Eu poderia até (talvez) simpatizar com o libelo do Zerzan se vivêssemos há uns 10 mil anos atrás ou talvez em uma tribo de caçadores coletores, e mesmo assim com ressalvas. Hoje, porém, só posso considerar esse texto ingênuo, para não dizer ridículo. O Zerzan compreendeu bem que o trabalho nos custa alguma autonomia em nossas vidas, ele é uma necessidade, uma imposição do meio que não nos permite ser completamente livres. Só lhe passam desapercebidos dois poréns:
O primeiro é que não podemos mais voltar atrás, somos seis bilhões de pessoas no mundo hoje e não podemos simplesmente cruzar os braços sem matar uma boa parte deles de fome - o homem não depende mais só de si para sobreviver, devemos no mínimo ao agricultor que planta, ao caminhoneiro que transporta e ao comerciante que nos vende comida. Isso sem falar no médico que salva nossa vida ocasionalmente. Mas, como o Adam Smith já nos explicou, nenhum deles faz isso porque ama de paixão trabalhar, eles fazem em troca de alguma coisa. No caso, dinheiro, o que nos lembra que nós também precisamos encontrar alguma coisa para fazer pela qual os outros estejam dispostos a nos dar um pouquinho de dinheiro para assim podermos pagar o médico, o comerciante, o caminhoneiro, o agricultor e mais um monte de gente que também deu um jeito de encontrar uma ocupação pela qual os outros, o que inclui eu e você, estamos dispostos a lhe dar um pouco de dinheiro.
Note que a única pessoa auto-suficiente nessa história é o agricultor, e mesmo assim só aquele que cultiva para subsistência - e mesmo ele precisa trabalhar, ou você acha que a vida na roça é mole? Ironicamente é justo ele quem está na posição mais baixa na hierarquia econômica também... O Zerzan poderia sugerir que abandonássemos o luxo do nosso estilo de vida e fôssemos todos para o campo, como se isso fosse possível.
Bom, não é. O Camboja tentou fazer isso sob o Khmer Vermelho e o resultado foram milhões de mortes por fome. Não se pode esperar outra coisa, já que homem da cidade não tem conhecimento de técnicas agrícolas, se eu soltar um advogado em um terreno, cercar, e forçá-lo a viver daquilo, provavelmente ele vai morrer de fome. Se sobreviver, seu estilo de vida será o de um homem das cavernas, e não o de um pequeno agricultor. A humanidade levou milhares de anos para desenvolver a agricultura, não é algo que a gente nasce preparado para fazer. Poderíamos educar então uma geração inteira para isso? Bom, poderíamos. Mas mesmo assim ia faltar terra para todo mundo. O mundo só aguenta mal-e-mal seis bilhões de pessoas por causa da nossa agricultura altamente sofisticada, mecanizada e produtiva. tem tecnologia aí. Seis bilhões de pessoas praticando agricultura de subsistência, porém, não dá.
O segundo motivo porque o Zerzan é ingênuo é o seguinte: a humanidade já viveu nesse estilo de vida prosaico a que "gostaríamos" de retornar, foi no começo da revolução agrícola, que resolveu boa parte dos problemas da humanidade, que antes vivia da caça e da coleta. Um aumento considerável da produtividade deve ter ocorrido para o homem ter podido se tornar sedentário e vivido nas cidades. E uma boa quantidade de tempo livre deve ter sido produzida com isso, afinal, se nas cidades as pessoas têm tempo de trabalhar com outras coisas, como artesanato, maçonaria, administração pública e religião, por exemplo, é porque não é preciso que todo mundo trabalhe no campo, a revolução agrícola deve ter diminuído muito o custo em horas-homem para conseguir a mesma quantidade de comida que se conseguia com caça e coleta. Há um excedente de produção. Por que então as pessoas, em vez de inventar profissões novas específicas da vida nas cidades não se contentava em trabalhar exclusivamente no campo? Cada um trabalhando menos, por exemplo, em um dia trabalho eu, no outro trabalha o 4 Ton Mantis, no outro trabalha o Jus, no outro o Donatello... No final a gente dividia tudo e todo mundo descansava seis dias na semana. Já pensou que maravilha?
Mas por que os homens não se organizaram assim, preferiram inventar trabalhos para se manter ocupados a semana inteira em vez de ficarem entregues ao ócio? Não tenho uma resposta definitiva, mas o fato é que se o trabalho venceu o ócio, contra todas as nossas expectativas, deve haver uma boa razão. Não é por mero acaso que as pessoas rejeitam a inércia e se põem em atividade. Suponho que a razão para isso fosse o tédio. Imagina viver dez mil anos atrás, sem televisão, sem computador, sem internet, sem livros, e ainda por cima não ter nada para fazer!? Certeza que eles encheram o saco e foram atrás de alguma coisa. As pessoas eram livres e escolheram trabalhar. Certamente estavam atrás de algo para ocupar suas vidas e foram fazer algo que gostassem.
O grande problema com o trabalho então não é ele existir, a atividade é fundamental para as nossas vidas, resolver problemas, superar desafios, é algo que nos estimula e nos faz crescer. O problema com o trabalho é que existem trabalhos ruins. Certamente o Zerzan deve ter um desses. O que resolveria sua insatisfação não seria não trabalhar em absoluto, mas fazer algo de que goste.