar foi declarada previamente pela Lei; os réus agiram de forma contrária a ela; houve dolo no ato, revelado pela intenção de comer o fruto proibido; assim, verificam-se presentes os requisitos do crime.

No entanto, exige a lei penal a declaração prévia não só da conduta criminosa, mas também da pena a qual se submeterá o descumpridor da regra. Princípio basiliar do Direito, encontra seu fundamento em nossa Carta Magna:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Art. 5º.
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;


Do relato apurado, verifica-se que nunca foi exteriorizado pelo Legislador, antes da consumação do crime, que a pena pela conduta de comer do fruto proibido era a expulsão do Éden. Tal punição surgiu posteriormente, sem fundamento em ato anterior declarado na Lei.

Outrossim, sobre a conduta dos réus recaem várias atenuantes. Como é de se observar, lhes foi declarado pelo Legislador que, se cometessem tal crime, adquiririam consciência sobre o bem e o mal. A humanidade sempre buscou, e busca até os dias de hoje um conceito perfeito de bem e mal, sem sucesso. A obtenção de tal ideal resultaria em relevante valor social ou moral, o que deve ser considerado pelo Judiciário.

Além disso, cumpre analisar a conduta de Serpente. Resta bem delineado que a intenção dos réus de cometer o delito somente surgiu após a instigação por parte do meliante Serpente, o qual inclusive é funcionário do Legislador. Usando de tal autoridade, tem se que o crime foi cometido sob coação a que podia resistir, aparentemente em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção.

Ademais, verifica-se que os réus Adão e Eva confessaram espontaneamente e individualmente seus crimes. Sobre suas condutas, aplicam-se portanto, as seguintes atenuantes:

CÓDIGO PENAL
Circunstâncias atenuantes
Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
[...]
III - ter o agente:
a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral;
[...]
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima;
d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime;



Por fim, o que mais salta aos olhos, e que configura inclusive abuso de autoridade, foi a conduta do Legislador em fazer com que a pena de banimento do Éden foi estendida a todos os seus descendentes, perpetuamente.

Direito Fundamental inscrito na Constituição da República Federativa do Brasil, é o de que somente o autor do fato delituoso responde por seus atos, não podendo quem não o praticou sofrer as consequências de crimes praticados por outrem:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Art. 5º.
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado[...];


Isto posto, CONDENO os réus pela prática do crime tipificado pelo Legislador, consistente na prática de comer do fruto proibido, com as atenuantes descritas.

De outro lado, DEIXO DE APLICAR A SANÇÃO PRETENDIDA, tendo em vista que a pena não havia sido descrita pelo Legislador antes da prática do fato definido como crime.

Por fim, DESCONSTITUO O EFEITO DA CONDENAÇÃO EM RELAÇÃO A TERCEIROS, já que somente quem não praticou o crime deve sofrer suas consequências, ficando assim o restante da humanidade absolvida dessa conduta.

Com o trânsito em julgado, lance-se o nome dos réus no rol dos culpados, com a anotação de que não há a pena a ser cumprida.

Oficie-se ao MP, para a averiguação de crime de abuso de autoridade por parte do Legislador.

P.I.R.C.

Brasil, 07 de setembro de 2008, dia da Independência.

Juiz de Direito."



« Última modificação: 07 de Setembro de 2008, 22:01:47 por JUS EST ARS »

Offline JJ

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #2 Online: 08 de Setembro de 2008, 09:47:28 »
Por fim, o que mais salta aos olhos, e que configura inclusive abuso de autoridade, foi a conduta do Legislador em fazer com que a pena de banimento do Éden foi estendida a todos os seus descendentes, perpetuamente.
Direito Fundamental inscrito na Constituição da República Federativa do Brasil, é o de que somente o autor do fato delituoso responde por seus atos, não podendo quem não o praticou sofrer as consequências de crimes praticados por outrem:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Art. 5º.
XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado[...];
   


Essa é a parte da historinha de Adão e Eva que eu considero que como você também disse a que "mais salta aos olhos", é realmente um completo absurdo, que fere um conceito básico da própria idéia  de justiça que afinal de contas embasa o texto constitucional ! 


