Autor Tópico: O doce sangue do outro  (Lida 1390 vezes)

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Offline Nyx

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O doce sangue do outro
« Online: 24 de Outubro de 2008, 12:20:12 »
O doce sangue do outro


Brasileiro adora um velório. Lógico, velórios são importantes, psicologicamente falando. Pois a história da vida de um homem é a história das suas perdas e, sobretudo, de como ele lida com elas.

No caso de uma morte, de resto uma perda bastante definitiva, o velório serve para que os vivos se acostumem com o (em geral) infausto ocorrido. É por isso que as pessoas devem passar pelo caixão e olhar para o morto. Para que sua mente registre: ele não fala mais, não se mexe, não respira; ele está morto. E não é por outro motivo que o homem pré-histórico já realizava funerais. A sabedoria ancestral.

Faz-se essa liturgia quando da morte de um ente querido. Um amigo. Um familiar. Ou um personagem público muito admirado. Vide os funerais de Aírton Senna, de Getúlio Vargas e de Tancredo Neves que mobilizaram o Brasil, ou o de Lady Di, que comoveu o planeta via satélite, ou o de Lincoln, que cruzou os Estados Unidos em cima do aço de trilhos de trem.

Certo. Mas como se explica 30 mil pessoas comparecerem ao sepultamento de uma desconhecida, como aquela menina que foi assassinada pelo namorado em São Paulo dias atrás? Aí a distorção nacional. O brasileiro tornou-se um consumidor de tragédias. Nada a ver com o gosto pela crônica policial, pelo mistério, nada disso. Eu mesmo sou um entusiasta da Editoria de Polícia, onde muito trabalhei, e com deleite. Porque, sempre digo, não existe nada mais humano do que um assassinato, e todo assassinato tem uma história interessante. Pode ser uma briga de bar — conte o dia em que a vítima acordou para morrer e que o assassino acordou para matar e, pronto, você tem uma bela página.

Mas o acompanhamento ansioso do enterro de uma vítima ou o consumo sôfrego de certas minúcias da tragédia, como se tem visto, isso foge do fascínio pelo mistério. E a volúpia pela desgraça alheia é tamanha que até o jornal televisivo mais respeitado do país, o Jornal Nacional, entrega-se à tentação de explorá-la. O que me decepciona, eu que sempre fui, e sou, admirador do Jornal Nacional. Há quem justifique que tal se dá devido à luta pela audiência medida minuto a minuto. Mas ainda acredito no jornalismo. Ainda creio que, a médio e longo prazo, o jornalismo sério tem mais audiência do que a apelação.

Enfim. A verdade é que os telejornais estão atendendo a um apelo do consumidor e o que me interessa aqui é saber por que o brasileiro se transformou nesse vampiro de controle remoto. Digo por quê: por causa do vazio. O sujeito atravessa seus dias num emprego monótono e as noites no cárcere de um apartamento de dois quartos dividido com a mulher e os três filhos, ele não sai de casa com medo da violência e não tem dinheiro para viajar, nem ler ele lê porque ninguém o ensinou a gostar de livros, e o pior: ele vive em algum lugar selvagem e árido como São Paulo. Quer dizer: a vida dele não tem sentido.

Assim, quando esse triste brasileiro encontra motivo para uma emoção poderosa e inofensiva, ele, de alguma forma, se realiza. Donde, 30 mil pessoas no enterro da menina desconhecida do subúrbio, uma multidão cevando suas próprias emoções rasteiras tirando fotos do caixão com seus celulares luminosos, chorando, escabelando-se, se desesperando. Vivendo, finalmente. As tragédias de telejornal são a salvação espiritual do brasileiro medíocre.



* Texto publicado hoje na página 3 de Zero Hora (Jornal gaúcho)

Autor: David Coimbra.

Offline Tupac

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #1 Online: 24 de Outubro de 2008, 13:35:06 »
tribagual tche...

Chamaria não de vampiro, mas de abutre...
"O primeiro pecado da humanidade foi a fé; a primeira virtude foi a dúvida."
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"O que é afirmado sem argumentos, pode ser descartado sem argumentos." - Navalha de Hitchens

Offline Renato T

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #2 Online: 24 de Outubro de 2008, 16:16:59 »
Enquanto estiver só sendo explorado pela mídia está bom. O pior mesmo é quando começam a copiar. Um carro andando na contramão na marginal tiête, uma menina jogada pela janela e pronto... O Brasil inteiro gosta da idéia e começa a fazer também

Offline Andre

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #3 Online: 24 de Outubro de 2008, 17:28:27 »
Duas coisas me intrigam. Que fatores a mídia usa para determinar quais tragédias terão destaque nacional e quais não? São Paulo é considerada a capital do seqüestro, por que esse foi noticiado e outros que acontecem diariamente não?

