Muito filme e pouco público, os males do cinema brasileiro sãoAo final de 2008, tudo indica, o cinema brasileiro terá andado seis casinhas para trás, levando menos gente aos cinemas do que em 2002, quando 7,8 milhões de pessoas assistiram filmes nacionais. É verdade que esta acentuada queda (no ano passado foram 10,3 milhões de espectadores) pode ser vista como reflexo de um fenômeno maior, de redução no número total de espectadores nos cinemas, mas há algo de genuinamente brasileiro na crise: nunca se produziu tanto filme no País. No último final de semana, em São Paulo, havia 26 filmes brasileiros em cartaz contra 37 estrangeiros.
Parafraseando Mario de Andrade e seu Macunaíma, que disse “muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são”, poderíamos então concluir, numa rápida olhada a esses estranhos números, que “muito filme e pouco público, os males do cinema brasileiro são.”
“É o maior boom de que se tem notícia”, diz o cineasta Paulo Sérgio Almeida, diretor do Filme B, empresa especializada em números do mercado de cinema. Há hoje 569 filmes sendo feitos no Brasil. Esse número inclui filmes em todas as fases, desde trabalhos ainda em pré-produção até filmes prontos, à espera de lançamento. “É uma bolha”, reconhece Almeida.
Entender os vários significados desse paradoxo (produção em crescimento, público em queda) mobiliza hoje o mundo do cinema brasileiro. Produtores, exibidores, cineastas, agentes financiadores e burocratas do Ministério da Cultura têm explicações diferentes e, muitas vezes, complementares para o fenômeno.
O primeiro ponto a tentar compreender é o da redução do número total de espectadores nos cinemas. Desde 2004, quando houve o melhor resultado, 117 milhões de espectadores, a queda vem sendo gradual, ano a ano, e deve resultar em 2008 num número considerado desastroso pela indústria. A se confirmar a estimativa de 82 milhões de espectadores, isso significará que este ano a indústria exibidora vendeu 35 milhões de ingressos a menos do que em 2004.
Preocupado com esses números, o Sindicato das Empresas Distribuidoras Cinematográficas do Rio de Janeiro encomendou uma pesquisa nacional para tentar entender o que está levando – e deixando de levar – o público aos cinemas. Dos brasileiros moradores nos dez principais centros urbanos do país, 48% têm o hábito de ir ao cinema, incluindo-se aí os que vão uma vez por semana, uma vez por mês e muito de vez em quando.
A pesquisa mostra que ir ao cinema está longe de ser a principal atividade de lazer do brasileiro, e perde de longe para programas muito mais fáceis e baratos, como assistir um DVD, ver um filme na televisão e passear no shopping. A pesquisa mostra, também, que o público prefere filmes estrangeiros a brasileiros, e filmes dublados a legendados (o relatório completo da pesquisa está disponível no
site do sindicato).
Como explicar esse refluxo de público num momento de crescimento econômico do País e aumento da renda da população? A pesquisa do sindicato dos distribuidores mostra que existe, de fato, uma percepção que ir ao cinema é muito caro. “A culpa é da farsa da meia-entrada”, dispara Adhemar Oliveira, diretor de programação dos cinemas do Grupo Espaço de Cinema, que inclui as salas das redes Espaço Unibanco e Arteplex, em vários estados do país.
Segundo Oliveira, há cinemas hoje em que mais de 80% do público paga meia-entrada. “Não é possível, né?”, diz. A falta de fiscalização levou a uma disseminação de carteirinhas de estudante, contra as quais os cinemas nada podem fazer. “Os 15%, 20% que pagam inteira, de fato, estão pagando caro. Eles pagam R$ 18, R$ 20. Mas, para os demais, o preço do ingresso está barato”, constata. “Um casal que fica seis meses sem ir ao cinema e junta o dinheiro economizado, compra um home-theater”, acrescenta Paulo Sergio Almeida.
"Era Uma Vez", de Breno Silveira, foi modificado após exibições teste / DivulgaçãoOliveira lista outros problemas. O mais conhecido, a pirataria. A disseminação de DVDs piratas, de filmes que, às vezes, ainda nem estrearam, ou acabaram de estrear, assusta os exibidores. “Também não estamos conseguindo conquistar novos consumidores”, admite o executivo. Almeida acrescenta um terceiro problema: “Não tem mais um cinema perto de você. Nem a rede Luis Severiano, que popularizou esse slogan, tem muito mais cinemas de rua”.
Reflexos dessa crise já podem ser notados em alguns números da indústria exibidora. Agora, no início de setembro, oito salas de cinema do Shopping Santa Úrsula, em Ribeirão Preto, foram fechadas. Também no início deste mês, mas em Juiz de Fora, seis salas do Shopping Alameda também encerraram as suas atividades.
E onde entra o cinema brasileiro nesta crise? Como entender a queda drástica de público na comparação com o aumento impressionante da produção?
