EUA: democracia pela metadeÉ difícil para um brasileiro compreender o sistema eleitoral americano. Os Estados Unidos são uma republica federativa extremada, ao passo que o Brasil é – na teoria apenas – uma república federativa mitigada. Lá os estados que compõem a federação têm Câmara de Deputados e Senado, além dos Supremos Tribunais estaduais. Aqui, não temos Senado e Cortes Superiores nos Estados, estas últimas todas em Brasília: Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.
Nos Estados, temos os Tribunais de Justiça, com poucas atribuições constitucionais originárias. São, na verdade, tribunais de revisão das decisões dos juízes de primeiro grau – os juízes das Varas. A União mantém igualmente uma justiça de primeiro grau e tribunais superiores nas mesmas condições que os Estados, com papel revisor das decisões (princípio da segurança jurídica). Na prática, o Brasil é um Estado unitário: prevalecem as leis federais em todo o território nacional, com concentração de poderes na União – a meu ver um bem e não um mal, embora as Medidas Provisórias (projetos de lei do Presidente) necessitem de limites mais rigorosos.
Exemplo de leis federais: Código Civil, Código de Processo Civil, Código Penal, Código de Processo Penal, Código Tributário. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, declarou a inconstitucionalidade de lei paulista que permitia o interrogatório de um preso por teleconferência – o que é vedado pela Constituição, com base no princípio da imediaticidade do Juízo: o Juiz deve ter contato, para sentir e avaliar o réu. As leis estaduais e municipais têm, no Brasil pequeno alcance – o que uniu culturalmente o País.
Federalismo elitistaNos Estados Unidos cada Estado tem legislação própria para todas as áreas. Exemplo: alguns prevêem a odiosa pena de morte, outros não. Alguns permitem o aborto, outros não. As legislações eleitorais são de competência dos Estados. Esse federalismo extremado rompe com o princípio universal democrático: um eleitor, um voto. E impõe entre o candidato e o eleitor o Colégio Eleitoral – composto de 538 delegados – 435 equivalentes ao número de deputados federais e 100 equivalentes ao número de senadores e mais três advindos do Distrito de Colúmbia.
A eleição é indireta. A democracia americana é mais formal do que substantiva. Vimos o governo George Bush (e também o governo Ronald Reagan em outros temas) suprimir o direito de privacidade do cidadão, permitindo a escuta telefônica sem ordem judicial – Barack Obama votou a favor dessa alteração, o que lhe causa – com pertinência – oposição cerrada da ala liberal do Partido Democrata e de inúmeros eleitores.
O federalismo americano surge quando os EUA eram compostos por 13 estados – numa união mais estratégica do que cultural. Os chamados Founding Fathers (fundadores da nação) desconfiavam de um poder central que os pudesse submeter e de dos partidos políticos. Foi então criado um sistema de barreiras: o candidato à presidência que vença num Estado, ganha os votos de todos os delegados daquele Estado, com exceção de Maine e New Hampshire (delegados proporcionais ao voto popular – melhor sistema do que o dos outros estados).
O jurista João Francisco Neto observa que “o Colégio Eleitoral foi criado como freio à democracia direta”, para evitar “candidatos demagogos”. Por isso, a luta pelo voto da mulher e do negro foi batalha lenta e feroz na terra de Bob Dylan. Os negros e os hispanos eram – há menos de duas décadas – submetidos a testes de conhecimento para saber se possuíam ou não capacidade para votar. Martin Luther King foi o grande criador de direitos na sociedade norte-americana moderna. Faz sentido: a elite branca criou um sistema democrático fechado e democracia formal, de negócios. Não espanta agora que a proposta de mudança parta de outro negro.
Não é à toa que Barack Obama insiste que não há “estados vermelhos” (republicanos) ou “estados azuis” (democratas), brancos ou negros, mas os Estados Unidos como um todo – toca na questão do federalismo extremado como um mal desnecessário.
Originalistas versus interpretacionistasHá lá duas correntes jurídicas dominantes, os originalistas e os interpretacionistas. George Bush é um originalista. Para ele, a constituição americana não precisa de alterações e está acima da Carta de Direitos Humanos da ONU. Quando o Brasil assina um tratado internacional e ele é referendado pelo Senado, passa a ser lei brasileira. Foi a visão originalista que levou Bush (e levará McCain, se eleito) a romper o diálogo com os outros países e empreender uma cruzada americana no Iraque, no Afganistão e, na verdade, no mundo – uma cruzada ideológica, de colonização e conversão. Os interpretacionistas – como Obama – acreditam que a Constituição deve ser modficada para atender aos reclamos da sociedade atual e deve incorporar novos direitos – como remuneração igual entre homens e mulheres. O interpretacionismo prega o diálogo com os outros países e tem sérias críticas à Constituição americana.
A democracia brasileira é mais substantiva do que a dos Estados Unidos. Impõe-se lá, com a vitória Democrata, movimento pela declaração de inconstitucionalidade das legislações estaduais eleitorais e a criação de uma Justiça Eleitoral Federal, com o voto direto. Uma emenda à constituição. Talvez, isso seja impossível, porque as oligarquias estafuais não querem entregar o “poder”. Alguns ponderam que sistema atual obriga o candidato a fazer campanha em pequenos Estados como Carolina do Sul e que as fraudes, quando ocorrem, ficam mais nítidas – Flórida em 2000. A eleição direta lá foi vetada pelos Founding Fathers porque eles “duvidavam da inteligência” do povo!
O sistema indireto, com os 51 Estados, impede o aparecimento de partidos políticos menores, sem poder econômico, e reduz o debate e a reflexão sobre a própria sociedade. O sistema eleitoral norte-americano é sintoma de sua democracia para os brancos – uma democracia precária, que não serve de modelo para qualquer país que se queira democrático.
Se McCain vencer, a sentença que permitiu o aborto em 1973 (Jane Roe versus Henry Wade) será declarada inconstitucional. Ele e Palin são ferozmente contra o aborto. Além disso, os 13 tribunais de apelação federais dos EUA e mais a Suprema Corte, quase tomadas por juízes noemados por Bush, tornar-se-á 100% contra os novos direitos civis. Os dois mais liberais magistrados do Supremo americano estão para se aposentar.
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