A outra é o que leva essa multidão a considerar esses eventos como lazer. São multidões indo a velórios que sequer lhe dizem respeito, gente tirando foto do prédio onde uma garota foi arremessada...
Se Jesus era judeu, então por que ele tinha um nome porto-riquenho?

Offline Eremita

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #4 Online: 24 de Outubro de 2008, 17:38:06 »
De boa, serei somente eu que não gosto de velório, e acho uma perda 1)de tempo 2)de dinheiro e 3)emotiva inútil?

Já vi três velórios, e de boa, não pretendo ver mais nenhum. De boa, só fui no velório do meu pai e do meu avô porque em ambos minha mãe tava psicologicamente um caco e precisava que eu a apoiasse.

Quanto a esses casos de gente que fica famosa por morrer, que o pessoal vai em maaaaassa no enterro, ou jogar flores no túmulo, ou caralho-o-quatro. Qual a utilidade disso? E por que fazem tanto forféu por causa de um defunto, se tem trocentos outros por aí todos os dias???
Latebra optima insania est.

Offline Tupac

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #5 Online: 24 de Outubro de 2008, 17:54:16 »
De boa, serei somente eu que não gosto de velório, e acho uma perda 1)de tempo 2)de dinheiro e 3)emotiva inútil?

Quanto a esses casos de gente que fica famosa por morrer, que o pessoal vai em maaaaassa no enterro, ou jogar flores no túmulo, ou caralho-o-quatro. Qual a utilidade disso? E por que fazem tanto forféu por causa de um defunto, se tem trocentos outros por aí todos os dias???
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Offline Dodo

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #6 Online: 24 de Outubro de 2008, 19:06:13 »
Duas coisas me intrigam. Que fatores a mídia usa para determinar quais tragédias terão destaque nacional e quais não? São Paulo é considerada a capital do seqüestro, por que esse foi noticiado e outros que acontecem diariamente não?

Eu me fiz a mesma pergunta esta semana.
Até teve um sujeito num outro fórum que me chamou de "petralha" porque eu critiquei o caso da menina Isabela.

Mas, poxa, quantas mães não perdem seus filhos por esse Brasil afora?

Na minha cidade um incêndio encomendado (não tô brincando, não) matou duas crianças mais novas até do que a própria Isabela.

Por que ninguém se indignou com este caso?

Também gostaria de saber qual o critério da imprensa.

Tenho um palpite... quando um caso corriqueiro alavanca a audiência de uma emissora, as outras começam também a fazer a cobertura, gerando um efeito bola de neve.

Mas, como eu disse, é só um palpite!



Você é único, assim como todos os outros.
Alfred E. Newman

Offline FxF

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #7 Online: 24 de Outubro de 2008, 21:57:58 »
Duas coisas me intrigam. Que fatores a mídia usa para determinar quais tragédias terão destaque nacional e quais não? São Paulo é considerada a capital do seqüestro, por que esse foi noticiado e outros que acontecem diariamente não?
Hmm... acho que não existe uma regra, é uma coisa bem aberta a especulação, que depende de cada caso.

Mas listando o que eu imagino:
- Repercursão. Se está sendo comentado, se a emissora recebe alguma carta sobre o assunto;
- Enredo. Motivos;
- Identificação do público com as vítimas;

Offline Gaúcho

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #8 Online: 27 de Outubro de 2008, 11:16:22 »
Duas coisas me intrigam. Que fatores a mídia usa para determinar quais tragédias terão destaque nacional e quais não? São Paulo é considerada a capital do seqüestro, por que esse foi noticiado e outros que acontecem diariamente não?

A outra é o que leva essa multidão a considerar esses eventos como lazer. São multidões indo a velórios que sequer lhe dizem respeito, gente tirando foto do prédio onde uma garota foi arremessada...

Duas coisas me intrigam.

1)O cara considera o Jornal Nacional o melhor jornal televisivo do pais...?!
2)Ele admira o JN??!!

Agora fiquei realmente chocado. Nunca esperaria isso do David Coimbra.
"— A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras." Sérgio Moro

Offline Donatello

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #9 Online: 27 de Outubro de 2008, 11:25:16 »
Duas coisas me intrigam. Que fatores a mídia usa para determinar quais tragédias terão destaque nacional e quais não? São Paulo é considerada a capital do seqüestro, por que esse foi noticiado e outros que acontecem diariamente não?

A outra é o que leva essa multidão a considerar esses eventos como lazer. São multidões indo a velórios que sequer lhe dizem respeito, gente tirando foto do prédio onde uma garota foi arremessada...

Duas coisas me intrigam.

1)O cara considera o Jornal Nacional o melhor jornal televisivo do pais...?!
2)Ele admira o JN??!!