JUS EST ARS, ficou muito legal  a análise jurídica.    :ok:    :ok: 


Poderíamos ir  um pouco além e analisar também a constitucionalidade  do processo legislativo que originou a lei e a constitucionalidade da própria  lei que proibia Adão e Eva de comer o fruto da árvore e assim  adquirir conhecimento  (supondo como você já fez,  a existência de uma constituição que respeitasse os inalienáveis direitos humanos) e até mesmo os seus pressupostos  político filosóficos.

Uma lei só pode vir a existir a partir de um processo legislativo  que envolva representantes  legítimos da população que será governada .

O acesso a informação e a educação não pode ser impedido pela lei , portanto uma lei que impeça o acesso a uma fonte de conhecimento  seria inconstitucional.

E além  disso uma  lei só tem razão de existir caso  beneficie  a sociedade humana.  A suposta lei que proibia Adão e Eva  de comerem o fruto da árvore  e adquirir conhecimento, seria um mero capricho  de um  ser , tinha pois caráter arbitrário e absolutista , o que sob o ponto de vista de uma sociedade democrática é inaceitável.  Leis que visam satisfazer caprichos  de  um ser  não são válidas.

Portanto, tal lei deveria ser declarada inconstitucional . 


Os artigos e incisos abaixo  também poderiam ser utilizados para demonstrar a inconstitucionalidade da proibição  do acesso a árvore do conhecimento .


Constituição federal

Democracia:

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.


Acesso a informação e a educação ou, dizendo de outra forma,  acesso  ao conhecimento :


XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; (Regulamento)

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.


Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.



--------------------------------------------------------



O problema é que a historinha se desenvolve sob o ponto de vista de um senhor  absolutista, que legisla/ executa e julga  ao sabor do  capricho pessoal . 


Tal historinha fazia um certo sentido, em termos de direito,  numa época  em que não existia  os conceitos de direitos humanos e de  sociedade democrática, e que se aceitava  a existência de um senhor com poderes totais e arbitrários. 


No fundo isso mostra que a tal historinha  era uma projeção  da própria sociedade da época, o que é justamente o que deveríamos esperar que fosse.   

« Última modificação: 09 de Setembro de 2008, 08:12:37 por Helder »

Offline JUS EST ARS

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #3 Online: 08 de Setembro de 2008, 09:58:19 »


Citação de: Helder
O problema é que a historinha se desenvolve sob o ponto de vista de um senhor  absolutista, que legisla/ executa e julga  ao sabor do  capricho pessoal. 

Tal historinha fazia um certo sentido em termos de direito,  numa época  em que não existia  os conceitos de direitos humanos e de  sociedade democrática, e que se aceitava  a existência de um senhor com poderes totais e arbitrários. 

No fundo isso mostra que a tal historinha  era uma projeção  da própria sociedade da época, o que é justamente o que deveríamos esperar que fosse.

Valeu, é isso mesmo.



Offline Marcelo

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #4 Online: 08 de Setembro de 2008, 14:18:48 »
Sentença brilhante.....!!!! Parabéns Jus Est Ars
"Quando Deus existir urubu será vegetariano"

Offline JUS EST ARS

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #5 Online: 08 de Setembro de 2008, 14:32:46 »


:ok:



Offline Galthaar

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #6 Online: 08 de Setembro de 2008, 14:47:16 »


Ficou muito bom mesmo, parabéns Jus.

"A dominação social no capitalismo, no seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas."

Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social

Offline Tupac

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #7 Online: 08 de Setembro de 2008, 15:29:51 »
ahuahuah gostei... muy bueno...
"O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida."
 - Carl Sagan

"O que é afirmado sem argumentos, pode ser descartado sem argumentos." - Navalha de Hitchens

Offline Barata Tenno

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Re: E se Adão e Eva tivessem um advogado?
« Resposta #8 Online: 09 de Setembro de 2008, 07:02:38 »
E é por isso que os advogados vão tomar o poder do CC das mãos dos físicos.....he he he
He who fights with monsters should look to it that he himself does not become a monster. And when you gaze long into an abyss the abyss also gazes into you. Friedrich Nietzsche

 

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