"CDHU - Bloco 24", o novo "Ônibus 174" da empulhação moralEm seu depoimento, Nayara deixa claro que foi ela a tomar a decisão de entrar de novo no cativeiro. Ela o fez para proteger Eloá. Lindemberg, conta, exigiu a sua volta, ameaçando a amiga com o revólver na cabeça. A Polícia a orientou a apenas conversar com o seqüestrador. Sim, o comando errou ao permitir que Nayara atuasse como negociadora, estamos todos de acordo. Mas, como se vê, o GATE não pediu que Nayara entrasse no apartamento. Ressalto isso para ser preciso, não para aliviar os ombros dos policiais. Uma vez libertada, a garota deveria ter ido para casa e ponto final. Mas o assunto não se esgota assim. Todo o episódio revela uma fragilidade da polícia — de São Paulo e de qualquer lugar — que não será equacionada por microcâmera, arma ou técnica. E o nome dessa fragilidade é a obsessão de não produzir vítimas. “Ah, o Reinaldo acha que é preciso ter mais vítimas”, grita o petralha ensandecido, entendendo tudo errado, como de hábito.
Não! Eu acho que a polícia especializada — uma tropa de elite, como é o GATE — tem de ir a operações desse tipo com um mandato simbólico que hoje a sociedade não lhe confere. Qual sociedade? Os chamados setores formadores de opinião — a imprensa em especial. Há muitas divergências sobre se um atirador teria tido ou não condições de alvejar Lindemberg quando ele apareceu à janela. Poderíamos ter assistido, como aqui já se disse, a uma repetição do caso Adriana Caringi, a jovem feita refém, atingida por um atirador de elite: a mesma bala matou seqüestrador e seqüestrada. Eu mesmo relatei outro episódio, em que comandante e soldados respondem, já há 13 anos, por homicídio doloso por causa de uma invasão de cativeiro em que morreram 2 de 18 reféns. E, nesse caso, pasmem, não havia dúvida sobre o tiro disparado por um dos bandidos.
Não! Os tais setores formadores de opinião não dão esse mandato simbólico à Polícia. Ao contrário: ela já entra na operação como culpada, qualquer que seja o resultado — exceção feita, é claro, à hipótese de todo mundo, seqüestradores e reféns, saírem ilesos. Qualquer outro resultado é considerado inaceitável. Eduardo Felix, comandante da tropa de choque, tem sido muito criticado porque chegou a comentar que era preciso considerar, no caso de Santo André, que se tratava de um drama também amoroso, envolvendo adolescentes etc.
Pergunto: vocês que me lêem têm alguma dúvida de que, tivesse Lindemberg morrido com um tiro na testa, a esta altura, os seus diálogos com a polícia já teriam virado poesia da periferia, com aquela sua glossolalia sobre a vida que acabou e as vozes do além que o incitavam à vingança? Não faltariam os tarados ideológicos para ver naquilo um traço da cultura do oprimido. Morto Lindemberg, câmeras filmariam o entorno do conjunto habitacional, lambendo, com sua poesia perniciosa, as imagens da pobreza. Depois do “Ônibus 174”, teríamos o “CDHU – Bloco 80” — é aquele em que morava o assassino. Agora, para malhar a polícia, é o caso de pedir dinheiro para a Petrobras e o Banco do Brasil para fazer o “CDHU – Bloco 24” (em que morava Eloá).
Não! Vocês não têm dúvida porque é rigorosamente isso o que seria feito. Aliás, o Estadão publicou a minibiografia de Lindemberg, que segue abaixo. Observem: sabemos que ele é um assassino, que atirou para matar. E, mesmo assim, muita gente encontrará motivos para desculpá-lo. Querem ver?
“Caçula de quatro filhos - todos de pais diferentes -, Alves nasceu em Patos, na Paraíba e veio para São Paulo aos 2 anos. Completou o ensino fundamental e estudou até a 3.ª série do médio na Escola Estadual José Carlos Antunes - a mesma de Eloá -, até abandonar o estudo para trabalhar em tempo integral.
Auxiliar de produção, funcionário da empresa Cargas e Descargas Alphaville, prestadora de serviços para a Bombril em São Bernardo, Alves saía de casa por volta das 6 horas para voltar perto das 16. Nos fins de semana, complementava o salário - cerca de R$ 600, segundo amigos - trabalhando como entregador numa pizzaria das redondezas.
Às quintas-feiras à noite, Alves participava do programa típico dos jovens moradores do conjunto - ao som de funk, manobrava sua motocicleta pela Rua dos Dominicanos, na frente dos prédios, até por volta das 23 horas, enquanto a feira livre montada no local ficava em pé. Também freqüentava as festas no ‘shoppinho’, uma galeria comercial que concede, nos fins de semana, salas vazias para bailes funk.”Como não se tornar um assassino com uma vida assim, não é mesmo?, indagar-se-iam muitos dos nossos pensadores e cineastas. Agora imaginem essa mesma biografia tão cheia dos sinais explícitos daquela pobreza que rende má poesia e maus filmes somada a um cadáver com um tiro na testa... Não, eu também não gostei da fala do coronel, confesso, com a sua sociologia um tanto capenga. Mas ouso dizer que eu tenho base ideológica pra não gostar: é alguém começar a fazer proselitismo sobre os liames entre a pobreza e a violência, e meu estômago começa a embrulhar. Mas é diferente com os poetas e os cineastas da miséria. Eles se alimentam justamente dessa mistificação. Aliás, eles se alimentam literalmente dela. É ela que lhes abre as portas para o tutu das estatais que financiam seus subtratados subsociológicos disfarçados de cinema.
Os coronéis da opinião pública devolverão, simbolicamente, à polícia o direito de atuar? Ou continuaremos a contar com homens temerosos de sair do campo de operações diretamente para um processo, sob a acusação de homicídio doloso? Agora é fácil demonizar o cruel Lindemberg. Mas qual teria sido a reação dos mesmos setores que esmagam a polícia se o esforçado filho da classe operária, sem estudo, com dois empregos, estivesse estirado no chão, com uma azeitona nas fuças? O presidente Lula diria que governos anteriores ao seu não se preoucuparam em lhe dar escola...
Dêem-se câmeras, escadas de fazer inveja aos Jetsons, aparelhos os mais requintados, o diabo a quatro da tecnologia, e nem assim conseguirão obrigar homens a fazer a opção por passar 10, 15 anos respondendo a um processo porque, enfim, cumpriram a sua missão. Afinal, em situações-limite, as coisas podem dar certo, mas também poder dar errado. Ah, sim: a polícia cometeu muitos falhas, e os equipamentos da hora talvez não fossem os melhores. Mas a grande, a monumental deficiência, é de natureza cultural, moral e, em certa medida, política. E não é da polícia, não!
Uma polícia que entra no campo de batalha já moralmente derrotada por uma doxa tem condições de vencer a guerra contra o crime, contra qualquer forma de crime? Eu acho que não. Por mais técnica que seja. Também este mal, como todos os males que dizem respeito ao homem, têm uma origem que está nas escolhas morais. Arnaldo Jabor apareceu outro dia na TV com uma bala na mão. Afirmou que não era só Lindemberg quem tinha matado Eloá. Cineastas são doidos pra dizer que somos todos culpados — menos eles. Só lhe resta, agora, filmar "CDHU - Bloco 24"...
Reinaldo Azevedo
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/