Agora fiquei realmente chocado. Nunca esperaria isso do David Coimbra.
Quanto ao 2 eu concordo com você mas quanto ao 1 eu com concordo com ele :P

Se não for o JN... é o JH dando receitas de "como partir para as férias sem descuidar dos pets"? ou o Jornal do SBT com uma modelo fazendo caras e bocas entre expressões de que não está entendendo nada sobre o que está lendo? ou o Jornal da Band com Casoy?

Em terra de cego quem só tem 50% de acuidade em uma das vistas é rei :(

Offline Tupac

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #10 Online: 27 de Outubro de 2008, 13:48:10 »
Os da Band tão legalzin...
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Offline Lua

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #11 Online: 30 de Dezembro de 2008, 00:19:08 »
Como o Dodo, não entendo o porquê de alguns casos serem tão noticiados e outros simplesmente permanecerem esquecidos. Lembro que quando o caso Isabella estava no auge, aconteceu algo parecido em um bairro periférico na cidade de Salvador. Se alguém atentou para o caso? Se alguém questionou os motivos do pai? Nada. Uma notinha no jornal e ponto final. Quando comparei esse fato ao showbizz do caso Isabella fui absurdamente criticada: "insensível", "pobre isabella", etc, etc.

Quanto à temática do texto, não utilizaria a expressão "vampiro", mas "abutre" (como foi dito mais acima). Como abutres as pessoas tomam para si dores que não lhes pertencem. São estranhos que morrem como outros estranhos que morrem aos montes todos os dias - alguns em situações até piores. É lamentável ver a mídia repetindo histórias, sofrimento, pessoas chorando e indignadas com fatos que ocorrem todos os dias - apenas não recebem tanta atenção.

Quando me deparo com esse tipo de cena, relembro um texto que li há alguns anos e que falava sobre a inquisição e o comportamento do povo diante das atrocidades cometidas pela igreja. Não se tratava de esperar uma punição para o réu, mas de vê-lo sofrer, de vê-lo em posições e situações sub-humanas. A humanidade precisa do espetáculo da dor e da atrocidade para emergir do marasmo e tédio em que se acha envolta. É preciso existir alguém que sofra mais, que apanhe mais ou mesmo alguém que consiga ser tão mau e que nos sirva como exemplo para algum parente, vizinho, amigo, conhecido. Precisamos do teatro maniqueísta que nos apresenta bons e maus em posições bastante nítidas: precisamos sofrer com o mocinho e especular e teorizar as piores punições para o bandido. É da nossa natureza. Mudam os tempos, mudam as leis - e permanecemos os mesmos primatas em busca do espetáculo trágico da desgraça alheia.  :(
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"A estupidez insiste sempre." Albert Camus

Offline Luis Dantas

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #12 Online: 30 de Dezembro de 2008, 02:14:59 »
Acho que um dos fatores atuando é a busca de um assunto em comum com o "país como um todo".
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The stanza uttered by a teacher is reborn in the scholar who repeats the word

Em 18 de janeiro de 2010, ainda não vejo motivo para postar aqui. Estou nos fóruns Ateus do Brasil, Realidade, RV.  Se a Moderação reconquistar meu respeito, eu volto.  Questão de coerência.

Offline Südenbauer

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #13 Online: 30 de Dezembro de 2008, 23:36:30 »
O que o caso Isabella teve de interessante foi o mistério. No dia em que ocorreu, os pais não pareciam ser os culpados mas a versão deles também não dava margens a algum criminoso. Eu lembro que eu fiquei bem intrigado em acompanhar e só dei-me por satisfeito quando vi todas aquelas evidências que apontavam contra eles. Apesar disso eu ainda acho um crime bem feito, porque é difícil que não exista uma prova sequer que aponte fortemente contra ti. Nessa ocasião só existiu uma coleção de evidências.

É claro, isso não justifica a mídia tirando sua programação do ar para avisar que o tio de Alexandre Nardoni estava indo visitá-lo e aquelas pessoas lá xingando a família de assassina quando não havia uma evidência sequer contra eles. Isso tudo foi muito ridículo.

Offline Fenrir

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Re: O doce sangue do outro
« Resposta #14 Online: 07 de Janeiro de 2009, 12:42:05 »
De boa, serei somente eu que não gosto de velório, e acho uma perda 1)de tempo 2)de dinheiro e 3)emotiva inútil?

Quanto a esses casos de gente que fica famosa por morrer, que o pessoal vai em maaaaassa no enterro, ou jogar flores no túmulo, ou caralho-o-quatro. Qual a utilidade disso? E por que fazem tanto forféu por causa de um defunto, se tem trocentos outros por aí todos os dias???
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E nao gosto muito de pensar que meus pais estao ficando velhos...
"Nobody exists on purpose. Nobody belongs anywhere. Everybody's gonna die. Come watch TV" (Morty Smith)

"The universe is basically an animal. It grazes on the ordinary. It creates infinite idiots just to eat them." (Rick Sanchez)

 

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