“A imagem do cinema brasileiro é boa, mas os produtos não estão agradando, os filmes não são atraentes”, começa Paulo Sergio Almeida. De fato, a pesquisa do sindicato dos distribuidores não aponta uma rejeição ao cinema brasileiro, ainda que o público prefira filmes estrangeiros, mas traz uma questão reveladora: o que leva o público aos cinemas é, em primeiro lugar, o tema do filme (31%), seguido por elenco (22%), gênero (10%), indicação de amigos (7%), o fato de estar todo mundo falando de determinado filme (6%), propaganda (6%), uma boa crítica (5%) e, em último lugar, o diretor (5%).
Esses dados assustam as pessoas diretamente envolvidas com a indústria. Afinal, como na França, o modelo principal de produção, no Brasil, gira em torno da figura do diretor, o chamado modelo do “cinema de autor”, no qual Ele é a mola propulsora, a pessoa que decide o tema, capta os recursos, escolhe o elenco e, eventualmente, ainda escreve o roteiro do filme.
Em oposição a esse modelo, ganha corpo no País, já há alguns anos, uma formulação mais complexa, na qual o papel do diretor é confrontado com o do produtor profissional, que introduz questões objetivas, ligadas à ótica do mercado.
Uma das mais bem-sucedidas produtoras brasileiras, a Conspiração Filmes, por exemplo, apresenta todos os seus projetos, seja ainda em fase de sinopse, seja já com roteiro desenvolvido, para os distribuidores. “Se ouvimos muitos ‘não’ dos distribuidores, normalmente desistimos do projeto”, conta Eliana Soarez, diretora do núcleo de cinema da produtora. “Temos a preocupação de fazer filmes para o mercado.”
Quando o filme está pronto, a Conspiração o exibe para platéias escolhidas, a título de teste, e faz modificações, em função dos comentários. Foi o caso de “Era uma Vez”, segunda maior bilheteria do cinema brasileiro em 2008, com mais de 500 mil espectadores. Depois de testes com o público, o diretor Breno Silveira acrescentou uma fala, no final do filme, dita pelo próprio ator, Thiago Martins, e não pelo personagem dele. Antes de estrear um filme, a Conspiração também faz testes com o cartaz e o trailer, para saber se eles estão obtendo o efeito desejado.
Há consenso de que uma indústria de cinema saudável é resultado do equilíbrio entre os chamado filmes “de autor” e os filmes focados no mercado. O problema, sugerem os números do cinema brasileiro em 2008, é que houve um desbalanceamento.
Mal-recebido pela crítica, "Bezerra de Menezes" tem agradado o público / DivulgaçãoDe um lado, parece, há recursos como nunca houve. Graças às mais variadas leis de incentivo fiscal – federais, estaduais, municipais –, bem como ao papel de grupos distribuidores internacionais, as chamadas “majors”, e à Globo Filmes, que estão investindo em cinema, a produção no Brasil vive o seu momento de maior pico.
De outro lado, não está havendo resposta do público. Apenas um filme brasileiro superou a casa do milhão de espectadores em 2008. “Meu Nome Não é Johnny”, contabiliza cerca de 2 milhões de ingressos vendidos este ano. É um típico projeto pensado por um produtor, a carioca Marisa Leão, que contratou um diretor, Mauro Lima, para realizá-lo.
Filmes que ajudavam nas estatísticas do cinema brasileiro, como as produções de Renato Aragão e Xuxa, já não surtem o mesmo efeito nas bilheterias – e eles não encontraram substitutos. “Se você tem num ano quatro produtos que dão certo, os números são bons. Esse ano isso não aconteceu”, observa Adhemar Oliveira. “Dos 26 filmes brasileiros em cartaz em São Paulo, 23 devem ter passado por festivais, tiveram aquela badalação toda, mas para o mercado...”, diz Oliveira, sem completar a frase.
O que o público quer ver? Segundo Eliana Soarez, da Conspiração, as pessoas, em sua maioria, querem ir ao cinema para se divertir. “Querem magia, emoção e histórias humanas. Na leitura do público, os filmes brasileiros são muito realistas”. Um modelo do que o público quer, na visão da Conspiração, é o filme “Dois Filhos de Francisco”, que conta a história dos cantores Zezé de Camargo e Luciano, e atraiu mais de 5 milhões de espectadores. De olho nesse segmento, da cinebiografia, a empresa está se preparando para filmar “Os Gonzagas”, sobre Luiz Gonzaga e Gonzaguinha.
Exemplar deste gosto do público por, digamos, história humanas, é o sucesso de “Bezerra de Menezes”, biografia de um médico, que viveu no século 19 e foi um importante divulgador do espiritismo no Brasil. Execrado de forma quase unânime pela crítica, o filme, com Carlos Vereza no papel-título, já foi assistido por 250 mil espectadores. É o segundo filme brasileiro mais bem-sucedido hoje em cartaz, se considerarmos a co-produção internacional “Ensaio sobre a Cegueira”, que já atraiu 280 mil espectadores.
Diante desses números e desse estranho paradoxo – tantos filmes em cartaz, tão pouco público para vê-los – Adhemar Oliveira observa: “Tem alguma tomada desconectada nesse mercado”. Convém descobrir logo como conectá-la.
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